por Daniel Lopes – Quem nunca viu a famosa imagem que pretende ser a explicação definitiva de como viemos a ser o que somos, aquela que mostra um primata gradualmente tornando-se homem? Em um certo sentido, ela está correta, mas geralmente leva a mal-entendidos. Além do mais, é uma imagem incompleta – faltam os desenvolvimentos paralelos. Algumas […]
por Daniel Lopes – Quem nunca viu a famosa imagem que pretende ser a explicação definitiva de como viemos a ser o que somos, aquela que mostra um primata gradualmente tornando-se homem? Em um certo sentido, ela está correta, mas geralmente leva a mal-entendidos. Além do mais, é uma imagem incompleta – faltam os desenvolvimentos paralelos. Algumas pessoas, no entanto, estão dispostas a continuar propagando tal escala como a verdade completa da nossa evolução. Mesmo os criacionistas, quando enfim se rendem à evolução das espécies, o fazem com a escala debaixo do braço (no final eu explico isso).
Por que, no parágrafo anterior, tanta ênfase na “escala”? Porque o termo dá uma idéia de progresso. Ou seja, a evolução seria uma viagem de organismos “inferiores” rumo a seres cada vez mais complexos e “melhores” que as espécies precedentes. Um progresso, enfim.
Sim, progresso e evolução são duas palavras muito próximas, e facilmente associáveis. Essa foi a razão pela qual Charles Darwin sequer usou “evolução” na primeira edição de A origem das espécies. Ele sabia que isso seria dar pano pra manga.
A idéia de progressão faz pensar num impulso, presente desde o início. E, se no começo eram os seres mais inferiores de todos, isso só pode significar que, hoje, nós, os seres humanos, somos os superiores absolutos, pois que o ápice da escada. Darwin nunca concordou com isso. Se, nos primeiros anos de sua pesquisa, pouco ou nada disse em público sobre o fato de que o acaso e a variedade é que eram os motores da evolução (ele posteriormente passaria a usar o termo, irremediavelmente em voga desde Spencer), e não um suposto impulso rumo a uma complexidade cada vez maior, foi por temor ao espírito policialesco de sua época (só da sua?).
Já era demais ter dinamitado de vez as bases do verdadeiro empecilho à evolução intelectual humana que foi o mito de que o mundo havia sido criado a apenas poucos milhares de anos e que nós, os homens, fomos criados à imagem e semelhança daquele que criou o mundo – e, portanto, éramos superiores às outras formas de vida. No entanto, em conversas e correspondências, o cientista deixou clara sua posição – “Depois de longa reflexão, não consigo descartar a convicção de que não existe nenhuma tendência inata para o desenvolvimento progressivo”, escreveu ele em 1872 ao amigo paleontologista Alpheus Hyatt.
Hoje, com as maravilhosas descobertas da zoologia, paleontologia e outros campos, sabemos mais que nos anos de Darwin, e podemos afirmar que, de fato, tentar provar que o evolucionismo é sinônimo de progressão é cavar buracos na água.
Os evolucionistas progressivos costumam ilustrar sua tese tomando como exemplo o cavalo: de seu ancestral Hiracotherium, que existiu a mais de 50 milhões de anos, ao Equus atual, surge uma linearidade assombrosa. O zoólogo de Harvard Stephen Jay Gould escreveu um livro em que, entre outras coisas, desconstrói o “progressismo” do cavalo – o livro é Lance de dados: A idéia de evolução de Platão a Darwin (Record, 2001), por favor, leiam.
Segundo Gould, a mania que muitos estudiosos têm de ensinar a multimilenar história da vida na Terra como simples traços de antepassados “inferiores” aos seus atuais representantes deixa de lado a complexidade e as ramificações da evolução. Especificamente quanto ao caso dos cavalos, escreve ele: “Nós passamos um rolo compressor sobre um terreno fascinantemente complexo quando adotamos a convenção iconográfica que retrata o caminho que leva do Hiracotherium ao Equus como sendo uma linha reta.”
Longe de uma linha, o verdadeiro gráfico da evolução do cavalo se assemelharia mais a uma frondosa árvore, com ramos de sucesso, outros que fracassaram e pereceram, outros que, antes de morrer, deram origem a sub-ramos. O suposto sucesso das espécies mais complexas em detrimento das menos complexas também não é verdadeiro, no caso do cavalo como em outros. Os próprios cavalos de hoje, a bem da verdade, representam “o término de uma linhagem realmente malsucedida”, porque antepassados seus muito mais complexos ficaram pelo caminho da árvore da vida, devido a circunstâncias adversas que dificilmente se repetiriam se, na mágica expressão de Gould, “a semente fosse plantada novamente”.
Sucessos da evolução, ensina Gould, são, por exemplo, os ratos, morcegos e teleósteos (peixes com ossos). O grupo destes últimos abrange “perto de cem vezes mais espécies do que os primatas (e cerca de cinco vezes mais espécies do que todos os mamíferos combinados).” No entanto, traçar um esquema evolutivo dos teleósteos, com todas as subespécies, seria tarefa sôfrega para os defensores da “evolução rumo a uma direção”. Daí, as imagens de “macacos virando gente” – aliás, eis aí dois animais que estão longe de ser uma história de culminância bem-sucedida do processo evolutivo.
É por erro de propagandistas do passado e do presente que muita gente hoje vê o evolucionismo como “um bicho virando outro”, coisa assim de uma dimensão só, ao invés da evolução real, com seres coexistindo durante milhões de anos com seus “antepassados”, que muitas vezes dão origem a organismos menos complexos. Assim, alguém comentou recentemente aqui no Amálgama que não acredita na teoria de Darwin porque “hoje existem macacos e existem homens, não existe um meio homem e meio macaco”…
A visão errônea da evolução em linha reta, do pior para o melhor, é um conforto tanto para professores preguiçosos de ciências quanto para crentes. Dá menos trabalho para os primeiros dizer que “o homem evoluiu do macaco” – aí quando o Pedrinho, ou a pia mãe do Pedrinho, indaga “E como é que ainda existem macacos?”, o professor fica sem ter o que responder. É que o homem e os macacos de hoje [ao lado] tiveram um ancestral comum, o professor deveria dizer, mas acabaram em ramos próximos mas diferentes da árvore da vida, e isso não acontece apenas com nós e os macacos, mas com milhares de outros seres, desde há milhões de anos.
E aos crentes, é muito mais fácil criticar uma visão simplista e equivocada da evolução (aquela que não foi a de Darwin), não havendo necessidade de estudar para compreender algo mais quebra-cabeça. Mas, paradoxalmente, por uma das mais deliciosas ironias da história, à medida que cada vez mais crentes passam a aceitar o evolucionismo, a pregar que Criação e Evolução não são incompatíveis, é a essa mesma visão simplista e equivocada que apelam. Por quê? Ora, se Deus desencadeou lá atrás a evolução das espécies (sim, não há milhares, mas há milhões de anos) – obviamente já tendo em vista o primoroso resultado final, ou seja, nós –, ele não seria ele mesmo, ou seja, onipotente, onipresente e onisciente, se a coisa toda não tivesse ocorrido de forma progressiva, com resultados intencionais.
Por outro lado, um impulso que – através de processos com paradas e retomadas, que obedecem única e exclusivamente ao meio, sem qualquer indício de ordem e harmonia extranaturais – acabasse em alguns sucessos e muitos fracassos evolutivos seria qualquer coisa, menos inteligente ou divino – até porque, se fosse divino ou inteligente, não haveria por que ter levado taaanto tempo e percorrido taaantos atalhos (muitos, sem saída). Seria apenas natural ou qualquer coisa assim menos nobre, mais ocasional.
A não ser que pensemos Deus como um cientista na melhor das hipóteses mediano.
Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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