Terá a esquerda realmente razão sobre o indivíduo conservador?
Você provavelmente pensa que as democracias estão em risco. Marcha pela dissolução do STF e propagandas com estética do 3º Reich no Brasil, o Capitólio americano sendo invadido. É difícil ficar otimista. É como se uma horda de populistas de direita estivessem às portas da civilização, como bárbaros prestes a invadir Roma. Eles querem trocar o progressismo liberal por uma cultura fascistóide e tradicional. Eles se comportam como as hienas em O Rei Leão, marchando para seu grande líder revolucionário Scar.
A regra é clara: se você ficou confortável com o tom desse trecho, é bem provável que você seja de esquerda. Mas, se você teve aquela sensação de comer arroz e mastigar uma pedra, então você deve ser mais de direita. É dessa forma que a imprensa vem tratando qualquer manifestação da direita: são todas preconceituosas, retrógradas, machistas, racistas.
O quanto essa análise é precisa? Tentei seguir o exemplo do psicólogo Jonathan Haidt e adentrei na mentalidade conservadora para entender como eles pensam, qual a mitologia pessoal dessas pessoas. Também me baseei em estudos empíricos para saber o que temos de dados sobre esse assunto.
I.
Their ways are strange. Antes de definir qualquer coisa precisamente, preciso que você pense em Star Wars. Se você entende o que está em jogo na saga, então já é meio caminho andado para entender como conservadores e populistas de direita pensam.
Na saga, Luke Skywalker vive no bucólico deserto de Tatooine, tirando leite de suas vacas alienígenas e consertando naves. É uma vida simples e dura. Luke pode não saber nada sobre filosofia, mas ele tem visões claras sobre o que é o certo a fazer. São lições sobre como se viver que vão sendo passadas de geração em geração pelos mais velhos que levaram aquela mesma vida e também herdaram conhecimentos.
Do outro lado da narrativa, há o Império. Onde fica esse Império? Em lugar nenhum, mas ao mesmo tempo seus tentáculos se estendem por todo lugar. São cidades flutuantes, totalmente artificiais. Eles não retiram sua moral da tradição, porque não há tradição, só uma vontade de reformar a realidade. Um dos primeiros atos dos Sith é exterminar a Ordem Jedi, uma espécie de tradição religiosa e filosófica que resguarda a paz e os valores da República.
Luke é a última esperança contra a deformação criada pelo Império, simbolizada pela figura desumana e semi-artificial de Darth Vader, um Jedi caído. Num mundo deformado, perdido em abstrações e artificialismos, é preciso buscar ajuda da sobriedade moral do fazendeiro de Tatooine.
Vingadores tem um plot parecido. Os heróis da periferia de uma galáxia insignificante lutam contra Thanos, um militar cósmico que acredita ter a fórmula perfeita para acabar com a miséria do universo: dizimar aleatoriamente metade dos seres vivos de todo o cosmos. A lógica perfeita desse ato pode funcionar para alguém desenraizado como Thanos, um milico que vive flutuando por aí, tratando incontáveis vidas como números.
Esse modelo de narrativa apareceu com força nas últimas eleições, especialmente americanas e europeias. Trump e Brexit, comparativamente, representam Luke, enquanto os grupos mais urbanos, internacionalistas, multiculturalistas e intelectualizados representam o Império. Não estou dizendo que concordo. Mas tenho o palpite de que esse é o template narrativo sentido (não necessariamente pensado) por pessoas que sentem ruir a abóbada de sua realidade. Esse é o padrão narrativo de um dos debates do momento: nacionalismo versus globalismo, ou fazendeiros versus elite econômica global, como você preferir.
Entender como funciona a cabeça de um eleitor de Trump (populista de direita, conservador, etc.) não ajuda a determinar se seus medos (legítimos ou não) não se traduzem em ameaças sérias à democracia. A primeira coisa a fazer é verificar historicamente se o populismo tem mesmo a ver com levantes contra a democracia.
II.
Antes, perguntemo-nos: o que é populismo? Oras, o significado exato de populismo ainda é discutido. Dos Narodniks (Rússia) ao People’s Party ou Populist Party (Estados Unidos), os populistas defendem formas mais diretas de democracia. Eles vêem isso como a única forma de aumentar a representatividade da maior parte do povo frente aos interesses mais fortes da elite econômica e política que domina as pautas com seus próprios interesses internacionalistas. Eles também têm uma atração especial pelo campo. A vida rural é mais autêntica e nobre. Ver a elite como corrupta e o povo como puro caracteriza o populismo até hoje.
De fato, essa mentalidade surge sempre que um grupo se sente ameaçado, quando os tempos parecem mais incertos em termos morais e materiais. É basicamente por isso que anti-intelectualismo e populismo estão conectados. Se a sua realidade moral está em risco, você não quer ter discussões abstratas, você resguardar seu modo de vista e eliminar rivais, o que também leva a uma fertilidade incrível para teorias da conspiração. A farsa d’O Protocolo dos Sábios de Sião exemplifica isso perfeitamente. Do século XVIII ao XX, judeus foram identificados por toda a Europa como a elite que estava servindo aos seus propósitos internacionalistas em detrimento dos trabalhadores europeus ligados originalmente ao continente.
Hoje, esse conflito se materializa na agenda cultural LGBT e na agenda econômica ligada às elites econômicas, para desagrado de indivíduos mais tradicionais. A defesa do multiculturalismo e de princípios morais relativistas pode soar muito inclusivos e bons para jovens de classe média, com diploma universitário e acostumados com a diversidade de culturas e crenças, mas não soa nada seguro para pessoas com o perfil típico de um trabalhador rural do Kansas.
Mas, concretamente, quais são os medos populistas? Pensemo-los por eixos: medos econômicos e medos culturais.
Quanto à economia, por exemplo, parcela da demanda dos eleitores de Trump tem a ver com desemprego e salários baixos. Eles atribuem esses problemas à imigração. E eles estão no mínimo parcialmente certos. Imigrantes geralmente aceitam trabalhar ganhando salários mais baixos do que aqueles exigidos pelos americanos. Empresas querem maximizar seus lucros, então compensa mais empregar o estrangeiro, não o nativo. A consequência é clara: os americanos devem aceitar a oferta de salários baixos ou ficarão desempregados. Isso sem contar o pior dos cenários: as empresas podem migrar para países com melhores incentivos fiscais, como o México.
Conservadores e populistas de direita enxergam isso como boicote da elite contra o povo. Se você tem inclinações populistas, é bem capaz de achar que são as regras do jogo: a economia é global, então empresas não têm obrigações com a população local. Se você não tem inclinações cosmopolitas, é capaz de se sentir incomodado com o bem-estar dos nativos ficando em segundo plano — essa visão subjetiva de perda de status parece até contar mais do que o prejuízo objetivo da condição material.
Ademais, coexiste também o problema cultural. Mais uma vez, será preciso pensar como um populista ou um conservador de direita.
Jovens tendem a ser abertos a novas experiências e culturas. Jovens universitários são ainda mais abertos, afinal a universidade é um caldo cultural frequentado por todo tipo de pessoa, o que torna seus frequentadores mais confortáveis com as diferenças. Isso, aliado com uma educação baseada na razão e em valores progressistas, forma “cidadãos do mundo”. Em contraposição, a tradição local forma cidadãos locais, com valores locais. É como a diferença entre hobbits e magos na Terra Média. Hobbits confiam no poder da tradição, da segurança e da vida local. Já os Magos estão acostumados a lidar com a incertezas, com a disrupção da realidade. Seguindo a analogia, daria para dizer que magos não teriam problemas com vacinas, mas Hobbits, sim. Isso mostra que não há nada essencialmente errado com nenhum dos dois modos de vida, com ser hobbit ou mago, direita ou esquerda, conservador ou progressista. Mas cada escolha gera prós e contras. Não é acaso a maior parte do movimento antivacina ser composto de pessoas mais tradicionalistas que desconfiam da tecnologia, do governo ‒ antivax de direita ‒ ou da Big Pharma, no antivax de esquerda.
A principal queixa do espectro de direita é a “esquerdização das universidades”. Isso estaria inclinando as culturas para uma direção cosmopolita e secular autoritária que inviabiliza o debate e visões diferentes. Por exemplo, o engenheiro James Damore foi demitido do Google por questionar se a causa da menor quantidade de engenheiras na equipe se devia à discriminação, não a diferenças sexuais que levam homens mais frequentemente a trabalhar com engenharia. Por outro lado, ninguém parece preocupado com o crescente engajamento feminino no ensino superior (e o decrescente engajamento masculino).
Outra queixa é a politização de pautas que originalmente nada deveriam ter a ver com o assunto. Recentemente, durante o Brexit, o ator gay Ian McKellen disse “Se você é gay, você é um internacionalista”. Implicitamente está a alegação de que ser favorável ao Brexit é ser homofóbico. Nos Estados Unidos, Peter Thiel, fundador do PayPal, foi excluído da comunidade gay porque proclamou publicamente ser republicano e, acima de tudo, americano. O mesmo aconteceu com o rapper negro Kanye West quando anunciou apoio à candidatura de Trump. Paralelamente, diriam os conservadores, ninguém vê problemas com hashtags como #MenAreTrash e #KillWhiteMen. Enquanto opiniões políticas são elevadas a crimes de opinião, ofensas explícitas são consideradas normais.
III.
Universidades e mídia tendem a ser bastante cosmopolitas, o que é compreensível, dada a natureza intelectualmente aberta de suas atividades. Mas isso representa um handicap em algumas situações. Pessoas e instituições são mais abertas, mas até certo ponto. Por exemplo, a mídia, em geral, não parece aberta o suficiente para compreender as demandas da direita, antes de chamar todos os eleitores de Trump de “caipira”, “maloqueiro”, “matuto”, “provinciano”. Hillary Clinton os descreveu como “cesta de deploráveis” que não passam de “racistas, sexistas, homofóbicos, xenofóbicos, islamofóbicos, pode escolher”.
Na Grã-Bretanha, o primeiro-ministro descreveu os apoiadores do Brexit como “malucos, lunáticos e racistas”. A mídia inglesa chegou a dizer para os políticos ignorarem as áreas menos favorecidas, pois seus habitantes eram ignorantes demais para entender por que seria melhor votar a favor da permanência na União Europeia e para entender as maravilhas da imigração. A culpa é toda dos trabalhadores brancos de idade avançada e dos bots usados pela Rússia. Exemplos disso são citados em abundância no livro Nacional-Populismo – A revolta contra a democracia liberal.
Mas, terá a esquerda realmente razão sobre o indivíduo conservador?
Em parte, sim. De fato, existem evidências de que quanto mais conservadoras as pessoas são, mais preconceituosas são em relação a outras etnias, minorias LGBT e imigrantes. Menor mobilidade territorial aumenta os laços sociais e aumenta o conservadorismo (preconceito contra grupos diferentes). Mas existem algumas contradições também. Por exemplo, ao contrário do que os críticos implicitamente consideram, o nível de escolaridade não parece ser tão importante. Em outras palavras, conservadores com maior escolaridade não são menos preconceituosos em relação a esses grupos. Além disso, conservadores mais inteligentes são mais intolerantes, não menos (resultado contestado por outros estudos).
Existe, é claro, algum exagero nisso. Metanálises recentes mostram que não existe diferença de viés entre direita e esquerda no quanto são enviesados em apoiar os argumentos dos seus próprios grupos; além disso, direita e esquerda são igualmente intolerantes com quem pensa diferente — o que levou a alguns protestos de pesquisadores indignados com a sugestão de que esquerda e direita compartilham dos mesmos vieses.
Outra ideia muito comum é que conservadores seriam autoritários. Isso é verdade, a correlação entre ambos existe. Mas isso é mais complexo do que parece. Conservadorismo, como apoio ao status quo, se mostra diferente dependendo do histórico da sociedade em questão. Por exemplo, nos EUA, conservadores geralmente querem livre mercado, mas no Leste Europeu, querem a volta de Stálin. Isso significa que de fato existe um autoritarismo de esquerda como disposição psicológica, apesar de muitos pesquisadores lutarem contra essa ideia desde Theodor Adorno, da Escola de Frankfurt. Esse tipo de coisa leva alguns pesquisadores a cogitarem se não existe viés na própria Psicologia Política. Alguns indícios mostram que pode haver, sim. Por exemplo, o “abstract” de artigos dessa área frequentemente caracterizam conservadores de forma negativa. De fato, parece haver uma necessidade muito maior de definir conservadorismo do que “liberalismo” (progressismo, esquerda), o que pode indicar que os pesquisadores são progressistas falando para uma audiência possivelmente também progressista.
Para concluir, faz-se mister deixar um adendo: esse texto é uma tentativa breve de fazer o que intelectuais e a mídia não têm feito nos últimos anos: entender um fenômeno antes de traçar críticas moralizantes. O fenômeno em questão aqui é o amplo espectro da direita, principalmente a direita americana, que tem tomado uma inclinação populista recentemente — muito embora o populismo também possa assumir tons de esquerda em outros momentos.
Você deve estar pensando que só fiz isso porque me considero conservador e quero limpar a barra do meu espectro. Na verdade, quando tento tirar um saldo dos meus posicionamentos em mais diversos assuntos percebo que tendo mais à esquerda. Sendo assim, minha motivação aqui foi tentar trazer um pouco mais de racionalidade para o debate. De fato, tendências conservadoras têm seus prós e contras, o que não significa que tendências mais liberais não tenham os seus. Entretanto, para dar continuidade à tradição de debate típica de um ambiente democrático, teremos que diminuir os tons difamatórios que inflamam os ânimos e corroem a democracia com o cavalo de Tróia representado pelo tribalismo e pelo identitarismo.
Felipe Novaes
Graduado em Psicologia pela UFRJ, doutorando em Psicologia Social pela PUC-RJ. Estuda e oferece cursos sobre a evolução da inteligência e da criatividade por seleção sexual, psicologia política e bases psicológicas do negacionismo científico.
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