A privacidade ainda importa.
“…toma-o muitas vezes uma necessidade de solidão,
tão vital para ele como respirar e dormir”
Soren Kierkegaard
Nos últimos dias que antecederam o primeiro turno das eleições de 2018, um curioso fenômeno se fez observar nas redes sociais: a declaração voluntária, ampla e irrestrita de cada um dos votos de alguns usuários. Não bastava fazer campanha ao amigo ou vizinho candidato a deputado, ou declarar intenção de voto no salvador da pátria de sua preferência. Parecia necessário, imperativo, declarar abertamente todos os votos, de deputado a senador, não raro justificando, em tom de reprimenda, o motivo de não votar no candidato “A” ou “B”. Era (ao menos se imaginava) o ápice da pornografia eleitoral. O voto explícito. Havia quem se sentia à vontade para ir além da natural exposição das redes para divulgar para a eternidade algo que a prudência da construção social e jurídica submeteu à garantia do sigilo.
No início do segundo turno a situação tomou contornos mais agressivos. Os que anteriormente se entregaram voluntariamente à revelação explícita de suas opções – abrindo mão da prerrogativa do sigilo – passaram a exigir a manifestação de todos. Guardar suas opções eleitorais, embora um direito dos mais robustos, passou a ser tomado como uma grave afronta. Não havia lugar para omissão. O momento demandava “coragem”, e o tempo julgaria cada um por suas decisões. Nesse ponto os pornógrafos eleitorais tinham razão. O tempo julgará, e considerando a alta probabilidade de um politico frustrar expectativas, a discrição era altamente recomendada, especialmente porque, como alguns insistem em ignorar, a “Internet nunca esquece”.
O que a revelação das intenções de voto como imperativo ilustra é a ascensão de uma nova sociedade, em que o controle é exercido por todos em face de todos por meio da exposição total. Pior: estamos nos sujeitando voluntariamente a este ambiente de completa ausência de liberdade, sem que tenhamos a exata compreensão de seus efeitos. Uma das características marcantes desse processo é o enfraquecimento da ideia de Privacidade e o encantamento coletivo por soluções tecnológicas que asseguram o estabelecimento da ordem social, esse desejo inalcançável do homem que se rebela contra a tirania do imponderável que marca a existência de todos.
O charme da promessa de ordem é mesmo irresistível. Colhe-se do noticiário que novos congressistas eleitos pelo PSL, o partido mais beneficiado pelo fenômeno de popularidade do Presidente da República recém-eleito, teriam embarcado em viagem bancada pelo povo chinês para que tomassem conhecimento de práticas adotadas pelo governo comunista de Pequim. Em destaque na agenda semioficial está o estudo do sistema de monitoramento eletrônico e de reconhecimento facial dos cidadãos chineses. Ao que parece estes deputados cogitam implantar esse modelo no Brasil.
Enquanto a noticia ainda circulava, com os deputados já a caminho do Big Brother Pequim, o filósofo Olavo de Carvalho, sem dúvida uma referência teórica para boa parte do eleitorado desses deputados, divulgou vídeo em que atacou duramente os membros da comitiva. Carvalho, além de apontar o absurdo de se buscar junto aos comunistas chineses o know-how para espionar os cidadãos brasileiros, registrou a existência de fundadas suspeitas que recaem sobre atividades de empresas multinacionais chinesas de agirem em favor dos interesses do Partido Comunista Chinês. Acusando-os analfabetismo funcional, o filósofo não poupa os parlamentares. Dada a gravidade do tema, é preciso reconhecer que Olavo tem razão.
1. Desejo de ordem e o panóptico
É impossível discorrer sobre o problema do sistema de reconhecimento facial operacionalizado por um Estado – em especial um Estado de Partido Único como o Chinês – sem alusão ao utilitarismo de Jeremy Bentham (1748-1832) e sua arquitetura do panóptico. O advogado e filósofo britânico entrou para a história como o grande articulador do Utilitarismo, sistema de pensamento que objetivava transformar o mundo sob a premissa de maximização de benefícios e mitigação de prejuízos, cuja teoria acabou sendo popularmente celebrizada pelo slogan “a maior felicidade possível para o maior número de pessoas”. Embora os objetivos de sua filosofia fossem bem intencionados, o problema com o utilitarismo de Bentham, apontam os críticos, era a visão matemática da vida em sociedade, que tratava o coletivo como o beneficiários das políticas públicas e ignorava a particularidade dos sofrimentos e anseios de cada indivíduo.
Reflexo dessa visão maquinal da sociedade é a concepção do panóptico, um sistema de arquitetura elaborado em resposta à convocação pública para desenvolvimento de um novo modelo de sistema prisional no interior da Inglaterra. Em linhas gerais, a arquitetura do panóptico, concebida para que cada unidade prisional estivesse ao alcance visual de um vigia posicionado em uma torre central, representava o ideal da transparência total, impondo ao detento a ininterrupta sensação de vigilância, ainda que não se pudesse ter certeza de que o oficial de guarda estivesse em sua posição.
Para Bentham, o panóptico representava mais que apenas um sistema de otimização da atividade penal, com redução de custos e controle mais eficaz dos detentos. O jurista entendia que esta arquitetura poderia – deveria – ser replicada em ambientes públicos, hospitais, escolas, escritórios e indústrias, favorecendo a produtividade e a ordem, tendo por resultado final um benefício social: o tal “mais felicidade possível ao maior número de pessoas possível.” O panóptico concretizava a ideia de Bentham de que os indivíduos, enquanto experimentam a sensação de que são vigiados, acabam sendo mais eficientes e mais disciplinados.
Esta apologia à vigilância constante e à exposição dos cidadãos encontrou forte resistência em John Stuart Mill (1806-1873), que chegou a ser intelectualmente tutelado pelo próprio Bentham. Como observa o escritor Andrew Keen, Mill rejeitava a visão mecanicista de Bentham sobre os seres humanos, que eram complexos demais para serem tratados como meros números na busca por um objetivo coletivo. Além disso, ao passo que Bentham e demais utilitaristas desenvolviam suas visões políticas com base na preocupação com os indivíduos enquanto componentes do coletivo, Stuart Mill entendia que essa visão panóptica ameaçava a essência do homem, sua capacidade de pensar e agir por conta própria, de criar valor ao mundo ao redor e de se expressar livremente. Registra Keen: “se o credo de Bentham era ‘a maior felicidade para o maior número de pessoas’, a fé de Mill era de que os indivíduos deviam evitar ser corrompidos pela conformidade das massas recém-conectadas e permanecer fiéis a si mesmos. Para ele, portanto, autonomia individual, privacidade e desenvolvimento pessoal são essenciais para o progresso humano e para o desenvolvimento de uma vida boa.”
2. A soberania do indivíduo
É com Stuart Mill que uma preocupação com a privacidade começa a ganhar relevância a ponto de, no fim do século XIX, alcançar o status de direito. Considerado um dos mais importantes pensadores do liberalismo, J.S. Mill opunha ao pensamento de Bentham o argumento pelo qual “a humanidade é a grande vencedora ao permitir que cada um viva como lhe pareça melhor, mais do que o seria se coagisse cada pessoa a viver de acordo com o que parecesse melhor para o resto das pessoas”, e que “naquela parte que só diz respeito a si mesma, a independência de cada pessoa é, por direito, absoluta. Sobre si mesmo, sobre seus próprios corpo e mente, o indivíduo é soberano. (Sobre a Liberdade, 1859)”.
Stuart Mill entendia que a única hipótese pela qual a humanidade (sociedade), individual ou coletivamente, poderia interferir na liberdade de ação de um individuo, seria para a proteção de outro ou outros indivíduos. Daí porque sistemas desenvolvidos para impor aos homens rotinas que limitem sua livre ação, ainda que concebidas com os mais nobres propósitos, seriam um ato de violação da autonomia individual. Nesse sentido, retirar do homem a possibilidade de fugir da atenção dos demais, onde poderia refletir, agir e trabalhar anonimamente, equivaleria a desvirtuar a própria raça humana e, ao fim, decretar a morte da liberdade individual.
As ideias de Stuart Mill foram bem recebidas desde sua época e fundaram o ambiente em que direitos de personalidade passaram a ser assegurados pelos legisladores e tribunais. A liberdade de expressão e de pensamento e o direito à privacidade devem muito aos esforços de Mill.
3. O direito a ser deixado em paz
Aos esforços de Stuart Mill em defesa do direito individual de se retirar à esfera particular em que se vê livre da influência do poder avassalador do coletivo soma-se o trabalho de dois professores de Direito em Harvard, Samuel Warren e Louis Brandeis, que em 1890 publicaram um influente artigo intitulado “The Right to Privacy”. Neste muito comentado ensaio, os professores Warren e Brandeis defendem a consolidação do direito à preservação da privacidade como instituto que assegura o direito fundamental à proteção da pessoa.
A defesa da privacidade desenvolvida pelos professores de Harvard é concebida na esteira de grandes transformações sociais. Não apenas a ideia do panóptico benthaniano era levada a sério, como a proliferação dos tabloides e das primeiras câmeras fotográficas provocava diversos incidentes de violação de intimidade. O próprio Samuel Warren sofreu as consequências do avanço da tecnologia. Foi a publicação de uma foto do casamento de sua filha num jornal de Washington que o levou a propor a elaboração do artigo. A frustração de Warren é explícita no artigo: “fotografias instantâneas e os jornais têm invadido o recinto sagrado da vida privada e doméstica”. À luz de um ensaio portentoso contra a ampla divulgação de fotografias de momentos privados no fim do século XIX, cabe imaginar o que os professores Warren e Brandeis diriam da ideia da captura de imagens e da aplicação de tecnologia de reconhecimento artificial a serviço dos governos.
Por certo Warren e Brandeis vinculariam a atual questão da perda da privacidade ao clima de acirramento político. A preservação da esfera do privado é fundamental na garantia dos direitos individuais da vida e da propriedade, além de assegurar a própria liberdade democrática. Os professores entendiam que as garantias de proteção à pessoa e à propriedade devem ser necessariamente revistas de tempo em tempo, para que se adaptem às modificações econômicas e sociais. Aos poucos, o alcance desses princípios fundamentais se ajustaria. O direito à vida, por exemplo, teria se convertido em direito a usufruir a própria existência livremente. Esse livre exercício do direito à vida foi definido pelos professores como o “direito a ser deixado em paz (the right to be let alone).”
Embora direitos relacionados à privacidade já tivessem sido positivados no ordenamento jurídico francês, o artigo de Warren e Brandeis é tido como um marco inicial no aprofundamento da discussão acadêmica acerca da importância do reconhecimento da privacidade como um direito individual. Esta discussão resultará, na ressaca do apocalipse das duas grandes guerras mundiais, na Declaração Universal dos Direitos dos Homens de 1948, reconhecendo o direito à honra, intimidade e inviolabilidade da vida privada como direito fundamental. Do terror ideológico de governos totalitários e das perseguições promovidas pelos aparatos policialescos, que assombraram a primeira metade do século XX, emergiu a importância de se consolidar a proteção da vida privada dos cidadãos. Todas as democracias liberais modernas acolheram a privacidade enquanto garantia fundamental.
Melhor para a humanidade. Como afirma o filósofo coreano Byung-Chul Han, em Sociedade da Transparência, “a alma humana necessita naturalmente de esferas onde possa estar junto de si mesma, sem o olhar do outro. Pertence a ela uma impermeabilidade. Uma total iluminação carbonizaria a alma e provocaria nela uma espécie de burnout psíquico. Só a máquina é transparente; a espontaneidade – capacidade de fazer acontecer – e a liberdade, que perfazem como tal a vida, não admitem transparência.”
4. A pós-privacidade
Se as tiranias do século XX criaram um ambiente favorável à consolidação da importância da privacidade, é provável que a observância de direitos humanos pelos estados liberais democráticos tenha fomentado a negligência com que tratamos o assunto em nossa sociedade contemporânea. Em especial após o (aparente?) colapso da ameaça comunista, a sensação de que estamos livres de espionagem ou da perseguição de um aparato policial predomina, em que pese a evolução tecnológica, tal qual na época de Warren e Brandeis, demande especial atenção.
A despeito dos sucessivos escândalos envolvendo monitoramento de informações e de pessoas na Internet, dos inúmeros casos de vazamento de informações em bancos de dados, dos crimes contra a honra e imagem, do uso malicioso de informações na rede para prática de crimes no mundo off-line, o cidadão comum segue ignorando riscos e consente sem ler com termos de uso e políticas de privacidade que nada mais são que um breve obstáculo para o desejo de se expor. Tudo isso enquanto a cada temporada se sucedem escândalos de violação de privacidade. Sintomático desse fenômeno da falta de percepção dos riscos à nossa privacidade é que por ocasião da revelação do programa ostensivo de monitoramento mantido pela NSA, em 2013, o mundo ficou chocado pelo fato de Edward Snowden revelar que espiões ganhavam a vida espionando. Vale lembrar que dois anos antes o jornalista Julian Assange advertira que “a Internet é a maior máquina de espionagem que o mundo produziu.” Com todo esses avisos, por que tanta negligência?
Um dos mais referenciados autores a tratar o fenômeno do estado de vigilância total na sociedade contemporânea, Zygmunt Baumann (1925-2017) alude à era da pós-privacidade para identificar o período que sucede o “fim da história” e se caracteriza pela comunicação global, primeiro, da televisão a cabo, depois, da Internet. O pensador polonês nota que o velho pesadelo panóptico que consistia na sensação de “nunca se sentir sozinho”, se converteu em nova forma de esperança, a de “nunca mais estar sozinho”; “o medo da exposição foi abafado pela alegria de ser notado.”
Baumann, distante de ser um neoludita, não ignora os bons serviços que a tecnologia poderia prestar em favor da segurança, da justiça e das relações humanas. Contudo, registra que o emprego desenfreado do aparato tecnológico leva ao exercício excessivo de controle. Em “Vigilância Líquida”, um diálogo com o especialista em privacidade e vigilância, David Lyon, Baumann conclui que “no final, a escolha é entre segurança e liberdade: você precisa de ambas, mas não pode ter uma sem sacrificar pelo menos parte da outra; e quanto mais tiver de uma, menos terá da outra.”
No caso brasileiro, a adoção de medidas de combate à violência é prioridade. A adoção de recursos tecnológicos é imprescindível. A vigilância eletrônica é um mal necessário. Contudo, como ressalva Baumann, cumpre a busca de equilíbrio. É possível mais segurança sem comprometimento da liberdade pessoal. O monitoramento por câmeras não bastaria? É mesmo preciso adotar um sistema amplo de reconhecimento facial? Com uma empresa com sede em um país cuja intervenção do Estado é ilimitada?
5. Privacidade ainda importa
É preciso acreditar que a sociedade contemporânea não precisará atravessar um pesadelo panóptico, com hipervigilância estatal, para que se dê conta da importância do resgate da Privacidade como garantia de direitos individuais. Há vários juristas, filósofos e políticos que ainda insistem na importância de se preservar o direito do indivíduo a ser respeitado em sua intimidade, em suas escolhas e rotinas pessoais, em seu direito a ir e vir em paz. Um possível indício de um novo despertar para proteção da privacidade se revela na edição de leis de proteção de dados ao redor do globo. Leis a serem comemoradas pela nobreza da intenção, a despeito de suas possíveis falhas.
À população, em geral, e aos líderes recém-eleitos, em especial, suscetíveis pela inexperiência governamental aos charmes encantadores das promessas do progresso, cabe a lição dos que insistem em alertar que privacidade importa. A privacidade importa, porque trata da preservação do que cada indivíduo é em sua essência. Importa, porque cada indivíduo guarda em si seus segredos e seus mistérios. Importa, porque como nota Nicholas Carr em Superficiais: O que a Internet está fazendo com nossos cérebros, “privacidade não apenas é essencial para a vida e liberdade, como é também essencial para busca da felicidade, no sentido mais amplo e profundo da expressão. É essencial para o desenvolvimento da individualidade e da personalidade. Nós, seres humanos não somos apenas animais sociais. Somos também criaturas privadas.”
Norival Silva Júnior
Advogado especialista em Direito Digital.
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