A visão católica das coisas começa pela clara percepção da realidade.
Quando tudo parece se desfazer é que nos damos conta do permanente. Tratar de uma obra que tem como título A Constituição Cristã dos Estados poderia ser algo antiquado, enfadonho, atrasado ou fora de lugar. Mas não, é clássico, é renovador. A questão ganha um frescor especial, inclusive pela forma agradável e clara, na pena do jurista espanhol Miguel Ayuso Torres. Lançado no Brasil em 2019 pela editora Resistência Cultural, e acompanhado de ensaios de Ricardo Dip, Carlos Nougué e Juan Fernando Segovia, o texto principal lança centelha sobre uma nova estratégia à política católica.
Década após década a literatura, a arquitetura, a música e as artes em geral representaram o século XX como o ápice do mundo veloz e cansado. Esse paradoxo foi compreendido pela sociologia como a própria característica e marca de decadência da modernidade, seja pelo colapso da sociedade industrial[1], a identificação de uma sociedade de risco[2], a fluidez e inconsistência de uma modernidade líquida[3], a noção de uma sociedade em rede[4], a era da imprevisibilidade[5]. São esses os despojos percebidos das linhas que marcaram o novo regime: a identificação do tempo com o futuro, quase indiferente ao passado; a ideologização da vida, para além da própria política; a hipertrofia da politização do cotidiano; bem como o insistente apelo democratizante[6].
Por mais que essa rota jamais propusesse alguma estabilização, é bem verdade que sempre teve como principal empecilho a religião, precisamente a Igreja católica. A secularização é o eixo cortante que assinala a história mundial dos últimos séculos. Trata-se da saída da religião, da retirada da cruz do centro da vida. O propósito foi o de suspender o sacrifício, a vida do espírito, a dimensão do sobrenatural. Capítulo significativo e recente desse processo refere-se ao destronamento de Cristo pela própria Igreja, a partir do Concílio Vaticano II. De fato tudo isso aconteceu. Mas não é o fim, nem tudo foi arrasado. A Igreja permanece, ainda que contra a revoada.
A sociedade moderna, secularizada, liberal, auto-centrada, traz em suas certezas algo de débil e perecível. Outrora novo, o laicismo se tornou velho. A insustentabilidade da autonomia humana é tamanha que todos estão sozinhos na multidão. Impera a insegurança, porque paira a desconfiança. Diante disso, e sem timidez, sem acanhamento, sem constrangimento, trazer à tona a questão de uma doutrina política católica é no mínimo um alento, um suspiro, uma marca da Boa Nova.
Quando estava me convertendo, uma pessoa tentava me dissuadir do caminho dizendo: “vais te tornar católico, logo agora que a Igreja acabou?” A provocação era conhecida, remontava a Voltaire. Mantra vencido, mas mesmo que incomodasse, o fato é que hoje, depois de muita insistência contra todas fraquezas, e minimamente percebendo a imensidão do edifício religioso, posso reproduzir em resposta algo que um outro amigo me falou: “talvez o catolicismo ainda nem começou”[7]. Há um quê desse espírito no livro de Ayuso, pois em poucas páginas demonstra como já temos todo um monumento pronto para desfrutar, abraçar, aprender e aplicar a respeito da necessária vida cristã dos estados.
Quando já se viu o inferno, a insistência no erro é loucura. Um dos resumos para o acidente nuclear de Chernobyl, em 1986 na cidade de Pripyat (Ucrânia), é que ali foi como se Deus tivesse aberto um pedaço do mundo para que os homens pudessem encarar o que era o inferno. Já sabemos de tudo isso, e por isso talvez nunca estivemos tão prontos, tranquilos, serenos, e dispostos a enfrentar aquilo que muitos asseguravam como desaparecido. Ao contrário, não há nada mais novo do que falar sobre o Estado confessional, o erro da separação Igreja-Estado, o beco sem saída da liberdade religiosa e de como é preciso restituir uma doutrina política da Igreja (que ela própria se desvirtuou).
Como fazer isso quando o balanço é de uma sociedade radicalmente secularizada, até mesmo anticristã? Ayuso acompanha as percepções sociológicas da crise, demonstrando, a partir de um caro conceito de Marcel de Corte – a “dissociedade” – como se deu o fracasso da vida comunitária no mundo atual. A crise civilizacional é de reconhecimento, na medida em que não nos reconhecemos nas catedrais. O incêndio na Igreja Notre-Dame de Paris não foi mais que um símbolo máximo desse descaminho.
Frente a isso o empenho é pela reedificação. Miguel Ayuso expõe como o material para uma Doutrina Política da Igreja já está pronto, do que foi deixado pelos documentos da Igreja ao longo dos séculos. A estratégia apenas precisa ser refeita e reintroduzida na própria instituição de São Pedro. O primeiro passo é ter Cristo como “Cristo-Rei”, o que corresponde a encarar o erro, o malfadado consórcio com a modernidade que encaminhou a Igreja para a sua crise, levando-a ao descumprimento com o mandamento de São Paulo, quando dizia: “Não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação do vosso espírito, para que possais discernir qual é a vontade de Deus, o que é bom, o que lhe agrada e o que é perfeito” (Carta aos Romanos, 12,2).
Definitivamente, sem reparar o erro da mensagem conciliar (do Concílio Vaticano II) não se pode acolher o que os papas subsequentes ensinaram. Há ocasiões em que Miguel Ayuso é muito claro a esse respeito, como ao demonstrar que João Paulo II foi diametralmente contra São Pio X, ao defender a separação Igreja Estado, enquanto a tradição doutrinária revela somente a necessária distinção.
É curioso pensar a catolicidade sem o norteamento da Igreja romana. Mas esse é um convite que Ayuso deixa, em nome da própria reintegração da autoridade dessa mesma Igreja. Nosso autor está bem acompanhado neste bom combate, com um dos ícones do laicato francês da segunda metade do século XX:
E o texto de Jean Madiran abre caminhos, e convida a viver toda a vida cristã, a dar um juízo cristão sobre cada ideia, sobre cada ato, sobre cada acontecimento, o que, ainda que a Igreja hierárquica manifestamente não faça – porque não pode fazê-lo -, nos convida a fazê-lo constantemente, mas, isso sim, a nosso risco e aventura, enquanto muitos sistemas ideológicos que nos rondam querem persuadir-nos, pelo contrário, de que não o façamos, de que renunciemos a fazê-lo catolicamente.
É um apelo à coragem, ao enfrentamento, sem ideologismo e sem brados revolucionários. Afinal, a visão católica das coisas começa pela clara percepção da realidade. A descrição mais crua da política, como fenômeno de embate entre amigo e inimigo, veio de um católico, do alemão Carl Schmitt. Quer dizer, não há temor católico de se enfrentar a política, ela de fato é o reino de César, mas sem enfrentá-la com as virtudes cardeais não logramos cumprir os desígnios mínimos na terra. Tanto que Ayuso encara que o problema do Estado católico surge justamente por estar alijado do confessionalismo. Uma política católica se perdeu, pondo em risco a própria catolicidade. A Igreja-missão foi sobreposta à Igreja-cristandade, quando esta era capaz de garantir aquela. Daí a tarefa urgente de reedificar uma doutrina política católica.
Não há fórmula perfeita, mas temos as mensagens dos papas e casos exemplares. No caso, um elogio no texto é feito a Charles Maurras, como caráter de integração da sã política com o direito natural, sem cair no desespero. É maurrasiana também a lição sobre a diferença entre o desespero e a prudência, entre o mortal e o imortal na política. O desespero é o reino da insensatez, pois é uma concessão gratuita ao Inimigo. Se estamos lidando com o permanente, com a política que não é para a mesquinhez do tempo das nossas parcas vidas, mas de uma trajetória, dos nossos filhos, então só uma visão do infinito é capaz de reviver nos povos a sã política. E isto só se faz com prudência.
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NOTAS
[1] Há uma excelente descrição desse processo de inviabilidade da modernidade industrial a partir do último livro publicado do sociólogo Alberto Guerreiro Ramos, inspirada na filosofia política de Eric Voegelin. GUERREIRO RAMOS, Alberto, A Nova ciência das organizações: uma reconceituação da riqueza das nações. Rio de Janeiro, Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1981.
[2] O mundo contemporâneo atingiu um nível de insegurança, desconfiança e descrédito capaz de pôr o paradigma da sociedade industrial no passado. Ulrich Beck descreve esse fenômeno em seu Risk Society – Towards a New Modernity, lançado em 1986.
[3] Outra produção sociológica marcante da crise do mundo moderno é a obra de Zygmunt Bauman, Modernidade Líquida, lançado em 1999.
[4] Ver Manuel Castells, A sociedade em rede, de 1996.
[5] Sérgio Abranches apresentou num excelente ensaio sobre o mundo em transição que estamos vivendo, em A Era do Imprevisto, de 2017.
[6] Aqui refiro-me aos vetores da modernidade segundo Reinhart Koselleck, como em Futuro Passado.
[7] A frase foi tomada de uma entrevista do filósofo Remi Brague.
Luiz Ramiro
Professor de Segurança Pública (UFF/CEDERJ) e Coordenador-Geral na Fundação Biblioteca Nacional.
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