Entrevistas

Conflitos entre criador e criatura: entrevista com Estevão Azevedo

por Amálgama (11/02/2009)

a Renato Medeiros – Na literatura, autores e leitores brincam de Deus o tempo inteiro. A cada texto, os autores criam um universo particular que julgam absoluto; enquanto cabe aos leitores as mais diversas interpretações e, portanto, as constantes recriações desse universo. Sendo assim, leitores também são autores, até porque é imprescindível que os escritores […]

a Renato Medeiros – Na literatura, autores e leitores brincam de Deus o tempo inteiro. A cada texto, os autores criam um universo particular que julgam absoluto; enquanto cabe aos leitores as mais diversas interpretações e, portanto, as constantes recriações desse universo. Sendo assim, leitores também são autores, até porque é imprescindível que os escritores também sejam leitores.

Uma obra literária, quando é muito requisitada, é um work in progress, pois nunca deixa de ser reescrita a cada leitura. Não seria exagero dizer que os laços que ligam autor e obra constituem uma relação umbilical, com troca de influências para ambos os lados. Afinal, não é só a personagem de um livro que necessita de seu autor, mas o próprio autor também precisa de sua obra. Quem foi que disse que Deus, se é que Ele existe, não precisa de suas reles criaturas para existir, mesmo com toda a sua onipotência? É o autor que cria a personagem ou é a personagem que cria o autor?

Assim como no mundo que é considerado real, a literatura está repleta de atritos, dúvidas e incompreensões quando o assunto é responder questões como essas e se Nunca o nome do menino (Terceiro Nome, 2008), segundo livro de Estevão Azevedo, não é a batalha final entre criador e criatura, é pelo menos um ensaio para tal.

O Amálgama conversou com esse jovem escritor potiguar radicado em São Paulo, sobre esses assuntos tão presentes em seu romance e também sobre o processo de criação da obra.

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Amálgama: Em Nunca o nome do menino, há praticamente duas histórias em uma, intercaladas em pequenos capítulos que contam duas épocas diferentes da vida de uma mesma mulher. Em uma dessas épocas, a protagonista é ainda uma criança, aprendendo a lidar com o amor que sente pelo menino do título; na outra, já é uma mulher e se descobre personagem de um livro. Quem surgiu primeiro, a menina ou a mulher? Conte como foi o processo de criação do romance.
Estevão Azevedo: A mulher surgiu bem antes da menina. Antes da mulher, surgiu a primeira frase, quase da maneira como aparece no romance, em um momento em que eu não tinha a intenção – nem estava em local apropriado – de escrever algo aproveitável, apenas rabiscava nos cantos de um caderno. Assim que a frase surgiu e eu a registrei no papel, no entanto, percebi que era uma boa frase, a idéia em estado embrionário ali contida me pareceu muito forte e promissora, e então busquei imaginar um enredo que a justificasse. Evidente que tanto a frase quanto a idéia para o enredo surgiram, ainda que não refletidamente, de questões da literatura pelas quais eu me interessava muito e que eu pesquisava: a mistura do plano da narrativa com o plano do leitor e do autor, histórias dentro de histórias, em abismo. O gesto de atingir o próprio corpo para arrancar algumas letras da própria descrição me conduziu naturalmente até a mulher que se descobre personagem de uma narrativa que não aprecia e cujo autor despreza.

Uma vez com essa idéia em mente, me pareceu imprescindível explicar que eventos poderiam conduzir alguém a uma descoberta fatal como aquela, e foi nesse momento que a história da menina e sua relação com o menino começou a nascer. Eu tinha, então, duas narrativas intercaladas, que se refletiam em diversos momentos e que deveriam, somadas, ser mais do que cada uma separadamente. Montar esta estrutura e fazer com que ela se sustentasse ao longo da leitura talvez tenha sido a parte mais difícil do processo de criação e, na minha leitura, é um dos elementos que considero mais interessantes do romance.

 
A leitura da obra pode levantar várias interpretações. Uma delas é a de que a protagonista passa a acreditar que vive entre as linhas de um livro, mesmo que isso não seja verdade. Seria algum tipo de perturbação mental devido à sua vida desregrada. Ela se encontraria em um estágio no qual já não consegue distinguir o real do ficcional e embarca nessa loucura chegando ao extremo de mutilar seu dedo mínimo. Outra interpretação seria a de que o autor-personagem não sabe se vive o real ou o ficcional e após ter investido tanto em sua história, passa a se incluir nela personificando a sua protagonista, ao ponto de provocar um encontro entre criador e criatura. Mas afinal de contas, o que se passava pela sua cabeça na hora de conceber essa história e como você avalia essas possíveis interpretações?
A obra literária tem uma característica que talvez alivie a angústia das interpretações: ela tem muitos sentidos, mas raramente tem um único sentido. Isso se for uma boa obra. Quem explicou isso com palavras melhores foi o Roland Barthes, crítico francês, mas acho que é algo tão fundamental da literatura que muita gente já deve ter dito ou escrito. Um livro escrito com uma única finalidade – fazer propaganda deste ou daquele modo de pensar, defender esta ou aquela ideologia – tem menos chance de ser um bom livro que um em que não haja essa amarra poderosíssima já criada de antemão. Claro que há bons livros cuja plataforma é clara: pensei no Germinal, de Zola. Mas ainda assim, ele me parece muito maior do que a condenação da exploração do proletariado das minas de carvão, e capaz de suscitar diversas leituras.

Bom, agora que já expliquei a desculpa que vou utilizar para não explicar o que se passou pela minha cabeça – poderia ser decepcionante, poderia não ser –, volto ao livro que escrevi e às interpretações que a pergunta sugere. Elas são interessantes, sem dúvida. Para ir além, tenho que fazer um exercício de criatividade: tento me imaginar um leitor que crê em cada uma das interpretações que a pergunta sugere. A desconfiança de que a personagem está perturbada mentalmente e que está fantasiando me parece torná-la alguém perigosa: sua loucura a fez capaz de mutilar-se! Uma conhecida me contou que leu desta maneira, tensa com o que alguém em tal situação seria capaz de fazer. Na outra interpretação, o autor-personagem é que não está certo se é real ou apenas a criação de alguém. Essa interpretação é interessante porque transforma a narrativa em um abismo. A mulher se descobre personagem e, portanto, sabe que existe um autor que escreve sua vida. Este autor, porém, também desconfia ser personagem, o que imediatamente cria a figura de um novo autor. Este autor, também ele será criação da tinta de alguém, e assim até o infinito? Interpretação interessante.

Para finalizar, uma última, que me foi retransmitida: o livro, embora não explicitamente, teria um conteúdo místico ou religioso, e o autor retratado, esse criador onipotente, seria uma metáfora de Deus. É possível ver o livro com esses três olhares. Agora, o que me passou pela cabeça, isso realmente não me parece muito importante, talvez nem eu mesmo tenha total clareza e, ainda que tivesse, me sentiria autoritário dizendo-o.

 
Matias e Emílio são duas personagens secundárias que provocam, de forma indireta, o encontro da protagonista com o seu autor. Porém, eles somem da narrativa sem deixar vestígios. Por que essas duas personagens tão presentes não tiveram desfecho? Você considera isso um descuido ou lacuna em seu romance?
Difícil imaginar que em um romance – talvez eu esteja sendo apenas bonzinho com todos os escritores – possa haver descuido, porque é algo que deve ter exigido muito trabalho, atenção, reescrituras e releituras. O que quero dizer é que, da maneira como está no papel, seja ela ruim ou boa, é como deveria ter sido, do ponto de vista do autor, e nada passou despercebido. Uma lacuna, talvez. Mas penso numa lacuna não no interior do livro, porque considerei que nele só o que cabia era o que ali estava, mas uma lacuna boa, fértil, na imaginação do leitor que termina o livro e sente falta de saber o que aconteceu com tais personagens.

Até aqui, falei em tese. Agora, o caso específico. Matias e Emílio são personagens secundárias, mas as coloco em patamares diferentes. A meu ver, Matias tem uma função bem delimitada, serve aos acontecimentos, mas não está tão ligado às questões que na minha visão são as mais fundamentais do romance. Com Emílio é diferente. Assim como com outra personagem, que tem ainda menos espaço na narrativa, e que aparece e desaparece abruptamente, mas que está completamente preso à trama do livro. Falo do morador de rua. Queria fazer apenas essa distinção, a de que, de fato, há personagens cujas vidas ficam em segundo plano, mas que estas personagens também são diferentes entre si.

O que acontece é que as outras três personagens, a protagonista, o menino e o autor – este quase sempre um fantasma, uma possibilidade, mas bastante presente – realmente atraem, como um vórtice, tudo para si, o que impossibilita que Emílio e Matias se destaquem. O livro é narrado em primeira pessoa, e quem o faz – a mulher? O autor? – talvez não enxergue nada além da mulher, do menino e do autor. Dito tudo isso, devo confessar que hoje não me vejo capaz de escrever um romance tão repleto de personagens como Anna Kariênina ou Cem anos de solidão, para citar alguns. Quem sabe no futuro.

 
Experimentações envolvendo criadores e criaturas já foram ensaiadas em diversas obras de arte, como no filme A rosa púrpura do Cairo, de Woody Allen. Na literatura, Clarice Lispector, em Um sopro de vida, criou um autor que deu vida a uma protagonista que também escrevia um livro. De certa forma, essa experiência é semelhante à sua em Nunca o nome do menino. Você chegou a ter contato com esse livro da Clarice? Quais foram as suas referências para a composição do romance?
Não li o livro de Clarice. Os livros que têm relação – próxima ou distante – com o romance que escrevi e sobre os quais eu refleti durante a escrita foram principalmente Seis personagens à procura de um autor, de Pirandello, cujos personagens eu pretendia, inicialmente, incluir no meu livro, idéia que abandonei posteriormente, Névoa, de Miguel de Unamuno, em que o personagem principal decide ir tirar satisfações com seu autor, porque este decide matá-lo, e os de Borges, em que várias narrativas de alguma forma representam o teatro do mundo e o universo como uma grande narrativa.

No meu romance, há muitas referências a outros livros, algumas porque eles têm relação com o livro que eu escrevia e então decidi incluí-los, outras apenas porque eu admiro ou o escritor ou algum texto específico e tratei de inseri-los, modificados ou literalmente, no meu próprio texto, para melhorá-lo.

 
Embora Nunca o nome do menino seja seu primeiro romance, ele não é o seu primeiro livro. Você chegou a publicar um livro de contos em edição independente. Como você observa a atuação dos escritores independentes na contemporaneidade?
O avanço da tecnologia fez com que publicar ficasse mais barato e fácil. A internet exime as pessoas da necessidade de publicar para serem lidos. Além disso, ela facilita enormemente a divulgação e circulação de livros publicados de forma independente. E se, no meio de tanta gente escrevendo sem ser lido, surgirem alguns bons escritores que alcancem e agradem a quem efetivamente lê literatura no Brasil, ótimo. Hoje, há público para literatura independente. Há quem contribua para a publicação e divulgue e há quem aceite o risco de ler o livro de um total desconhecido, que publicou por conta própria, há quem aprecie a descoberta, o garimpo, o pioneirismo. Se for ruim, deixa de lado e parte para a próxima tentativa. Creio que uma contribuição dos autores e editoras independentes foi ajudar a abrir espaço no mercado editorial para escritores jovens. As editoras perceberam que havia uma circulação pequena, mas interessante, de livros que não traziam códigos de barra ou ISBN, ficaram atentas ao burburinho e publicaram os livros posteriores de alguns desses autores. Penso em nomes como o de Santiago Nazarian, Daniel Galera, entre outros.

 
E como é ser um autor ainda desconhecido em busca do seu lugar ao sol? Você tem alguma estratégia que ajude a sua obra a repercutir? Além de leitor e escritor, de que outras formas você atua na cena literária?
Creio que buscar o lugar ao sol, na minha curta carreira de escritor, talvez esteja sendo algo menos turbulento, do ponto de vista pessoal, do que uma outra busca, anterior, também relacionada à escrita: a busca pela auto-reconhecimento como escritor. Sempre escrevi, senti prazer em escrever e, de uma maneira ou de outra, percebi que o que eu escrevia poderia ser lido com interesse por certo público. Escrever textos para um blog, escrever contos que componham um livro ou escrever um romance, escrever um livro inteiro, seja qual for, um livro completo, que passe pelo crivo pessoal e, mais ainda, após tê-lo escrito e ninguém ainda o tendo lido, conseguir não me sentir envergonhado de pensar “sou um escritor”, não me sentir um impostor, essa foi a parte difícil.

Uma vez superada essa etapa, a busca pelo lugar ao sol ficou mais fácil, porque não havia tanta pressa, já não era mais tão urgente (ênfase no tão) conseguir o lugar ao sol. Uma vez que me vi como escritor, concluí com mais tranqüilidade que, algum dia, neste livro, no seguinte ou em outro, encontraria meus leitores. Não tenho nenhuma estratégia que ajude a obra a repercutir e não atuo de outra forma na cena literária. Como leitor, somente. A única estratégia de que sou capaz, que não é impedida pela timidez, é falar de um livro sempre que for chamado a fazê-lo. Mas não muito mais que isso. Espontaneamente, divulgo pouco. Há pessoas que convivem comigo freqüentemente e que nem imaginam que escrevi e publiquei livros.

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