O desrespeito ao federalismo é o que faz com que os estados estejam permanentemente endividados com a União.
1. Quanto custa o dinheiro
O estado de Minas Gerais é um dos mais ricos e desenvolvidos do Brasil, com o 3º maior PIB dos entes da federação (544 bilhões) e o 9º IDH (0,731, elevado). Não obstante, Minas passa pela maior crise da sua história desde que foi elevada a capitania em 1720, separando-se da extinta São Paulo e Minas do Ouro.
Depois de 12 anos de governos sociais democratas que mantiveram um fomento monovalente para atividade mineradora no estado e quatro anos de governo petista que simplesmente chutou o balde e ignorou completamente a situação fiscal do estado, transformando a previdência e o funcionalismo num bacanal, Minas foi de um estado superavitário em 2009 nas contas públicas para um dos mais endividados do país, com uma dívida de 111 bilhões.
Minas Gerais é um retrato do que se tornou o país inteiro sob a gestão do PT. Irresponsabilidade, corrupção, ingerência econômica que culminaram em crise e esta que diminui a arrecadação, gerando um círculo vicioso, é o que ocorreu em Minas e é o que ocorreu nos demais estados que creram que poderiam expandir ao infinito o gasto da máquina já que o Governo Federal estava fazendo o mesmo.
Independentemente do novo governador mineiro ser um liberal autêntico, até o mais vermelho dos socialistas que recebesse a herança maldita deixada pelo PT no estado saberia que ou se controla os gastos e a dívida pública, ou o estado simplesmente quebra, com direito a exonerações em massa, empresas entrando em concordata e pessoas comendo animais domésticos para não morrer de fome, assim como aconteceu na Venezuela. Qualquer coisa é melhor do que o fiscalismo rentista do PT. Qualquer coisa.
O estado de Minas, rico e desenvolvido, é a prova de que você pode estar literalmente sentado sobre uma pilha de ouro que, se você não administrar a riqueza direito, você não só perderá tudo como ainda terminará devendo muito dinheiro.
No seu discurso de posse, o novo superministro da economia (porque assumiu múltiplas pastas), Paulo Guedes, disse que o novo governo seria de orientação liberal-democrata. Nas suas próprias palavras, “nós vamos abrir a economia, nós vamos simplificar impostos e vamos privatizar”. Essa frase simplória do economista resumirá o que será o governo Bolsonaro. Sem os fatalismos da esquerda do ressurgimento de um governo militar (ainda que a quantidade de militares nos ministérios seja expressiva, mas, parafraseando Eduardo Bolsonaro, se tivemos bandidos no governo, porque não teríamos militares?), a gestão de Jair será de orientação liberal, mesmo que este seja um conservador desenvolvimentista de coração.
Paulo Guedes quer resolver a dívida pública e retomar o crescimento. Essa é a grande meta dele: desafundar o país da crise econômica e fiscal que o governo Dilma Rousseff nos enfiou. Para tanto, ele lançará mão do que vem sendo batido repetidamente nos últimos meses: reforma da previdência, privatizações e simplificação tributária. Ele quer desonerar o cidadão e o empresário do peso do Estado brasileiro. Falou que a CLT é, na prática, a fascista Carta Del Lavoro de Mussolini. Disse que é necessário controlar os gastos e que é preciso manter a meta fiscal dentro da constituição.
A CF/88, a qual foi elogiada por ele, demonstrando uma surpreendente preocupação com gastos sociais, o que seria raro num Chicago Boy, garante que parte mínima do orçamento seja destinada a saúde e educação. E ele garantiu que haveria cortes em outros setores para privilegiar os dois supracitados.
Dentro da lógica dos ventos liberais que estão soprando em Brasília, não é só contra a proposta do governo como é comprovadamente falho expandir o subsídio estatal. Como já discutido em outro artigo meu, o principal problema do SUS é o financiamento, e não adianta querer despejar dinheiro em cima dele, já que, para equipararmos nossos gastos de saúde com os países desenvolvidos, teríamos que investir 122% do PIB em saúde.
É óbvio que mais investimento é bem-vindo. E como o mesmo Paulo Guedes falou, ”o dinheiro para os investimentos nos estados e municípios tem que estar [é óbvio] nos estados e municípios.” É idiotia fazer repasses ao governo federal e em seguida receber esse dinheiro de volta para reinvestir em âmbito local. Não é apenas idiotia, é burocrático, é contraproducente e é corrupto ao aumentar o número de intermediários que passarão a mão no dinheiro legal e ilegalmente.
O desrespeito ao federalismo é o que faz com que os estados estejam permanentemente endividados com a União. Os estados e municípios não tem autonomia para investir em políticas públicas – ainda que, ao contrário do que se pinta, a União não é o grande vilão da história; boa parte dos estados não fecha as contas porque paga mais com pessoal do que com políticas públicas, sendo necessária também uma devassa a nível regional e local em termos de privatizações, concessões ou terceirizações e desoneração da folha de pagamento –, sendo obrigados a remeter seu tesouro para que Brasília faça o que bem entender, inclusive investir em estados que há anos são deficitários, tanto do ponto de vista fiscal, quanto orçamentário.
O estado de São Paulo é um bom exemplo disso. Com uma dívida de quase 300 bilhões com a União, ele é também o estado que mais remete arrecadações ao Planalto, contribuindo boa parte do orçamento da União, o que, de acordo com a série histórica, foi calculado em 365 bilhões para o ano passado (esse número é conservador), ao passo em que ele recebe, do Governo Federal, apenas 36 bilhões de reais. Ou seja, os cidadãos de SP pagam em impostos federais muito mais do que recebem em investimentos que, na prática, se traduzem em repasses ao Bolsa-Família e a contratos e licitações com empresas como a Embraer, a Ferreira Guedes SA e o Laboratório Pfizer.
Percebe-se, evidentemente, que alguns estados, como SP, estão financiando a União a fundo perdido, mandando remessas e mais remessas em tributos para que o Governo Federal os distribua em locais que evidentemente não pagarão, como o interior nordestino e do norte do país. Se isso é bom porque controla desigualdades e permite o florescimento social e econômico de regiões desprovidas, é ruim porque alimenta a máquina estatal por ela mesma, vicia estados e municípios que, se não fossem os repasses da União, mal pagariam seus servidores públicos, e gera terra arada e adubada para, nas próprias palavras do ministro da economia, piratas privados, burocratas corruptos e criaturas do pântano político brasileiro fazerem germinar a corrupção.
Com a desoneração por parte do governo federal, mais dinheiro ficará nos estados, mas esse dinheiro não deve e não pode ser para pagar funcionários públicos. É preciso que cada estado, assim como o Planalto, faça uma devassa em cargos comissionados e extingua órgãos inúteis ou puramente burocráticos dentro do mandamento Simplificar do Ministério da Economia e deixe de gastar 70% com pessoal e apenas 30% com políticas públicas (que são a saúde, o saneamento, a educação, a segurança pública), transformando esse 70-30 em 30-70. Essa é uma boa forma de começar a reforma da verdadeira pirâmide que se transformou o sistema tributário brasileiro, invertendo-a. Não pode haver mais comandantes do que comandados. O problema do financiamento de políticas públicas não será resolvido apenas com isso, mas essa é uma boa forma de oferecer coisas simples e transformadoras, como alfabetização e medicamentos essenciais de forma absolutamente ubíqua.
Já sabemos o que fazer. Falta saber, agora, como iremos fazer.
2. Atravessando o deserto
Em centros de referência, como o HCFMUSP, o Inca, a UFRJ e na Unicamp pratica-se a mais lisa e completa medicina dentro do SUS, da cirurgia ao ambulatório. Crer que o SUS pode ser tão bom quanto esses lugares, entretanto, meramente porque esses lugares integram o SUS, é um delírio febril.
Existe um ditado no meio da saúde de que “o SUS é um deserto com alguns oásis”, e isso se aplica aqui também. Fora dos centros de referência que são as grandes unidades de saúde do país – em sua totalidade hospitais –, a situação do oferecimento público em saúde é de calamidade. É mais fácil você ser atendido por um especialista se estiver num presídio do que ser referenciado por um posto de saúde que não esteja na região de um grande serviço, como o de universidades.
A rede assistencial do SUS já foi criticada à exaustão por especialistas do calibre de Marcelo Ferreira Caixeta, voz ativa contra a reforma psiquiátrica; Milton Pires, baluarte da resistência ao aparelhamento partidário das gestões em saúde; e Raphael Câmara, inquisidor do abandono em saúde materno-fetal no Rio. Todos eles, a sua forma, apontam a mesma coisa: o mais absoluto, ladrão e púnico abandono, e perversão, de todas as esferas de assistência médico-hospitalar.
A medicina praticada nos rincões do país nem sempre é da melhor qualidade, isso quando ela existe. Alie-se a isso a cruzada que o governo do PT empreendeu contra os médicos, fazendo da classe uma vítima sacrificial no hecatombe que é o sistema público de saúde, e a mídia com uma postura praticamente nazista para com os médicos, os quais não podem dormir, não podem comer, não podem tirar férias e não podem entrar em greve contra abusos e negligências das prefeituras e estados pois eles são a classe média rica privilegiada da população e com a qual tem uma dívida de sangue que com sangue deverá ser paga, e você terá pintado o quadro do que se tornou a medicina brasileira: desigual, mal-gerida, mal-paga, desprestigiada e com condições subumanas de trabalho.
O novo ministro da saúde, Henrique Mandetta, quer mudar isso. Ele, que é médico e gestor em saúde, sabe das mazelas da saúde no Brasil, sabe que é impossível oferecer saúde britânica a todos e definiu, como prioridade, três coisas: atenção às unidades federais em saúde no RJ, que foram transformadas em sucata no governo Dilma-Temer; a contenção do surto de sarampo em Roraima, cuja prevalência aumentou 2200%; e a ampliação do atendimento em saúde básica com um “terceiro turno” no funcionamento de postos de saúde. Conjuntamente, afirmou ser entusiasta da criação de carreira de estado para médicos, notícia que foi bem-recebida entre os médicos que trabalham, principalmente, no Programa de Saúde da Família e cujos contratos podem ser rompidos a qualquer momento e que não gozam de aumento salarial ou estabilidade.
Ele também disse que o Mais Médicos é “improvisação” – como já defendi outrora, onde afirmei que o Mais Médicos é mal-planejado – e que o programa precisa ser revisto. Como e o quê será feito com o programa ele não comentou, mas se é possível prever.
Sobre as propostas de Mandetta, podem-se fazer algumas considerações:
* O choque de gestão dos hospitais federais no Rio vem em boa hora e servirá de norte para ações centrais do governo federal nos demais hospitais que estão às moscas, como o Hospital São Paulo. O Governo Federal, ao transformar esses hospitais em cabide de emprego, dentro da lógica de abandono e aparelhamento dos hospitais do SUS, conseguiu arruinar toda a rede hospitalar federal. Não faltam exemplos disso. Basta pesquisar “hospitais federais” no Google e ver o que se diz deles. O governo pode, também, de forma salutar, terceirizar a gestão, eliminando qualquer possibilidade de indicação que não seja por mérito, mas com muito cuidado, já que muitas terceirizadas estão fazendo disso um negócio lucrativo em detrimento da população atendida; realizar concessões; parcerias público-privadas na parte assistencial do hospital ou mesmo a privatização de alguns deles, obrigando-os a atender SUS por contrato;
* Neste momento, a coisa mais urgente em saúde coletiva, no país, é a contenção das viroses e demais doenças infecto-contagiosas que a diáspora venezuelana trouxe para Roraima e que poderá virar uma pandemia se não for contido de forma precoce e enérgica, como ocorreu com a febre amarela, mas por outros motivos. O Ministério da Saúde precisará articular uma campanha massiva de vacinação contra o sarampo, que é a doença mais proeminente trazida pelos venezuelanos, podendo contar com Unidades Básicas de Saúde, Hospitais e até Exército e Marinha para tanto;
* O terceiro turno nas UBS é uma das propostas do ministro para que a atenção básica, que é a prevenção de doenças, como puericultura e consultas com clínico e ginecologista, seja universalizada. Esse terceiro turno, que não foi especificado pelo ministro em seu discurso de posse, gerou dúvidas e certo rebuliço entre os médicos, que temem ainda mais precarização do ambiente de trabalho e do serviço oferecido. Dúvidas, como se esse terceiro turno seria a noite, qual seria o regime de trabalho e a questão da segurança vieram à tona, testando desde cedo a proposta. É possível que os olheiros do ministério estejam atentos a isso, e antes de apresentar a proposta de maneira formal, discutam tais aspectos para que essa medida não seja um fracasso sonoro;
* O Mais Médicos é um programa que falhou miseravelmente em tudo – reitero: tudo – a que se propôs. Da parte educacional à assistência, o Programa Mais Médicos (PMM) não cumpriu nenhum de seus objetivos: ele não melhorou a cobertura assistencial do SUS; em vez disso, ele ocasionou a simples substituição dos médicos brasileiros pelos cubanos, já que estes eram pagos pelo governo federal; a qualidade da medicina diminuiu com os infelizes cubanos que são em sua maioria ineptos à realidade brasileira; e a quantidade estroboscópica de recém-formados em medicina pela mais de centena de escolas médicas criadas graças ao programa, que inundaram o mercado, diminuindo salários, condições de trabalho e a qualidade da medicina praticada por médicos vindo de escolas suspeitas, sem correspondente proporcional as vagas de residência médica que, antes do programa, já atendiam a apenas metade dos médicos formados e, em pouco tempo, não atenderá a um terço. Disse o próprio Mandetta “medicina não se aprende por atacado”, numa grave menção às faculdades de medicina caça-níqueis. Testes de progresso obrigatórios, fechamento de faculdades sem suficiência, exame de ordem e outras medidas duríssimas contra a orgia que se tornou o ensino médico no país vem por aí; além, é claro, da patente necessidade da expansão da oferta de vagas de residência médica, e não apenas em medicina de família e comunidade, que o programa criou e que não foram preenchidas por motivos óbvios.
* A valorização da atenção básica, paralelamente à reconstrução da rede hospitalar brasileira, é a coisa mais importante a ser feita no SUS a partir de agora. É dentro da atenção básica que poderemos reduzir a explosiva incidência de DSTs, o alcoolismo, as doenças crônicas como hipertensão e diabetes, a tuberculose, a AIDS, as doenças da infância, entre outras várias que, quando não tratadas, evoluem para casos graves, superlotando os ambulatórios e hospitais Brasil afora. No Brasil, outra pirâmide, que é a dos níveis de atenção em saúde, está de ponta-cabeça: o que deveria concentrar 70% dos usuários do SUS, que é a atenção básica, concentra metade; e o que deveria concentrar 5%, que são os hospitais, concentra o dobro. Esse é um dos motivos de qualquer hospital público de grande cidade no Brasil parecer um acampamento médico no Camboja;
* A rede hospitalar brasileira, não apenas a federal, mas ela toda – incluindo alguns hospitais privados que atendem SUS – foi destruída nos 13 anos de PT. Gestões incompetentes e com motivações políticas, cortes de verbas, desvios de recursos, indicações por coleguismo e não mérito, etc transformaram os hospitais públicos brasileiros em manicômios onde poucos profissionais honestos perdem sua saúde tentando atender a população. O tratamento agressivo contra a gestão parasita que se firmou nesses lugares, o franco investimento e a alocação sóbria dos recursos é a única solução para as masmorras que se tornaram os hospitais brasileiros. Paralelamente, as Santas Casas, muitas das quais realizam mais de 90% de seus atendimentos no SUS, precisam ser prioridade do Governo Federal no projeto de reconstrução da rede hospitalar brasileira. Diferentemente do que se pensa – um pensamento que é compartilhado por muitos membros do congresso –, as Santas Casas não são apenas hospitais filantrópicos que atendem SUS; elas se tornaram de fato, mas não de direito, hospitais do SUS. Verbas absolutamente desproporcionais ao volume de pacientes atendidos, abandono e doentes saindo pelo ladrão viraram a realidade dessas irmandades, que estão segurando as pontas afundando-se em dívidas pelo nobre e cristão espírito de servir ao próximo. Jair Bolsonaro, o presidente, estaria num caixão neste momento se a Santa Casa para a qual foi levado não apenas estivesse funcionando, mas se não tivesse equipe e centro cirúrgico preparado para seu crítico quadro. O governo deve tratar as Santas Casas como são, ou seja, hospitais não-estatais do SUS e que necessitam de ajuda material e em recursos humanos, para ontem.
3. Das cinzas da tragédia
A medicina brasileira, para além das mudanças artificiais que o Mais Médicos promoveu, passa por uma profunda transformação há vinte anos e estará completamente transformada até 2030. Ainda que o PT tenha decidido estatizar tudo que era possível, a tendência é que a nossa medicina copie cada vez mais a norte-americana, onde o privado impera. Mesmo que a crise tenha desestabilizado o poder de compra das pessoas e elas tenham investido menos em saúde, com o retorno do emprego e da renda, mais e mais gente irá reaver seus planos de saúde e voltar para a saúde suplementar.
O projetado é que, no médio e longo prazo, a saúde privada substitua quase totalmente a saúde pública, restando ao SUS estratégias em saúde coletiva, como vacinação e combate ao mosquito da dengue; e trauma, uma vez que as rodovias brasileiras são as que mais matam no mundo, sendo um problema de saúde pública que o Estado tem de lidar. O resto – consulta com especialista, procedimentos de baixa complexidade, pré-natal, cirurgias eletivas, inclusive as de alta complexidade, tudo isso – cairá nas mãos dos planos de saúde e contratos de saúde privados, porque eles não só oferecem mais coisas do que oferece o SUS, como oferecem melhor. Não é o foco abordar a questão de como as classes econômicas inferiores terão acesso à medicina privada, mas vouchers são uma boa alternativa.
Dentro dos rumos de liberal-conservadorismo que o país está tomando, não por uma posição de governo, mas por uma revolução cultural que o país está passando, voltar ao estatismo não é apenas ilógico por ele ser falho, é um contrassenso. Parece que uma boa parte dos brasileiros entendeu, e uma outra está começando a entender que o Estado, diferentemente do que se postulava, não é um Deus absoluto, o qual tudo deve circunscrever, mas deve ser apenas uma instituição, circunscrita pelas pessoas que nele viverem.
Com a diminuição do Estado, o SUS diminui também, bem como a influência do Estado sobre a saúde. A carreira de Estado para médicos, anunciada por Mandetta e recebida com euforia pelos médicos, especialmente os da Medicina de Família e Comunidade, é uma medida salutar para interiorizar a medicina e valorizar a atenção básica, já que o Mais Médicos falhou nisso também; no entanto, diferentemente do que se enseja, os salários não serão o equivalente ao alto funcionalismo público, como juiz e promotor, já que os médicos trabalharão para o Estado, enquanto esses outros são o Estado.
Não obstante, se a tendência é a diminuição do Estado, a carreira de Estado para médicos está vindo extremamente atrasada. Algo que deveria ter sido criado nos anos 40, dentro do contexto do reconhecimento oficial do Estado sobre a profissão de médico no Brasil, está chegando 70 anos depois, num momento em que a influência do Estado sobre tudo – inclusive a saúde – começa a diminuir.
Com a quantidade hiperbólica de recém-formados no mercado, chegando ao cúmulo de dez médicos disputarem o mesmo posto de trabalho em capitais – até antes do PMM, plantões em hospitais estavam equilibrados mais ou menos com a oferta de profissionais –, e o inegável depauperamento da formação médica nas novas escolas que vendem curso de medicina como se vende bala no semáforo, o cenário para o jovem médico se tornou lôbrego. Não há trabalho; a residência médica prevê 60h de trabalho semanais em edital pagando R$ 3500, isto se o médico conseguir a aprovação nessa modalidade de pós-graduação; e há uma dívida de quase meio milhão de reais para pagar saindo da faculdade.
É provável que, dentro de quinze a vinte anos, assim como ocorre nos EUA, apenas médicos especialistas estejam autorizados a trabalhar sem supervisão, como é hoje com quem sair da graduação e conseguir um plantão ou algum contrato com prefeitura. É uma medida muito dolorosa, especialmente nesse país onde a educação custa muito caro e o poder de compra é muito baixo, postergando mais ainda a possibilidade de retorno financeiro para quem é pobre e cursou medicina. O governo, na sua sanha educacional de “popularizar” a medicina, acabou desempregando o pobre que a consegue cursar e que não é filho de diretor de hospital para ter emprego garantido após a formatura.
A nova equipe do Ministério da Saúde está com a faca e o queijo na mão; não para melhorar a medicina, mas, ao menos, trazê-la ao padrão que tinha nos anos 2000, o que já seria um grande avanço. É possível fazer medicina de qualidade no Brasil. Mesmo com orçamento limitado e corrupção sistêmica, nossos médicos, enfermeiros e demais profissionais de saúde trabalham dia e noite, de janeiro a dezembro, incansavelmente, para atenuar o sofrimento do paciente que bate a porta. Agora, só falta o Estado fazer a parte dele – e não atrapalhar o que estiver caminhando sozinho.
Augusto Gaidukas
Estudante de medicina na PUC-Campinas. Possui formação em finanças pela mesma universidade.
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