Depois do café da manhã, Messias finalmente foi ao trabalho. Entrou em seu carro velho, uma Brasília caindo aos pedaços.
“A vida é dura,
e os primeiros cem anos são os piores”.
Wilson Mizner
Tudo bem, foi um dia infernal – e daí? Ele, que se chama Messias, acordou com o pé esquerdo e, o pior, justamente em um dos dias mais importantes da sua vida, no qual pediria Clara, a formosa e graciosa Clara por quem se apaixonou há mais de um ano, em casamento.
Mas o que é isso?, pergunta o leitor já de sopetão; e eu lhe respondo: isto é uma história, trouxa, uma história fictícia, é verdade, mas são de histórias fictícias que nós, escribas amadores, vivemos e alegramos a sua pobre alma, leitor. Sei que ficará bravo comigo, mas, em primeiro lugar, escute a história; depois xinga-me.
Vamos a ela. Começa onde sempre tem de começar, no início do conto, onde eu já deveria estar há tempos, quando Messias acordou em uma sexta-feira ensolarada e sentiu-se, repentinamente, nervoso. “Meu Deus!”, lembrou-se, “É hoje o dia!”. Sim, caro Messias, é o dia, o dia em que você pedirá Clara em casamento, conforme disse acima. Ele também percebeu que seria o dia em que será despedido se não chegasse no horário correto do trabalho; aviso do chefe, o sr. Beltrão, que nunca foi com a cara dele e que não aguentava mais ver Messias chegar atrasado com a desculpa de ter trabalhado durante a madrugada; na verdade, à noite, ele se esquecia completamente de que tinha um trabalho, pois tinha também uma doença muito comum a quem possui essa sofreguidão, chamada de preguicite aguda.
Bem, ele já acordou, tomou banho e vestiu-se. Bebeu um copo de leite e comeu uma bolacha passada com uma geleia de morango de data expirada, depois disse a si mesmo que era o seu café da manhã e finalmente foi ao trabalho. Entrou em seu carro velho, uma Brasília caindo aos pedaços, tentou fazê-lo correr pelas pistas esburacadas, mas após sucessivas batidas na traseira e na dianteira, e de inúmeros consertos, o veículo já estava decrépito demais e, logicamente, ele sequer conseguia andar, apenas rastejava. Chegou a tempo no trabalho, é verdade, mas o relógio do chefe estava adiantado cerca de cinco minutos e, como é o chefe que dá a palavra final, Messias foi obviamente despedido sem nenhuma misericórdia. Ele tentou argumentar um pouco; contudo, de nada adiantou; está despedido, pronto e acabou!, disse o sr. Beltrão.
Messias saiu do seu trabalho pela última vez; sua profissão era a de contador e, como já era experiente naquele tipo de função, supunha que seria fácil encontrar uma vaga similar e, talvez, até melhor. Acontece que não era o trabalho perdido que o preocupava, e sim Clara; a mocetona não lhe saía da cabeça; pelo amor de Deus!, pensava o pobre Messias, deixe Clara para mim. Juro que subirei os degraus da escada da Catedral da Sé de joelhos. Juro! Na verdade, Messias não jurava nada; e, se jurava, era apenas para o seu próprio bem, como qualquer ser humano promete quando se encontra em apuros, ao necessitar de um milagre e é sempre assim, segundo essa fórmula: Deus, eu juro por (favor preencher aqui a requisição do pedido, leitor), inclua depois disso a sua penitência favorita, e etc., etc., etc.
Ficou a jurar para si mesmo por quinze minutos diretos no louco trânsito da cidade. Foi interrompido quando iria dizer (também para si mesmo) “juro por tudo o que é de mais sagrado!”; a razão da interrupção foi que a Brasília, como toda a hábil providência, resolveu pifar no meio do engarrafamento.
Messias se desesperou; o seu querido ferro-velho morrera de uma vez por todas. E agora: o que fazer? Ele empurrou na rua o resto de carro que era a Brasília e, a muito custo, deixou-a encostada no acostamento para que os outros carros pudessem passar. Pensou que poderia pegar um táxi e ir em casa, tomar um outro banho e esperar até o momento de pedir Clara em casamento. De repente, lembrou: Como vou de táxi se não tenho um centavo de dinheiro? Esqueceu-se que estava duro igual a uma pedra, sem nada no bolso e lembrou-se que alguém o devia uma nota; foi onde morava o tal do sujeito.
Era um boteco bem fedorento. Encontrou o dito-cujo e perguntou-o sobre o dinheiro. O homem, chamado Luiz Pimentel, mandou-o, delicadamente como todo o porco que se preza, à merda. Messias respondeu com um soco. Saiu do bar com dois dentes a menos na boca e alguns hematomas a mais; esqueceu o dinheiro por lá mesmo e, por isso, roubou um moleque que passava por perto das redondezas; pegou uma nota de cinquenta reais; dava para entrar em um ônibus decente e ainda comer um sanduba com Coca-Cola. Já no ônibus, relaxou, e a única coisa sobre a qual ficou a pensar foi em Clara.
Ah!, Clara!, Messias não parava de pensar nela; era só Clara, Clara; o nome dela lhe parecia um chiclete grudento que não saía da cabeça; era Clara para lá, Clara para cá. Messias a conheceu em uma dessas vezes que economizou o salário de três meses para ir a uma boate bem chique, daquelas que têm vários pirralhos e várias pirralhas a fumarem, a beberem, a cheirarem a torto e a direito, na crença de que eram “os maiorais”. Clara, caro leitor, era desse tipo de gente; não fumava, não cheirava, não bebia; apenas se picava com uma extravagante seringa em suas veias.
Porém, Messias não deu a mínima para isso; a paixão à primeira vista bateu forte em seu coraçãozinho; cá entre nós, o que bateu mesmo foi a imagem de uma caixa registradora a tilintar dinheiro na cabeça de Messias, pois como o grande amigo e fã desta história deveria deduzir pelo que apresentei até agora, Clara era bonita e rica, fazendo parte da família quatrocentona Quartel; e deste último detalhe, Messias sabia muito bem: via-a frequentemente nas fotos das colunas sociais; era conhecida entre seus pares como “Clara, a gatinha”; e entre suas amigas como “Clara, a marmita de deputado”, porque, entre outros feitos, frequentava os lençóis de um parlamentar que gostava de variar no rodízio sexual cada vez que ia à capital da nação.
Clara era rica, como já dissemos; novinha e pedante, acrescento. O pai da moça, o sr. Fucs, começou na profissão ingrata de repórter de um jornal e, graças a um golpe da sorte, depois de uma chantagem feita contra um político importante do vilarejo onde vivia, conseguiu ser o dono desta mesma publicação e, com ajuda de um financiamento de um banco público, de metade da cidade; possui seus méritos, é verdade, mas são poucos, pois em termos de elegância, é indiscutivelmente abjeto; afinal, quem colocaria vinho “Sangue de Boi” em um jantar para mais de cem pessoas? A mãe, a sra. Letícia, bem, esta era uma peça rara; peça, não – digamos, literalmente, que ela era um bucho; quando garota, adolescente, era uma formosura; veio o casamento, a filha Clara e vários quilos de gordura a mais; agora estava mais gorda do que nunca; é o hábito de ficar sentada ouvindo música sertaneja na crença de que está escutando Mozart. Já Clara era um pouco diferente; esnobe, talvez, mas sem dúvida diferente. Cuidava-se, tinha um belíssimo corpo, realçava-o com uma roupa bem escolhida, destacando com precisão os generosos seios (que jamais vi, por sinal, caro leitor; mas pelo que percebi, são generosíssimos, certamente). E com essa boniteza toda, causava a desgraça nesses humanos chamados “machos-alfa”; estraçalhava com os coitados. Teve várias vítimas; não perdeu nenhuma vez; sempre se manteve invicta. Mas o que a faz ser assim tão diferente? Simples: o pai é nojento, a mãe é uma gorda sebosa e ela tem um adjetivo mais acentuado, se quiserem; é uma mulher vulgar.
Messias não se preocupava com nada disso; afinal, não precisava de enrolação; tudo podia ser dito com poucas palavras; nasceu pobre, com pai pobre, mãe pobre, viveu pobre numa casa de pobre, em um emprego pobre e, provavelmente, se tudo depender das benesses de Clara, morrerá pobre. Porém, a vida o ensinou a ser esperto; bobo, não é; nem tonto; mas quem disse que o amor é uma flor roxa que nasce no coração dos trouxas? (Ninguém teve a coragem de dizer isso em uma rima pobre dessas, e quem se importa? Estamos aqui para isso.)
Voltamos à sequência na boate, pois foi neste lugar que o nosso amigo Messias conheceu Clara Quartel, “a gatinha” que, naquela mesma noite, já tinha sido “a marmita de deputado”. Encontraram-se quase por acaso na pista de dança onde Clara, totalmente alucinada pela picada de heroína que tinha tomado no braço há alguns minutos no banheiro do recinto, estava a dançar de forma sensual. Messias babava literalmente pelo canto da boca; nunca vira alguém dançar daquela maneira; tão sexy, tão erótica. Ele acreditou que presenciava uma maravilha; e tudo ficou ainda melhor quando soube quem ela era; então, iniciou-se uma pequena conversa; deu certo; dias depois, após encontros e telefonemas, Clara começou a se relacionar com Messias.
E este relacionamento ia muito bem, obrigado; viam-se uma vez por semana; era pouco, mas cada vez que se encontravam tudo parecia não existir para Messias; eram encontros ardentes, fervorosos; conclusão: Messias se apaixonou por Clara, o exato oposto do seu plano de finalmente ficar rico. Ela não; ficou apaixonada, isto sim, por uma nova seringa que inventaram, muito bonita em termos anatômicos, pessoal e intransferível, com um chip que controlava qualquer estranho que a tomasse como sua.
Um ano se fazia agora; Messias, trouxa como todo apaixonado, acreditava que esta era a hora de se declarar, de se confessar, de contar tudo o que sentia em seu coração por Clara; enfim, dizer aquela famosa e patética frase – “Eu a amo”. Mas ele queria mais; queria se casar com a garota, deitar na cama com ela, ter filhos, netos, bisnetos, trinetos – enfim, uma família. Era isso o que Messias pensava sentado no banco do ônibus; pensava no verbo do passado, pois, de repente, parou de pensar em qualquer coisa; voltou à sua mente o fato de ter perdido o emprego e o carro.
Quando chegou ao seu apartamento – um muquifo onde baratas e percevejos eram os seus vizinhos –, sentia-se tremendamente cansado; o elevador do prédio estava quebrado e, uma vez que ele morava no décimo andar, subiu todas as escadas, e chegou quase morto. Abriu a porta do apartamento e foi direto para a cama; mas algo o fez ficar ressabiado: como vou pagar o jantar para Clara? Afinal, para me declarar decentemente preciso de um jantar extraordinário! Um jantar realmente perfeito! É só esperar o clima perfeito, o instante perfeito, e pimba! Eu a peço em casamento! Agora, o problema é: será que ela me aceitará? Claro que sim! Por que não? Afinal, ela me ama. Ou será que não me ama? Meu Deus! Tô ferrado! E se ela não aceitar?; não, ela vai aceitar. Certeza absoluta! É uma boa garota! É minha Clara! Mas eu preciso resolver esse problema da droga de dinheiro!
Assim, Messias correu rapidamente para a cozinha. Abriu o armário. Pegou o porquinho de porcelana que a sua mãe havia lhe dado de aniversário, quando fez nove anos de idade. Rachou-o pela metade; não tinha nada lá dentro; Messias estava absolutamente sem dinheiro; duro. Tô ferrado, repetiu para si mesmo, um mantra na sua vida. “O que eu faço?”. Teve uma outra ideia genial (segundo seu ponto de vista, é claro), como todo o medíocre que se crê um gênio. Ligou para um agiota, que, por uma dessas coincidências, era também um pastor de igreja, o pastor Everaldo Bivar; era um amigo de infância dele; não vai sacanear com Messias; de qualquer modo, cobrou um juro de 15% se não pagar no dia combinado; Messias aceitou as condições; afinal, pensa ele, está fazendo tudo isso por sua Clara.
No meio de uma chuva torrencial, ele chegou a um beco sem saída para pegar o dinheiro; o agiota, vulgo pastor, surgiu no mesmo instante; deu-lhe o dinheiro. Era uma bolada e tanto; dava para alugar um carro importado e pagar uma refeição mais do que decente. Clara ficará realmente feliz! Voltou correndo para casa; olhou o relógio, que caía aos pedaços; está chegando a hora, falou com seus botões.
A primeira coisa que um homem faz em um momento crucial desses é acender umas vinte velas, pegar um terço e rezar várias Ave-Marias; mas rezar não dá certo, amigo leitor; apenas nutre a esperança. Veja o exemplo de Messias: jurou a Deus e ao mundo e está lá, deitado na cama, com o travesseiro na cara, a martelar na sua pequenina mente as falas, o diálogo, o recital de afetos que teria com a formosa Clara. A esperança bate forte no coração do nosso herói; é um procedimento duvidoso o da paixão, mas ele dá seus resultados, às vezes satisfatórios, outras vezes bem minguados. Bem, esta é a tal da esperança que fez Messias sair da cama, ver-se no espelho e dizer para o seu reflexo: “É hoje!”. É o que o fez arrumar o seu melhor terno – tão branco e imaculado, apesar do ambiente onde habitava, que o fez se assemelhar a um sorveteiro dos tempos de outrora; barbear-se; tomar banho; escovar os dentes; vestir-se. Quando acabou tudo, achou-se simplesmente perfeito; “é hoje!”, pensa.
Às sete em ponto, Messias esperava a dócil Clara à frente da casa dela com um lindo carro importado – nada mais nada menos que um Jaguar – que acabara de alugar; quando D. Letícia, a mãe da garota, viu o nosso herói com aquele veículo, não pensou duas vezes: chamou imediatamente a filha e, mesmo mal conhecendo o rapaz, já o achava uma graça. Coisas de mulheres, suponho. Neste entremeio, Messias esperava a mocetona com uma apreensão elevada à raiz cúbica; tinha as pernas que tremiam como vara verde; a cabeça a bater e a rebater as coisas que seriam ditas; ele estava lá, um palhaço, um trouxa, um idiota, a amar uma outra imbecil, completa retardada mental, que caminhava em sua direção somente para ver o veículo, jamais para contemplar o anel comprado para encaixar em seu dedo tão perfeito; um anel simples, discreto, muito bonito, a única coisa de verdadeiro bom gosto que Messias comprou em sua vida; algo miraculoso se soubéssemos que Messias é tão experiente na estética feminina quando este narrador na Segunda Lei da Termodinâmica; mas havia algo a mais naquele gesto deste homem apaixonado: o anel era bonito em si, um típico anel de pedido de casamento que, se fosse observado com mais atenção, vocês logo chegariam à conclusão que tal objeto só podia ser uma coisa para um homem destinado ao fracasso como Messias – sim, sim, acertaram na intuição: o anel não passava de uma mera bijuteria.
Enfim, Clara surgiu nas brumas da paixão; era uma “gatinha”, sem dúvida alguma; cabelos negros, olhos verdes, pele branca, corpo perfeito (e narina aberta…). Messias foi pego de surpresa; abriu a porta do carro e ela entrou nele; ficou abismada, mas disfarçou a reação. Conversaram ali mesmo sobre o que fariam à noite e depois Messias decidiu levá-la para jantar.
O restaurante era chique; lá, as pessoas falavam alto, na crença de que eram os donos do mundo porque tinham casa em lugares bem acomodados, carros do ano e montes de dinheiro que ganharam geralmente da loteria, das negociatas com os governos ou até mesmo aqueles eufemismos que damos para um “golpe de sorte”, mas que todos sabem que não passa de outra denominação – legalmente falando, “lavagem de dinheiro”. Messias jamais gostou deste tipo de gente; porém, do seu ponto de vista, Clara era uma exceção neste ambiente. Os dois sentaram-se em uma mesa próxima de uma cachoeira onde a água não era água, mas uma torrente de plástico, o que, convenhamos, dava a mesma aparência. Messias pediu vinho nacional (Oxalá que não foi o “Sangue de Boi” que o pai de Clara estava acostumado a beber), duas casquinhas de siri bem azedas como entrada e, de prato principal, uma lagosta para dois, com uma pequena guarnição de arroz com açafrão; Clara amou tudo aquilo; por incrível que pareça, jamais comeu lagosta na vida; seu pai afirmava a todos que aquilo era uma comida de gente exibida e, por isso, preferia o velho e bom pão com ovo, às vezes com um recheio complementar de linguiça apimentada.
Estavam no meio do jantar; a garota degustava uma deliciosa e corriqueira casquinha de siri e esperava impacientemente a sua lagosta – e Messias sentia suas mãos suadas no bolso direito da calça; eu tenho de falar com ela, ainda hoje! Não posso deixar de perder essa oportunidade! “O que eu vou fazer?” Nada, Messias, você não fará nada, pois neste exato momento o garçom surgiu e disse ao seu ouvido esquerdo que ocorrera um problema e sua presença seria fundamental para resolvê-lo; mais adiante, Messias soube que o problema em questão era justamente com o Jaguar alugado; foi até o estacionamento do restaurante e viu dois homens ao lado do veículo. Eles declararam então que eram da polícia.
A notícia caiu igual a uma bomba nuclear em suas expectativas para a noite: o Jaguar não passava de um produto de interceptação de roubo – e, olhem só, Messias era o principal suspeito da infração; ele tentou convencer os representantes da lei e da ordem de todas as formas que não tinha nada a ver com aquilo, mas de nada adiantou; eles estavam certos de que Messias era culpado. Quando foi levado para a delegacia, disse aos policiais que estava na presença de uma donzela e que não poderia deixá-la sozinha; chamaram Clara, que veio junto com o maitre, este para cobrar a conta, ela para saber que confusão era aquela; às pressas, Messias pagou o valor devido, uma fortuna, mesmo sem ter comido a lagosta, e foi à delegacia em companhia de sua querida Clara, que estava com a ligeira sensação de ser igual a uma mosca boiando na sopa de outrem.
Ao chegarem no distrito policial, os serviçais dos bons costumes jogaram Messias em uma sala escura, apenas uma parca iluminação de uma triste e solitária lâmpada a pender no teto; Clara ficou na sala do delegado, sentada em uma poltrona de couro fedorento, e observava prostitutas e drogadictos indo para a cana enquanto Messias era surrado por dois outros homens que não conseguiram retirar nenhuma outra informação dele; ele insistiu que era inocente, apesar de, pouco a pouco, se recordar de quem lhe alugou o Jaguar, um amigo de infância que era singelamente batizado de Judas.
Messias conseguiu enfim escapar da surra; ganhou de presente alguns hematomas, mas isto é melhor do que morrer. Clara já estava possessa de fúria com ele; e ficou ainda mais furiosa quando soube que o Jaguar não era dele, tinha sido alugado e que era do tal de Judas; tudo isso feria os seus princípios de interesse e, por consequência, de ser uma mulher. E apesar disto tudo, Messias, que foi obrigado a preencher um Boletim de Ocorrência no qual era o perpetrante do ocorrido (e não o perpretado), ainda pensava no que iria declarar à Clara.
“Digo ou não digo, eis a questão”, pensou Messias, sem saber que imitava o príncipe de Elsinore. E decidiu-se: “Pronto! Vou lá e digo!”. Aproximou-se de Clara e disse que queria informá-la de algo muito importante; ela perguntou o que seria e ele novamente respondeu, sem se importar se a moça estava desatenta ou se sofria de um problema de audição, que era uma coisa estritamente importante, ele a amava com todo o seu coração, com toda a sua alma, com todo seu amor, e, por isso, a pedia em casamento e assim esperava por uma resposta, uma resposta sincera, de preferência uma resposta positiva. Clara ficou meio abalada com a atitude de Messias; como depois disso tudo, ele tem o desplante de me pedir em casamento? Os olhos verdes dela sondaram o rosto de Messias, que esperava, no fundo da sua mais íntima bondade, impacientemente, a tal da resposta. E então ele perguntou de novo, após um breve momento de silêncio entre os dois:
– Casa comigo, Clarinha?
Os olhos de Clara queimaram de raiva; afinal, você acredita, amigo leitor, que ela casaria, como toda mulher, com um homem que foi espancado pela polícia, alugou um Jaguar interceptado só para se mostrar e que, na verdade, não passa de um pobretão de meia-tigela? Seguindo essa linha de raciocínio, não se pode pensar outra resposta desta “gatinha” exceto:
– Não! A resposta é NÃO!
E assim o pedido de casamento tão desejado teve essa resposta, além de um violento tapa na cara de Messias, que o fez cair de bunda no chão; uma queda hilariante, assistida pelos policiais que o prenderam e, para completar, riram da sua triste situação; pois riram e não tiveram piedade nenhuma; enquanto Messias se recobrava do choque do tapa e da negativa de Clara, foi colocado novamente na jaula onde tinha estado e ficou preso por toda uma madrugada. E, neste meio tempo, só se soube que Clara foi de carona com o delegado que cobria o plantão da noite naquele distrito, Dudu, um rapaz de corpo musculoso, solteiro e que só praticava aquela profissão para assistir algumas torturas nos porões subterrâneos que existiam por ali, uma vez que, assim como a família de Clara, era podre de rico; anos depois, eles se casaram e consta que hoje em dia andam felizes consigo mesmos e com os outros.
Mas – e Messias?, pergunta o leitor. Ficou lá, na cadeia, encostado em um canto com odor de urina, chorando, não querendo acreditar no que aconteceu: parecia tudo perfeito! Absolutamente tudo! Mas a perfeição é algo raro de se encontrar, amigo; eis o grande pecado dos homens nos nossos dias; tentar achar a mulher perfeita, tentar encontrar o que é perfeito em um mundo que impede qualquer amostra disso, seja lá sob qual forma ou ação; nada, nada perfeito acontecerá enquanto estivermos por aqui, simplesmente porque nada nunca jamais será neste patamar, exceto fora, além, acima deste palco de horrores. Agora, deixando as reflexões precárias de Messias sobre a existência, leitor, o que ele pensava a partir daquele dia é como se vingaria de Clara; sim, o dócil Messias, pensava em retribuir pelo tapa na cara e pela negativa, talvez matando-a; mas aí ele seria preso e Messias não gostou da experiência da cadeia; ao contrário, decidiu que, para amenizar a dor, o bolso e a consciência, Clara seria a sua única e verdadeira paixão (palavras do próprio). Consolado por sua própria falta de vontade, Messias passou a noite toda a chorar e teve então outra ideia: suicidar-se, jogar-se na frente do primeiro carro que aparecesse à sua frente.
Já era de manhãzinha quando liberaram Messias da cadeia. Ao sair da delegacia, foi direto à rodovia que havia ao lado de um grande terreno baldio para cumprir a sua promessa de suicídio; mas não cumpriu; preferiu, por incrível que pareça, viver.
Tomou a decisão ao perceber que, na verdade, não era manhã; e sim o final da tarde, o crepúsculo que parecia ser dourado, mas transformava-se em uma espessa nuvem cinza, com tons de negro, e que se avolumava cada vez mais. Alguns trovões e relâmpagos coroavam essa aparição nos céus. Duas crianças, um menino e uma menina, provavelmente irmãos, provavelmente gêmeos (devido à notável semelhança entre seus rostos), surgiram de repente e gritaram algo completamente inarticulado e incompreensível, um caos que tinha vida própria, como se Messias não estivesse ali. Porém, ele não foi embora; sequer abandonou a sua posição. Fitou atentamente o crepúsculo que poderia ser também uma aurora. Começou a andar em direção às nuvens grossas de uma chuva que cairia a qualquer momento, aos trovões e relâmpagos que se emaranhavam no horizonte da paisagem – e seus olhos foram tomados por uma súbita e verdadeira claridade de propósito e de espírito. Agora ele sabia o que devia fazer pelo resto da sua vida; ouvira o chamado que o esperava há tanto tempo. As crianças pararam na sua correria desesperada e apenas ficaram a observá-lo a caminhar na estrada. Não se assustaram quando as nuvens, o horizonte, o crepúsculo, o céu, finalmente o engoliram. E, logo depois, o vento começou a uivar.
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Publius Decius Mus
Congressista aposentado em Brasília que já comeu muita marmita de deputado, sempre às custas do auxílio-moradia.