O título já nos remete ao ilusório véu de Maya que encobre a Vontade e a iminência da morte.
“Na cidade só restam escombros e a porta arrombada está em pedaços, pois isso acontece na terra, no meio dos povos, como com as oliveiras que alguém vareja, como com as uvas que, acabada a vindima, alguém rebusca.” – Isaías, 24:12, 13.
Para Thomas Merton[1], o terreno literário é permeado pelo “preconceito da época”. Não se trata de “preconceito” no sentido político-ideológico do termo; o sábio trapista refere-se ao senso comum de conceber-se um conceito sem a experiência de vida, sem seu referente real.
Goethe contava que, nas tertúlias de sua infância, as crianças aplaudiam umas às outras, não pela qualidade do poema, mas para poder recitar seus próprios versos e receber os louvores. Desde a meninice, as avaliações alheias podem ser equívocas.
Quanta incompreensão ainda tem sofrido Rilke, mutilado pelos açougueiros de vanguarda? A Virgem Maria e os Anjos, que o poeta pintara em sua poesia como ícones, janelas suspensas na realidade através das quais vislumbramos a transcendência, são tomados por ídolos, meros conceitos recheados de imagem e som…[2]
A permanência de “topoi” da poesia greco-latina e do o uso da mitologia como forma arquetípica em nosso tempo constringe os críticos, embora diversos poetas modernos tenham recorrido a esses recursos. O engano é o mesmo.
No Brasil, as acusações de plágio em Olavo Bilac e Raimundo Correia revela-nos mais sobre os acusadores do que sobre os poetas. E o poeta que continua a utilizar os mitos como arquétipos e símbolos será prejulgado como “neoclássico” e “antiquado”.
As teorias de vanguarda tomam a técnica poética pela Forma e o valor estético pela atualidade. A mudança técnica não indica que a forma poética tenha progredido. Aí o prévio juízo teórico de que sonetistas contemporâneos são “parnasianos”, “arcaicos” por usarem formas fixas. Além disso, a “atualidade” é um critério das teorias administrativas de adoção duvidosa para interpretar poesia, a maior de todas as artes. A finalidade de muitas dessas teorias e narrativas historiográficas é esvaziar a Forma e a preencher com discursos do debate público, o que chamam de politização, como se preciso fosse votar uma lei para decidir o que é belo ou como ler um poema, ou ainda se tal poeta é mais ou menos simbolista por usar a palavra “noite”.
Embora críticos e teóricos possam prejudicar os escritores – e mesmo o revisionismo parece indicar muitas vezes uma demão de verniz teórico, como a tradução de Sousândrade para o vernáculo… –, estagnando toda uma cultura literária, lembra-nos Merton que o próprio escritor também pode ter uma visão precária de si mesmo. Se não sabe quem é, ou ainda se tem uma visão distorcida de si, o escritor jamais se desenvolverá. E não se trata de ter sucesso de vendagem, crítica e público; mas de integração íntima: ele deve integrar os elementos circunstanciais aos pessoais. Ou na famosa frase de Ortega Y Gasset: “Sou eu e minhas circunstâncias.” Sem termos em mente todas essas dificuldades de compreensão e sem mesmo a humilde coragem de errar, jamais poderemos ler um autor em profundidade.
Como a arte oriental de restauro de cerâmicas, o Kintsukuroi, que consiste em colar os cacos com ouro, o escritor deve reunir os fragmentos percebidos em sua experiência de vida pela forma artística. É o que vemos neste Cerração, de Alexei Bueno, o livro de versos mais desolado do autor. Enquanto nos anteriores, As desaparições, de 2009, e Anamnese, de 2016, a melancolia extravasava no humor schopenhaueriano, sobretudo em relação à absurda barbárie brasileira, nestes versos notamos um fôlego mais largo a integrar os elementos circunstancias da vida e a sua própria personalidade. O título já nos remete ao ilusório véu de Maya que encobre a Vontade e a iminência da morte, como a concebera Schopenhauer, que ainda asseverava que é pela contemplação do Belo que alcançamos as formas imortais.
CERRAÇÃO
Gritas na cerração. Ninguém responde.
Gritas de novo. É isso. Estamos sós.
Mudas de lado. Nada vale o aonde.
Nem o eco te ouve, e ele é a tua própria voz.
É uma alegoria que nos faz lembrar de O albatroz de Baudelaire; não por conta dos elementos trágicos baudelairianos da maldade e do ideal, mas porque, nesta quadra, temos o clamor do poeta, proferindo do alto contra o véu que cega a muitos de nós. É por essa necessidade formal e expressiva que os versos desse livro são mais largos, nada excludente ou acessório, em relação aos lapidares versos de livros anteriores, ainda que não tenham deixado de ser usados aqui, como intensificadores de efeito.
Por vezes, no entanto, Alexei Bueno parece algo mais cético do que o supracitado Rilke e também do que T. S. Eliot, que esperavam no ouro da poesia a juntar os cacos que somos:
AVISO AOS NAVEGANTES
Não há porto, nem angra, nem baía
Onde hás de descansar, essa corrente
Que é o tempo, o seu dever é pôr-te à frente
Da calma afortunada e do bom dia.Adiante, além, mais longe, é curto o estágio
Da paz nas águas com seu cerne infixo.
Traidor é o fado, e mais quando é prolixo,
E os pedaços só se unem no naufrágio.
Ou ainda em:
MARULHO
O sem sentido algum,
Nenhum, nenhum sentido,
Foi o chão concedido
À nossa sede de um.
[…]ULITIDADES DO NADA
Tu, que tiveste tudo e que perdeste,
E compreendes que nunca o terás mais,
Não fosse a morte o teu sabido cais,
Como aguentar suplício mau como este?
[…]
O poeta convida-nos a contemplar as águas do tempo. É a metáfora shelleyana, mas também de toda a tradição lírico-metafísica, de Heráclito e Camões até Ivan Junqueira. Convém lembrar que as águas doces eram símbolo do batismo e do nascimento, enquanto as águas salgadas, o da morte. Os fragmentos, na apavorante imagem dos destroços marítimos, estão aí presentes. Mas há também o anelo pela união amorosa: o desejo e a necessidade do ouro que cola os cacos de nosso ser.
Não se trata de versificações de um sentimento de fracasso, que costumamos ler em muitos profundamente rasos em si mesmos; é antes a voz amorosa que busca na “vida e visão” (Gênese) seu canto. É essa contemplação da existência que nos compunge profundamente. Leia-se, na íntegra, o comovente:
NEW WORLD
Na Via Láctea que parece um bólido
De fogo e luz a atravessar o espaço,
Duvidoso de ser um corpo sólido
Na sua torre de concreto e de aço;Debaixo dos satélites, varado
Por ondas incontáveis e invisíveis,
Que se incorporam, seu destino achado,
Em cenas, vozes, letras pouco críveis;Vendo no teto as sombras evocadas
Pelos olhos dos carros, sob o ruído
Das aeronaves auto-orientadas,
Entre antenas e drágeas estendido,Como um corpo em parte seu, em parte alheio,
Maior que o alcance de quaisquer hipóteses,
Já que uma audaz visão rasgou seu seio
E o refez com tecidos e com próteses;Rente aos pontos de luz dos aparelhos,
Constelações que desconhece a aurora,
Herdeiro de milhões de hojes já velhos,
De sumo engenho humano, um homem chora.
É uma ekphasis que nos convida também a compartilhar da mesma visão e vida experimentada. A princípio, o poeta oferece-nos o cosmos, como no filme Ad Astra de James Gray. Mas aos poucos a plenitude e a beleza concretizam-se na imagem da fragilidade da existência humana. Nem todo o engenho do progresso tecnológico nos livrará da morte. E aí o leitor pode se perguntar, mas que estranho amor pela vida é esse? E creio que Alexei citaria Cioran: “Eu não sou um pessimista, eu amo este mundo horrível”. É o que o podemos ler no admirável Lázaro, dolorosa reflexão sobre a existência, o desprezo comunitário e a esperança na morte – uma segunda, neste caso –, comparado ao homônimo de Asunción Silva, a reunir Eclesiastes e Schopenhauer.
E embora este seja um livro profundamente melancólico, marcado pela finitude, pela ruptura e separação, nele vemos também o ouro amoroso que unia os pedaços. É como em Hora Absurda de Pessoa: “Meu coração é uma ânfora que cai e que se parte…”
POUR ELLE
[…]
O que é tudo sem ti, visão amada?
[…]
És um sonho, como seremos todos…
[…]
Amor, o deus maldito, ri com calma,
A neblina se evola de teus dentes.
Há que cruzar, fragmento, as ruas doentes
Onde se esconde a alma de tua alma.
A ausência amorosa despedaça o coração do poeta, que é como uma “ânfora” evocada por Pessoa, talvez outrora transbordante de vinho… Conferir também os poemas Uns cacos, Fragmentos, Desastre, e ainda a evocação amorosa nestes versos:
“Esse amor, não cumprido neste mundo,
A outros passará
Como a estrela que há muito não há,
Fixa no céu sem fundo? […]”, do poema Revolta.
“Se Amor pudesse, o Tempo mataria,
Seu pai no entanto. Ele só quer o instante. […]”, de Os quatro elementos.
Trata-se de uma lírica amorosa que nos remente aos monumentais, Elegia de Marienbad, de Goethe, e Em despedida: proibindo pranto, de Donne. Mas há um preconceito de nossa época, que precisamos esclarecer aqui, quando lhe caracterizamos como lírica amorosa e melancólica.
William James não pudera conceber a melancolia de Goethe, o olímpico. Mas o espanto do autor de As Variedades da experiência religiosa é também o nosso. Devido ao prestígio da psicologia, não raro, confundem-se melancolia e sentimento patológico de fracasso (depressão etc.).
Na teoria dos humores, a melancolia indicava aspectos da personalidade. A bílis negra era seca e fria, correspondendo ao elemento terra. Análogo à terra, o melancólico guarda memórias e pecúnias; é introspectivo; tende a imobilidade e ao onirismo em vez da ação. Por acumular uma porção grande de realidade, é um pessimista tentado pelo demônio do tédio[3], como dizia Evágrio Pôntico.
Desde Aristóteles[4], discutia-se sobre a genialidade ser própria do temperamento melancólico, mas sempre a partir da compreensão daquela teoria de Hipócrates, o que deixa de acontecer com as técnicas psicanalíticas e a criação de uma mitologia arbitrária para descrever cientificamente as personalidades, através de distúrbios…
Se por um lado a “melancolia” passou a ser um sintoma patológico, o “gênio” ganhou status de alguém dotado de inteligência a ponto de criar um aplicativo ou uma teoria equacionável que descreva e matematize uma porção do cosmos, que quanto mais minúscula maior e mais real… Nada mais distante do sentido antigo de “gênio” como “talento”, alguém congenitamente habilidoso.
Com coragem, Ortega Y Gasset sabia desse nosso preconceito de época em relação aos termos “gênio” e “melancolia”, quando buscou em sua experiência circunstancial algum referente que lhes garantisse inteligibilidade, encontrando na instabilidade do homem de gênio um aspecto da aversão biológica feminina[5]. Confirma-se a “Queda que as mulheres têm pelos tolos”, título do famoso ensaio francês[6] traduzido por Machado Assis.
Portanto, quando falamos aqui que a lírica amorosa de Alexei é melancólica, dizemos que ela trata analogicamente das profundezas da alma, assim como sua genialidade está enquanto criação de espírito. Veja-se, por exemplo, o belíssimo Orfeu e Eurídice, de uma imagem impressionante e melancólica:
Só o seu pé esquerdo não estava
Banhado pela luz. O corpo inteiro
Vestia o ouro do dia. A vida inflava
Seus pulmões. Lá do abismo o ente primeiroAlcançava o retorno. Por que a olhaste?
[…]
Para os alquimistas, o ouro era o símbolo da perfeita realização espiritual. Lembremos da imagem áurea do Santo dos Santos, proferida por Ezequiel, como um carro de fogo, guardado por anjos chamejantes. É um cubo de ouro d’Aquele que é Amor[7]. Aí a busca por transmutar os metais pobres em ouro ser antes aspectos de ascese espiritual. De modo análogo, podemos pensar que a técnica oriental de restauração de cerâmicas simboliza a junção dos fragmentos, que são de menor valor em relação ao ouro e menor ainda quanto ao amor – e é este que brilha, antevisto através desta Cerração.
______
NOTAS
[1] Cf. MERTON, T. Novas sementes de contemplação, 1961.
[2] Cf. SCHADECK, Wagner. Maria contemplada: a unidade poética de Rilke. In.: RILKE, Rainer Maria. A vida de Maria. Ed. Ecclesiae, no prelo.
[3] Ou ainda como “o demônio do meio-dia” ou “acídia”. É o que Musset e Baudelaire, posteriormente, chamarão de Spleen.
[4] Cf. O homem de gênio e a melancolia. Ed. Lacerda, 1998.
[5] Cf. Estudos sobre o amor. Trad. Wagner Schadeck. Ed. Vide, 2020.
[6] Cf. Victor Hénaux. De l’amour des femmes pour les sots, 1850.
[7] Cf. BARKER, Margaret. Introdução ao Misticismo do Templo. Editora Filocalia, 2017.
Wagner Schadeck
Nasceu em Curitiba, onde vive. É tradutor, ensaísta, editor e poeta. Colabora com a Revista Brasileira (ABL), com a Revista Poesia Sempre (BN) e com os periódicos Cândido e Rascunho. Em 2015, organizou a reedição de A peregrinação de Childe Harold, de Lord Byron, pela Editora Anticítera.
[email protected]