Não se perca de vista que a sedução e a concupiscência combinam mais com as vestimentas, e seu jogo de sombras, do que com a nudez completa.
Desça a falésia. Ou desça as pedras da encosta. Ou desça as escadas da passagem de madeira. O primeiro impacto é o da beleza da praia, sua preservação, o tanto que sua ausência de pessoas contrasta com as superlotadas faixas de areia litorâneas no verão escaldante. Absorva esse primeiro contato, deixe-o repercutir em seus sentidos, não tenha pressa.
Ache um canto entre as pedras. Ou ultrapasse as pedras, indo para o outro lado. Ou vá até o banco de madeira, coberto pelo toldo de palha. Ali, onde se lhe pede, deixe seus pertences encostados, e proceda a se despir. Não comece por sua camisa, ou seu top, ou sua bermuda, ou pela parte de baixo do biquini. Para todos os que vão, seja pela primeira vez, seja pela milésima primeira, a primeira peça que precisa ser removida é o preconceito.
Preconceito que se traduz na metonímia, equivocada, entre a nudez e a sexualização. Nudez que, por ser essencialmente natural, é a condição do nascimento. Nudez que, por ser essencial ao bem estar, é o estado mais puro do humano. Se o sexo pode ter, como componente, a nudez, é porque esta é elementar aos humanos, e não porque é elementar ao sexo. Tanto é que é possível existir sexo sem a nudez, e a nudez sem o sexo.
Não se perca de vista que a sedução e a concupiscência combinam mais com as vestimentas, e seu jogo de sombras, do que com a nudez completa. Como obnubilar que o desejo se acende pelas ocultações parciais, pelas coberturas estratégicas, pelo que se insinua sem se mostrar? Há mais excitação nas transparências da lingerie, nas promessas feitas pela ocultação momentânea, do que na nudez sem disfarces. Logo se vê que a nudez não importa a prática do sexo, mas a condição elementar que nos acompanha em todos os momentos. Se a esquecemos, se a deixamos de lado, é pela imposição que nos é feita pela sociedade, e não porque é escusa, ou merecedora de encobrimento.
O vício do olhar é o primeiro a ser removido. Como as escamas que caem do olho do soldado, para que ele morra e renasça santo e profeta, uma vez perdidas, nunca mais ressurgem. Não é educação do corpo, não é contenção dos impulsos, mas o exato oposto: a perda das ressalvas da vestimenta, do recato heterônomo, para a autonomia do ser sem barreiras, e, portanto, também sem limites. É milagre de reconexão, que coloca o humano de volta ao lar.
E seria esse autêntico milagre a fonte da objeção de alguns religiosos? A nudez nesses espaços é retorno ao estado paradisíaco primordial, um desesquecer das punições da modéstia e da vergonha, uma religação com o Eterno num nível que escapa aos templos e aos ritos e às hierarquias e aos dogmas. É a reclamação do Paraíso como direito inato, como lugar-no-mundo e como lugar-em-si-mesmo, e não como produto do sacrifício e do ascetismo terreno. É blasfemo e ao mesmo tempo divino.
Venha então ao momento de se despir. Não se concentre nele; ninguém ali se preocupa com isso. Aproveite e remova sua camisa, sua bermuda, sua canga, seu soutien, seu vestido, suas peças íntimas. Com as roupas, deixe também seus títulos, seus cargos, seus rótulos, sua conta bancária, seu maldito telefone celular, seus medos, suas contas a pagar, suas preocupações, ao menos por alguns instantes. Ali, na redução do humano à sua expressão própria, nada nos diferencia, nada nos separa, nada nos distancia. Reside na nudez a plena junção da máxima liberdade com a máxima igualdade: porque apenas a liberdade radical pode permitir a igualdade radical, e ambas, por serem revolucionárias, são dissimuladas pelos padrões sociais, resignadas a algumas ocasiões, e alguns lugares apenas.
Uma vez nu ou nua, logo desaparece o receio. Seja porque não há mais ninguém por perto, seja porque ninguém ali lhe observa, a nudez deixa de ser uma preocupação e passa a ser um dado normal. O conforto, no entanto, não cessa. Sinta o calor do sol diretamente sobre a pele, ardência e luz. Ou o toque da brisa salgada contra o corpo. Ou o roçar sinuoso do quebrar das ondas contra os pés, a espuma que acaricia os dedos e reflui, com suavidade, ao caminhar.
Se alguém mais está ali, pode cumprimentar. Nunca vi alguém, que abraça o naturismo em plenitude, com respeito a si mesmo e a terceiros, ser rejeitado ou hostilizado. Pelo contrário, já vi estranhos se transformarem em amigos instantaneamente, tendo um vínculo de valores que os precede: o respeito à vida, o respeito à natureza, o respeito ao humano. Até porque, entre as pessoas que ali estão, não se colocam nada que se feche ou nada que os filtre.
Aqui está, de fato, o mais sublime dom da nudez social: numa era de filtros, das comunicações instantâneas no tempo mas mediadas pelas telas e pelas postagens, de ódio anônimo e de agressões gratuitas, estar nu em presença de outro ser humano, igualmente nu, é dispensar qualquer filtro, qualquer pose, qualquer subterfúgio de busca da aparência em lugar da essência. Lamente por aqueles que, ainda sem entender essa dádiva, preferem os serviços de fake nudes oferecidos fora da portaria: os que ocultam seus trajes de banho por trás de um chapéu de palha, para simular a nudez, que lhes seria tão mais facilmente acessível. Ainda estão condicionados por seus temores, pela busca incessante do carinho dos likes, para entender a proximidade que se obtém pelas conversas e pelo convívio nos espaços em que o nu é o padrão, e não, por imposição externa, o desvio.
O trunfo da nudez social, aliás, está justamente em se operar em conjunto e às abertas, ao contrário do nu doméstico, que pode ser praticado a portas fechadas ou nos quintais, longe da rua. Seres humanos são gregários: estar na companhia de quem se ama, ou mesmo de estranhos completos, exercendo a escolha de se apresentar por inteiro é experimentar uma forma de sociabilidade diferente, mais pura, sem as convenções e fardos da vida social ordinária. É quase como se alcançássemos aquela utopia do poeta, que lastimou a chuva no dia 22 de abril de 1500, isso porque, fosse aquele um dia de sol, teriam nossos ancestrais despido os portugueses…
Seja na Olho de Boi, seja na Praia Brava, seja em Tambaba, a experiência é semelhante em sua simplicidade e em sua inteireza. Na sensação de absoluta liberdade, que não se esgota em se despir ou em estar despido, mas no descarte de todas as imposições, encargos, ônus, receios, culpas, no momento em que sol e vento e sal e água se chocam com a pele, sem barreiras.
Se quiser, deixe seus pertences na areia e dê um mergulho no mar. Sinta o quebrar das ondas contra o corpo, a temperatura da água, a conexão com o oceano – onde surgiu a vida, de onde a vida saiu para conquistar o solo, por onde tantos ousaram navegar mesmo contra o bom senso, e diante do qual não somos maiores, nem mais relevantes, do que os grãos de areia da praia. Saia da água. Caminhe na linha que separa o mar e a areia. Enquanto caminha, pense nos mistérios: na distância de oito minutos-luz que nos separa das milhões de explosões atômicas no coração da estrela que nos ilumina; no cálcio, vindo de estrelas mortas e esquecidas, que compõe seus ossos, mas também as conchas na areia; no movimento de fluir e refluir, que é o das ondas, dos batimentos cardíacos, da respiração… Nesse instante, respire. Seja você, em plenitude, em contato com aquilo que te faz sereno, livre de dor, livre do medo.
Olhe para trás. Suas pegadas na areia já não mais estão onde você as deixou. As ondas vieram e lavaram seu rastro, como se nunca tivesse existido. Como as pegadas na areia, nossa existência é fugaz, passageira, momentânea. Pouco deixamos de vestígios, bons ou maus. Nosso tempo é finito. Aproveite bem o seu instante sob o sol.
Marcelo Sarsur
Doutor em Direito pela UFMG. Professor nos cursos de Pós-Graduação (lato sensu) em Direito Ambiental e em Direito Minerário do Centro de Estudos em Direito e Negócios. Diretor da Sociedade Brasileira de Bioética - Regional Minas Gerais (em constituição) e Coordenador da Setorial Justiça e Segurança Pública do movimento Livres.
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