Bota o retrato do velho outra vez?

por Lucas Baqueiro (04/01/2022)

Não bastasse reciclarmos ideias ruins, somos fanáticos por reciclar, também, políticos horríveis.

O Brasil é uma gigante usina recicladora de ideias ruins. Dizia Millôr Fernandes que “quando uma ideologia fica bem velhinha, ela vem morar no Brasil”. Parcialmente correta, a frase do gênio merece um aditivo: é importada quando comprovadamente passou da validade e só causa danos. Nossa política é uma campanha de caridade que pede por roupas não-perecíveis e alimentos usados.

Evitando o pernosticismo, vale lembrar Weber e seus três tipos puros de dominação legítima: a liderança tradicional, a carismática e a racional-legal (ou burocrática). Em curta explanação, seria a liderança tradicional aquela modelada na autoridade paterna: o chefe de família dentro da unidade familiar, o Santo Padre dentro da Igreja Católica, o rei em seu reino. Já a carismática é a figura que, a grosso modo, faz valer o seu domínio e vontade como manifestação inequívoca do povo. Quanto à racional-legal ‒ embora nem valesse comentá-la, já que falamos de Brasil, uma seara onde esta se desconhece na prática ‒ é aquela que prioriza primeiro a vontade estabelecida pelo ordenamento jurídico e pelos princípios legais, para depois dar a sua conformação particular na execução.

Mas, por que citar Weber a esta altura do campeonato? Ora, não para outra coisa senão apontar que estamos presos à infância mental da política. Consideremos a nossa idade enquanto país, duzentos anos incompletos desde que recebemos a maioridade e tornamo-nos capazes de assumir as nossas próprias contas ‒ àquele glorioso evento onde o senhor D. Pedro I, em um fatídico sete de setembro, acometido de dores intestinais e agachado em plena obra à beira do Riacho Ipiranga, resolveu parir junto à sua diarreia uma outra mais fecal das ideias: gritar “independência ou morte!” e deixar que nós brincássemos de país. Pois, se duzentos anos temos, e em duzentos anos chegamos neste estado de imaturidade, padecemos de retardo grave ou demência senil.

O Brasil, durante o começo de sua história enquanto nação, viveu o domínio tradicional sob a égide da dinastia de Bragança. Depois, passou a viver um ciclo interminável de lideranças carismáticas, totalitárias ou populistas, cada uma à sua natureza, sem descanso. Raros e pontuais, ao longo de cento e trinta e dois anos de República, foram os casos em que uma liderança racional-legal esteve no centro do poder: logo a sanha populista varreu-lhes para o ocaso.

Alguém poderia dizer que estamos no fundo do poço, mas ainda há um longo caminho para que cheguemos lá. Trabalhamos continuamente para que este poço seja mais profundo que o poço superprofundo de Kola, que alcançou doze quilômetros de profundidade. Historicamente temos cavado à busca de ideias ruins para reciclar coisas como o positivismo, o fascismo, o autoritarismo militar, o socialismo de todo o gênero, o desenvolvimentismo irresponsavelmente fiscal. Quando não encontramos uma ideia suficientemente ruim para adotar, mandamos trazer de fora, colonizados como somos: resolvemos importar dos Estados Unidos um neoconservadorismo rasteiro e um identitarismo pós-modernista e soi disant decolonial que dispensa comentários.

Somos o contrário, aliás, de países como a Alemanha: celeiro das piores ideias que a humanidade já teve, depois de sentir os efeitos da devastação que lideranças com um parafuso a menos, sejam tradicionais como o kaiser Guilherme II, sejam carismáticas como o ditador Adolf Hitler, adotou para si a postura de privilegiar apenas o domínio racional-legal como modus operandi político. Desde 1949, quando o país voltou a se governar sozinho (isto é, excluída a Alemanha Oriental, reunificada em 1990, que era um satélite soviético), valem sempre em primeiro lugar os princípios fundamentais do país, e não o Chanceler (primeiro-ministro) da vez. Não importa se é o devoto católico Konrad Adenauer, o ex-socialista revolucionário Willy Brandt, se é a conservadora Angela Merkel, ou se é o social-democrata Olaf Scholz. Sequer importa se o país é governado pelos democratas-cristãos, pelos sociais-democratas, pelos liberais-democratas, pelos verdes, ou por qual for a coalizão no poder à vez: o Estado não muda, seus princípios não mudam, e a estabilidade política e social é a prioridade de quaisquer dos ocupantes do Bundeskanzleramt.

Aqui em Abya Yala, como diria Márcia Tiburi ‒ outra influenciadora na reciclagem de ideias que não servem para adubar, mas contaminar o solo ‒ em contraponto ao turbotecnomachonazifascismo supostamente contido na heterodenominação patriarcal europeia e capitalista “América Latina”, a banda toca uma música diferente toda vez que o maestro é trocado. A cada morador do Palácio da Alvorada, o Estado muda, como se tivesse sido refundado, seu modo de funcionar alterado, e os princípios fundamentais todos desmantelados para se adequar à personalidade do Presidente da República. Aliás, não é a república que tem um presidente, mas sempre um presidente que tem a república.

Não bastasse reciclarmos ideias ruins, somos fanáticos por reciclar, também, políticos horríveis. Nada fala mais sobre o Brasil do que um dos mais brilhantes jingles políticos já feitos, a marchinha Retrato do Velho, eternizada na voz de Chico Alves:

Bota o retrato do velho outra vez / bota no mesmo lugar / bota o retrato do velho outra vez / bota no mesmo lugar / o sorriso do velhinho faz a gente trabalhar (bis) /Eu já botei o meu / e tu, não vais botar? / Já enfeitei o meu / e tu, vais enfeitar? / O sorriso do velhinho faz a gente se animar (bis).

A animada marchinha, que comemorava o retorno de Getúlio Vargas à presidência da República em 1950, muito diz sobre a nossa tendência de trazer de volta o que já tinha sido solenemente chutado do poder. O velho do retrato, que chegou ao poder através de golpe de Estado em 1930, prometeu democracia depois de promulgar uma Constituição em 1934, deu novo golpe de Estado em 1937, governou como um ditador fascista até 1945, torturou, matou e prendeu dissidentes políticos, e construiu a primeira grande máquina de culto à personalidade, foi trazido de volta ao poder como se fosse a salvação da humanidade. Em seu retorno, fez um governo pífio, sem solidez política, com indicadores sociais e políticos que patinavam, e cujos escândalos de corrupção levaram-no, no limite, ao suicídio, em 1954. Em defesa da persona de Vargas ‒ se é que há defesa possível! ‒ sessenta e sete anos depois de sua descida à mansão dos mortos, a política ainda não lhe superou. Os efeitos deletérios do seu personalismo político continuam vivos, e ainda nos dividimos, bem lá no fundo, entre varguistas e udenistas.

Aparentemente, já estamos ansiosos novamente para colocar o retrato do velho outra vez e no mesmo lugar. O Brasil agora anseia, depois de quatro anos de agonia, mortes em massa, ameaças contínuas à democracia, assassinato de reputações, irresponsabilidade política e governamental, sob a liderança pífia, ridícula, mas carismática pela definição weberiana, de Jair Bolsonaro, sempre montado em sua vassoura anticorrupção e nos cheques voadores de Fabrício Queiroz, por eleger Lula. Sim, porque esquecemos coletivamente os efeitos do lulismo que cumularam na era de seu títere Dilma, que tanto tentam dissociar de seu marionetista. Estão, claro, desculpados os brasileiros: em terra de cego, quem tem olho é rei. Bolsonaro fez seguramente o pior governo da história da Nova República, e tem o mérito de ter transformado Collor, com seu irmão a lhe acusar de governar sob efeito de cocaína e em meio a rituais de ocultismo e orgias, em um brilhante estadista. Levando em consideração isso, diante de Bolsonaro, Lula não é o pior dos mundos.

Mas, a ânsia do lulismo em colocar o retrato de Lula outra vez nas repartições públicas, como sói tradicional a todo presidente da República ter, não encontra limites. Quem se importa que o sujeito capaz de juntar duas pecinhas esteja minimamente cansado do populismo se suceder no governo? Não adianta o cidadão se propor a prolongar a discussão de projeto do país e deixar a decisão para um segundo turno, por exemplo. Se você manifesta uma mínima crítica à personalidade messiânica de Sua Lulidade, o Fraternal Guia da Felicidade dos Povos, ou acha que é preciso se libertar das figuras de autoridade a impor seus desejos sobre o Estado, automaticamente você se torna eleitor de Jair Bolsonaro dentro do seu imaginário. É óbvio que a criatura que repete essas coisas no Twitter, grande caixinha de areia de brainstorming de ideias fuleiras, inconscientemente o faz por reproduzir as teses das grandes lideranças do Partido dos Trabalhadores: é preciso empurrar cada vez mais indecisos para as hostes de Bolsonaro para que se construa um segundo turno ideal, entre este e Lula.

Desejar que o Brasil transite, um dia, para o mais estrito domínio racional-legal, com um chefe de governo que não imprima sua idiossincrasia aos aparelhos de Estado, é sonhar demais. Aparentemente, o populismo é-nos doença sem cura. Mas, paliaria bastante o sofrimento gerado se pudéssemos ter um chato no poder. Tudo o que precisamos, digo sem medo de errar, é de um presidente anódino, sem carisma, sem grandes programas, sem promessas de salvação do mundo, e que se limite a cumprir o que manda a Constituição Federal, já que ela mesma é um trombolho que contém todo um programa de governo, coisa inadequada à sua natureza. Só por fazê-lo, já erraria menos, expor-nos-ia a riscos menores, devolveria a estabilidade necessária às nossas vidas, e nos deixaria viver sem nos preocuparmos com a mais nova ideia absurda que o presidente da República pariu para nos atrapalhar a vida e se esconder de alguma coisa. É preciso ainda mais, como diria Lygia Maria, não de um Partido Novo, mas de um ‒ e do, até! ‒ Partido Velho. “Porque política deve ser chata como uma partida de bocha”, afinal. É uma pena que não vá acontecer.

Se Angela Merkel nascesse no Brasil, em um novo evento cósmico, continuaria sendo não-mais que uma professora sem-graça de físico-química, cuja maior expressão de importância seria um doutorado na área registrado no burocrático Currículo Lattes, dando duas aulas por semana em uma universidade pública. Chances teria, contudo, se decidisse virar uma Janaína Paschoal ou uma Marilena Chauí da vida, sempre falando absurdos desde suas tribunas políticas.

Chegamos a tamanho estado de indigência intelectual que passamos a reciclar, à guisa de novidade esclarecedora sobre a ordem do universo e todas as coisas do mundo, os vídeos de Maria da Conceição Tavares em sala de aula. Ela, que apoiou cada uma das ideias econômicas no Brasil que ampliaram a miséria e trouxeram pobreza, e foi contra todas as coisas que elevassem o padrão de vida da população, tornou-se a profeta cujas palavras merecem ser gravadas em pedra, conforme os cânones da Igreja do Twitter. O Twitter é apenas uma bolha, eu sei. Mas, enquanto esfera de ressonância social, mesmo que seus usuários se creiam criaturas seletíssimas, esclarecidíssimas, diferenciadíssimas, apenas representa a forma de pensar política de todo brasileiro.

Imaginário, isto é, de que precisamos depositar todas as nossas esperanças no hábil sofista que porventura recicle uma ideia ruim. Pode ser o desenvolvimentismo irresponsável, no caso de Lula. Pode ser o reacionarismo ridículo e a memória das arbitrariedades da ditadura militar, no caso de Jair Bolsonaro. Pode ser a vacuidade do combate à corrupção enquanto fala sem ação, o udenismo em estado puro, representado por Sergio Moro. Vale até apelar para o neodesenvolvimentismo à Geisel de Ciro Gomes. Oxalá seja até mesmo o socialismo-tilelê sem projeto, sem noção, sem democracia e sem liberdade da parte quem quer que seja o candidato do oxímoro onomástico que se encerra no Partido Socialismo e Liberdade. Enfim, pode ser o representante de uma ideia ruim qual for, precisamos depositar as esperanças porque somos incapazes de viver por nós mesmos, sem precisar que nos digam o que fazer. Afinal, o sorriso do velhinho é que faz a gente se animar.

Lucas Baqueiro

Bacharel em Humanidades pela UFBA. Editor de política e atualidades da Amálgama.

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