por Daniel Lopes – Quis o destino que eu encontrasse em sebo o célebre The end of history and the last man, de Francis Fukuyama, apenas poucos dias antes de receber em casa O retorno da história e o fim dos sonhos, ensaio de Robert Kagan lançado agora no Brasil pela Rocco. Depois que você lê o […]
por Daniel Lopes – Quis o destino que eu encontrasse em sebo o célebre The end of history and the last man, de Francis Fukuyama, apenas poucos dias antes de receber em casa O retorno da história e o fim dos sonhos, ensaio de Robert Kagan lançado agora no Brasil pela Rocco.
Depois que você lê o livro do senhor Fukuyama, é preciso reconhecer como exageradas as vituperações que sempre cercaram a caracterização de sua teoria por parte da esquerda brasileira (e mundial). Lógico, aparado de seus próprios exageros, de suas passagens mais rigidamente dogmáticas, The end of history é uma leitura agradabilíssima de história política. Sua tese, aqui bastante resumida e limitada, é que a queda do Muro de Berlim e o esfacelamento da União Soviética apenas tornaram clara uma tendência que já vinha se manifestando em anos anteriores, de uma irreversível transformação de estados autoritários em “democracias liberais”. Escreve Francis no início dos anos 1990:
O mais marcante desenvolvimento do último quarto do século 20 foi a revelação da enorme fraqueza no centro das ditaduras mundiais aparentemente fortes, sejam elas militar-autoritária de direita ou comunista-totalitária de esquerda. Da América Latina à Europa Oriental, da União Soviética ao Oriente Médio e à Ásia, governos fortes vêm caindo durante as duas últimas décadas. E, se em todos os casos eles não têm dado lugar a democracias liberais estáveis, a democracia liberal permanece como a única aspiração política coerente que mexe com todas as regiões e culturas ao redor do globo.
Isso foi wishful thinking, depreendemos da leitura de Robert Kagan. Veja bem, não uma análise maldosa, espalhada pelo imperialismo estadunidense para oprimir o resto do mundo. Ao ver os soviéticos implodindo e sendo expulsos de seus satélites, ao ver ditaduras latinas chegando ao fim, ao ver Coréia e Japão dando graças por poderem crescer sob o guarda-chuva ocidental… era simplesmente impossível não pensar que era pelo menos uma possibilidade que a onda de liberalismo e democracia em breve tomasse posse de “todas as regiões e culturas ao redor do globo”.
O problema é que pensar a possibilidade em pouco tempo se converteu em ver o mundo como ele deveria ser, independente dos fatos. Independente da história e cultura de cada país. Liberal-democracia como panacéia. Em outras palavras, o que Kagan chama “determinismo econômico e ideológico”.
Não se trata aqui de um esquerdista. Embora colabore com veículos liberais dos EUA – Washington Post e New Republic –, Kagan sempre o faz a partir do ponto de vista neoconservador. Foi funcionário do Departamento de Estado de 1984 a 1998, do Projeto Liderança Americana do Carnegie Endowment for International Peace, e, nas últimas eleições de seu país, foi assessor de política externa do republicano John McCain. É a favor de uma união internacional de democracias contra os governos autoritários e, com relação a Rússia e Irã, entre outros países, defende uma política de enfrentamento e não de aproximação diplomática – terá sido por sua influência que durante a campanha McCain andava dizendo que quando olhava nos olhos de Vladimir Putin só via três letras, K, G e B?
Portanto, se a teoria do fim da história de Fukuyama precisava de uma pá de cal – além da recente matéria de capa da Newsweek sobre a necessidade do Estado (como diriam os economistas tucanos nos 90’s) “ingererir” na economia, intitulada “Somos todos socialistas agora” –, aqui está ela, vinda de seu mesmo campo político. Em O retorno da história, lemos que, 15 anos atrás, “o mundo não estava testemunhando uma transformação, mas apenas uma pausa na competição interminável entre nações e povos.”
Se Francis e seus colegas acreditavam que um mundo cada vez mais interligado pelos mercados levaria, no final das contas, ao fim da geopolítica e à eminência da geoeconomia, Kagan cita o exemplo da China para decretar que tal ideologia era uma falácia. O país asiático é a prova de que à medida que uma nação conquista poder e fica mais fortalecida devido a trocas comerciais, ela tende a se tornar mais, e não menos à vontade para resolver suas querelas através de chantagem, sabotagem (veja o caso da questão energética entre Rússia e Europa) e mesmo pela força militar. Após lembrar da histórica e sempre presente animosidade entre China e a rebelde Taiwan, o autor observa que “seria reconfortante imaginar que tudo isso se dissiparia se a China ficasse mais rica e confiante, mas a história sugere que, à medida que a China fica mais confiante, ela se torna menos tolerante com os obstáculos no seu caminho, e não o contrário.”
O Japão, a despeito de seu um milagre econômico, como a China mais recentemente, ainda guarda uma animosidade contra esta, sempre latente. E é bom lembrar que o Japão, embora exíguo territorialmente, tem um exército que compete em capacidade com o de Israel.
A Índia também se engalfinha com os chineses em áreas estratégicas do Oriente. Quando o país deu sua arrancada econômica nos anos 1990, foi simultaneamente atacada por um crescente nacionalismo e “um senso de destino manifesto” ao estilo estadunidense. “Por mais que a Índia independente [da Inglaterra] sempre tivesse tido uma noção de sua própria grandeza”, escreveu o indiano C. Raja Mohan, tornar-se uma potência regional e mesmo com ambições globais “nunca pareceu realista até a economia indiana começar a crescer rapidamente na década de 1990.”
Nada mais distante dos sonhos de Fukuyama, que via no crescimento econômico um veículo para o fim das ambições militares.
A Rússia, do mesmo jeito. Aliás, o caso russo é emblemático, pois, se foi lá que “a história havia acabado de modo mais dramático duas décadas atrás, hoje é onde retornou com mais força”, diz Kagan. A Eurásia ocidental emergiu, não como uma área de comércio e paz, mas como o centro de uma disputa político-ideológica entre a Rússia e a Europa, ou melhor, entre a Rússia e a Otan. O nacionalismo russo, ao invés de definhar com o processo de globalização, cresceu junto com ele.
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Nesse contexto, o papel dos Estados Unidos, sempre segundo Kagan, é de permanecer como a grande potência militar do planeta, a fim de manter o mundo seguro para os princípios democráticos, mesmo que os estadunidenses em geral não gostem “do seu papel como potência mundial predominante”, por causa dos encargos morais que derivam das ações “exigidas” para se manter o mundo “livre” – por isso, na década de 90, as proposições de Fukuyama fizeram tanto sucesso, entre conservadores como liberais:
Quando o comunismo entrou em colapso, Jeane Kikpatrick falou em nome da maioria dos conservadores, e talvez de muitos liberais, ao dizer que esperava que os Estados Unidos parassem de carregar o “peso extraordinário” da liderança global, suportado tão “heroicamente” durante a Guerra Fria, e finalmente se tornassem uma “nação normal”.
Mas “o mundo voltou ao normal” (é com essa frase que Kagan abre seu livro), as autocracias continuam ambiciosas e com armas nos dentes, e os EUA têm que fazer o contrapeso, ou melhor, têm que continuar sendo o fator determinante nas relações globais, queiram seus cidadãos ou não.
Robert Kagan é um engajado politicamente. Um militante. Não há nada de condenável nesse fato. O problema é quando sua pregação da causa que considera justa redunda em simplificações, digamos, hipócritas. Isso está ainda mais claro em um livro anterior seu, Do paraíso ao poder: Os Estados Unidos e a Europa na nova ordem mundial (Rocco, 2003).
Embora entenda que o mundo é complexo o bastante para democracias se alinharem a autocracias, ele está ferrenhamente convencido de que a guerra do século será entre dois campos: democracias liberais contra ditaduras. Como os dois campos se separariam tão conformemente a fim de travarem tal contenda é difícil de imaginar. Podem os Estados Unidos, por exemplo, abrir mão, a curto e médio prazo, das autocracias árabes que lhes fornecem petróleo? Pode a Europa partir para o enfrentamento direto com a Rússia se este gigantesco país é responsável por grande parte do gás natural consumido no Velho Continente? Abriria mão a democracia indiana de dar suporte a governos autoritários em países como Myanmar a fim de contrabalançar a influência chinesa na Ásia?
Quando Kagan deixa seu idealismo cegar a visão da realidade, ele está incorrendo em erro não menos grosseiro que o de Francis Fykuyama, quando via na “mão invisível” do mercado o remédio para todos os males.
Em não raros momentos do curto O retorno da história, o mundo está retratado como se fosse preto e branco. Assim, os EUA “derrubaram governos autocráticos” e a China dá “apoio irrestrito a ditaduras”. As duas afirmações são parte da verdade, mas a outra parte o autor esquece de dar: os EUA também têm um histórico invejável de apoio a ditaduras, desde sempre. Se dito, isso atrapalharia a existência do mundo-segundo-Kagan.
Da mesma forma, a China estaria atrapalhando o combate ao aquecimento global, ao exigir para si o mesmo direito de se desenvolver poluindo, como fizeram as potências ocidentais. É verdade. Mas, sintomaticamente, o termo “Protocolo de Kioto” passa ao largo das páginas de O retorno da história. E, quando diz que a China afronta a comunidade internacional ao se utilizar de seu poder na ONU para evitar medidas punitivas às ditaduras aliadas do Sudão e da Coréia do Norte, por exemplo, Kagan mais uma vez ocorre em omissão, e não cita as infinitas ocasiões em que os EUA se aliaram a Israel e a mais um punhado de pequenos países para evitar punições, ou mesmo recriminações, ao país judeu.
A propósito, seria Israel um aliado ideal dos EUA e do Ocidente na luta constante pela defesa dos ideais avançados da liberdade e da democracia? Kagan parece acreditar que sim. O duro vai ser convencer o resto do mundo que ainda não viu a luz da justeza da causa.
Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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