Larry Rohter comete erros grosseiros ao tratar de Freyre e do Estado Novo.
O cidadão estadunidense Larry Rohter fez um bem ao Brasil oferecendo-lhe, e ao mundo, a biografia cuidadosamente pesquisada do Marechal Cândido Rondon. Em particular, vale destacar a história do tratamento dado a Rondon pelo establishment científico da época, que consistiu em sabotá-lo. O racismo científico e o progressismo político da época não admitiam a possibilidade de um homenzinho cor de cobre, nada nórdico, ser um grande explorador e naturalista: ou bem se era aventureiro e branco, ou bem se era aborígene e exótico. Rondon, brasileiro, era nativo e explorador, um mestiço de brancos e aborígenes a quem pouca coisa parecia exótica. Para ele, um amálgama humano de coisas que pareciam contraditórias ao europeu do século XX, não havia espaço naquele mundo científico de predominância anglófona.
A biografia seria muito melhor, porém, se não se empenhasse em ser mais um prego da pregação uspiana de que somos um país no mínimo tão malvado quanto os demais. Nessa toada, comete erros grosseiros ao tratar de Freyre e do Estado Novo. E a sequência uspiana da difamação de Freyre, que é a difamação do Brasil, se repete em Rohter.
Comecemos com esta frase à página 475, com ênfase minha:
[Rondon] Também foi amplamente louvado como o autor da frase ‘Morrer se preciso for, matar nunca’, que, no entanto, se tornou uma espécie de afirmação positiva da suposta superioridade moral brasileira sobre outros países que haviam tratado seus povos indígenas com mais crueldade – e isso enquanto a Amazônia era desmatada e os índios expulsos de suas terras ancestrais por pecuaristas, mineradores e madeireiros apoiados e financiados pelo governo.
Por que suposta superioridade moral? “Superioridade” é um termo que necessariamente se aplica em comparações. É verdade que o Brasil poderia ser melhor com os seus índios, e que é possível fixar ideais mais elevados do que a realidade brasileira. Mas haverá algum país que tenha sido melhor nisso do que o Brasil?
Para começo de conversa, a Igreja Católica declarou que os índios têm alma – contrariamente aos protestantes, que viam no índio algo como um yahoo das viagens de Gúliver. No começo do século XVI, celebrava-se de igual para igual o casamento cristão do português Caramuru com a índia Catarina. Em 1537, o Vaticano emite bula proibindo a escravidão de índios, e assegurando que têm alma. A condição humana dos índios nunca foi negada publicamente pelo aparato estatal no Brasil. Além disso, como o próprio Rohter aponta, tivemos como quadro do Estado, e depois como ídolo público, um militar pacifista que, no trato com os índios, dizia que era preferível morrer a matá-los. O Brasil nunca teve uma figura pública amada como o General Custer, empenhado em matar os índios. Que se comparem, então, as populações do Pará e de Utah, antes de declarar que o Brasil é supostamente superior a outros países no que concerne à questão indígena.
Enfatizo as características “estatal” e “público” porque estas são imprescindíveis para julgar moralmente uma coletividade. Um caso clássico de coletividade julgada é a dos alemães durante o Reich. É claro que declará-la culpada não significa afirmar que todo e cada alemão é culpado – afinal, havia opositores secretos, crianças e incapazes. No entanto, é preciso assentir que a imensa maioria da sociedade alemã foi no mínimo complacente com a ideia de obrigar o seu vizinho a usar uma estrela de David na roupa por causa da raça[1] (não adiantava a conversão sincera ao cristianismo), de tirar-lhe o emprego público, de proibir-lhe o exercício de uma série de profissões, de confiscar-lhes os bens e de deportá-lo para algum cafundó do Leste. Hitler foi eleito com propaganda antissemita, e permaneceu assim no poder com grande apoio popular. Quer dizer, portanto, que a sociedade alemã revelou ter sérios problemas morais.
O mesmo poderia ser dito se os nazistas não tivessem se elegido com uma propaganda antissemita, e se às escondidas sequestrassem e matassem judeus? Não. Nesse caso, poderíamos dizer que a sociedade alemã era desatenta ou desleixada, mas não imoral. E muito menos culpáveis seriam, se agentes particulares matassem judeus e ciganos de localidades remotas às escondidas.
No Brasil – como ensina o próprio Rohter – tivemos, na esfera mais instruída, a defesa de uma solução final (sic) para os índios. Justo um alemão, chamado Hermann von Ihering, protagonizara uma polêmica com Rondon: Ihering, estimado pelos cafeicultores paulistas e escudado pelo racismo científico, defendia o extermínio; Rondon, a seu turno, defendia a integração. Se um se tornou um anônimo, e outro herói nacional, isso é algo que depõe a favor da moralidade da sociedade brasileira. Tanto mais porque, como Rohter narra, Rondon passara a ser difamado na imprensa pelos varguistas após o Golpe de 30, vivera uma longa fase de ostracismo – e, ainda assim, era o ídolo amado de muitos brasileiros.
Ao contrário de Hitler, Vargas, simpatizante do nazismo, não chegara ao poder por eleições. Ao contrário de Hitler, Vargas, simpatizante do nazismo, tinha uma doutrina racial oficial mascarada pela propaganda nacionalista.
Em 1988, Maria Luiza Tucci Carneiro publicou O antissemitismo na Era Vargas, onde revela que, às escondidas da sociedade brasileira, o Itamaraty do Estado Novo expedia circulares secretas para impedir a entrada de judeus, negros e amarelos no Brasil. Os mais afetados pela proibição foram obviamente os judeus, que faziam o possível e o impossível para conseguir entrar e permanecer no Brasil quando o Reich avançava cada vez mais pela Europa. Como as circulares eram secretas, não contavam com a proibição. E nem sequer imaginavam que aqui haveria um chefe de polícia política em colaboração com a Gestapo, pronto para prender judeus que tivessem a mínima associação com o comunismo.[2]
Mas frisemos que os negros eram também banidos nas circulares secretas, e isso ao tempo que a imigração de nórdicos chegou a ser fomentada pelo governo. Embora nem os africanos, nem os nórdicos tenham sido muito afetados pelo varguismo (já que eles não tinham interesse por estas bandas), isso revela que é falsidade grosseira a afirmação feita por Rohter às páginas 428 e 429 de que Freyre apoiaria um projeto racista do governo Vargas, que consistiria na criação de um novo homem tropical, mestiço de índio, branco e preto. Ainda que Rohter não tivesse se inteirado de um livro de política racial varguista lançado em 88, nada justifica o desconhecimento do fato sabido e consabido de que o intelectual oficial do varguismo era Oliveira Vianna, um arianista que contava com toda a objeção de… Freyre! Qual era o projeto do arianismo? Encher o Brasil de arianos, e ter fé na degeneração de mestiços. Seria um processo de branqueamento que se daria impedindo o ingresso de não-arianos, fomentando o de arianos, e diluindo os demais sangues na mestiçagem até desaparecerem.
Não bastasse isso, é de conhecimento público e notório que Gilberto Freyre foi perseguido pelo Estado Novo. Na Bahia, o primeiro interventor assumiu o estado em 10 de novembro de 1937; e, como informa Luís Henrique Dias Tavares,[3] já no dia 19 do mesmo mês, “1.694 exemplares de romances de Jorge Amado foram retirados das livrarias e bibliotecas e queimados no pátio da Escola de Aprendizes de Marinheiro. Todos os romances de José Lins do Rego, Rachel de Queiroz e Graciliano Ramos, e o livro Casa Grande & Senzala, de Gilbero Freyre, saíram da sala de leitura da Biblioteca Pública e foram proibidos nas livrarias da cidade.” Freyre foi o único a ter um livro queimada, e não toda a sua obra. Os autores banidos eram ligados ao comunismo, e a pessoa é o pretexto para a queima, mesmo que não se saiba o conteúdo. O livro de Freyre, não: é um livro famoso e de vida própria, “até mesmo popular”, como disse Rohter (p. 428). Mas, quanto à pessoa de Freyre, às vésperas da queda do regime, ele discursava em público no Recife quando a polícia da interventoria começou a tirotear a multidão para dispersá-la, e matou o estudante Demócrito de Souza Filho.
O livro de Freyre é “até popular” a despeito de toda campanha difamatória empreendida por sociólogos da USP. Rondon tem uma imagem muito positiva, a despeito dos esforços do Estado Novo para difamá-lo e anulá-lo. Que Rohter abandone os preconceitos, e leia essa obra que, no mesmo ano da ascensão de Hitler, afirma serem sanitários, e não raciais, os problemas dos mestiços brasileiros.
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NOTAS
[1] Não adiantava a conversão sincera ao cristianismo, e os nazistas chegaram até a arrancar uma freira do convento (Edith Stein) e levá-la para o campo de extermínio por ser etnicamente judia.
[2] Veja-se o caso de Genny Gleizer, adolescente romena de apenas 17 anos deportada para morrer na Europa. Curiosamente, sua irmã viria a se casar com o varguista/brizolista Darcy Ribeiro. O chefe de polícia política era Filinto Müller.
[3] História da Bahia, p. 422.
Bruna Frascolla
Doutora em Filosofia pela UFBA e pesquisadora colaboradora da Unicamp.