O que a Bíblia realmente diz sobre a homossexualidade

por Amálgama (16/02/2009)

por Daniel A. Helminiak * As pessoas discutem apaixonadamente acerca do que a Bíblia realmente ensina. Como é possível? Quem está com a razão? Depende de como se lê a Bíblia! Como é possível? São diferentes formas de se ler a Bíblia! A forma pela qual se lê a Bíblia, o modo de interpretar os […]

por Daniel A. Helminiak *

As pessoas discutem apaixonadamente acerca do que a Bíblia realmente ensina. Como é possível? Quem está com a razão?

Depende de como se lê a Bíblia!

Como é possível? São diferentes formas de se ler a Bíblia!

A forma pela qual se lê a Bíblia, o modo de interpretar os textos, eis aí a questão central. Não se trata de perguntar: “Quais são os textos da Bíblia sobre a homossexualidade?” Qualquer um pode fazer uma lista e citá-los. O que devemos nos perguntar é: “Como interpretar estes textos?” “Como determinar aquilo que estes textos realmente querem dizer?”

Há quem afirme que a Bíblia deva ser entendida literalmente, sem “interpretações”. Mas interpretar significa apenas extrair o sentido de um texto. Desta maneira, não pode haver leitura da Bíblia ou de qualquer outra obra sem interpretação. Sem o leitor, um texto é apenas um monte de palavras – sinais em uma página. Em si estes sinais não têm significado algum. Para significarem algo, eles precisam passar pela mente de alguém. A compreensão das palavras, que determina o sentido do texto, é interpretação.

É importante prestar atenção às diversas formas de se ler um texto, especialmente quando lidamos com textos antigos como a Bíblia. As palavras podem ter um determinado significado para nós hoje e, na época das pessoas que as escreveram, seu significado ter sido totalmente diferente.

Os ensinamentos de Jesus sobre a simplicidade
Tomemos um exemplo da Bíblia. Em três dos Evangelhos – Mateus 19:24, Marcos 10:25 e Lucas 18:25 – Jesus diz: “É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus.” Parece que ninguém com muito dinheiro jamais poderá entrar no paraíso, posto que nenhum camelo jamais passará através do buraco de uma agulha. Pelo menos é isso o que a passagem nos indica.

Mas alguns estudiosos afirmam que em Jerusalém havia um portão muito baixo e estreito nas paredes da cidade. Quando uma caravana entrava por aquele portão, os camelos tinham de ser descarregados e passar pelo portão de joelhos, para serem novamente carregados do lado de dentro. Aquele portão chamava-se “o buraco da agulha”.

Logo, o que Jesus estava dizendo? Ao compreendermos melhor o mundo em que ele viveu, o significado de suas palavras passa a ser óbvio. Jesus dizia simplesmente que seria difícil para os ricos entrarem no paraíso. Primeiro eles teriam de se livrar de suas preocupações materiais. Novamente, Jesus estava pregando a mensagem sobre simplicidade, sinceridade e dedicação contida em seu Sermão da Montanha.

E se considerações desta mesma ordem se aplicarem também aos textos bíblicos sobre a homossexualidade? Talvez eles não signifiquem aquilo que temos pensado até agora.

A interpretação literal e a leitura histórico-crítica
A interpretação literal afirma entender o texto unicamente conforme o que ele diz. Esta é a bordagem fundamentalista. Ela afirma não interpretar o texto, mas simplesmente lê-lo como ele é. Entretanto, é claro que até mesmo o fundamentalismo segue uma regra de interpretação. Esta regra, simples e fácil, diz que a significação do texto é dada no presente por quem o lê.

Façamos a comparação com a outra abordagem, a da leitura histórico-crítica. A regra aqui diz que a significação do texto é dada por aquele que o escreveu no passado. Para afirmar qual é o ensinamento dado pelo texto bíblico hoje, primeiro é preciso compreendê-lo em sua situação original e então transportar seu significado para o presente. Um bom exemplo disso é o ensinamento de Jesus, na abordagem realista, utilizando a figura do camelo e da agulha.

Apesar de ouvirmos com mais frequência no rádio e na TV apenas a abordagem fundamentalista, todas as principais igrejas cristãs apóiam o método histórico-crítico. Portanto, o argumento apresentado aqui não é novidade: ao contrário, ele é absolutamente padronizado, sendo sustentado por quase dois séculos de estudos. De fato, ele já existia antes mesmo do fundamentalismo, que surgiu em parte como uma oposição a ele.

É evidente que algumas igrejas rejeitam o método histórico-crítico quando tratam dos textos bíblicos sobre a homossexualidade e algumas outra questões, tais como o divórcio, a posição da mulher na sociedade e na igreja, a compreensão que Jesus tinha dele mesmo, a organização da igreja primitiva, ou a origem de rituais cristãos como o batismo e a eucaristia. As igrejas têm receio das conclusões sugeridas pelos próprios métodos de interpretação que elas aprovam.

O estudo histórico-crítico da Bíblia geralmente coloca por terra algumas interpretações tradicionais e levanta questões muito sérias sobre a religião e a sociedade. Não é de surpreender que as igrejas hesitem em usá-lo. Em certos casos, elas ficam a se perguntar o que devem ensinar. Também não é de surpreender que o fundamentalismo tenha adotado uma linha mais dura. Os novos dados históricos podem fazer com que a compreensão tradicional da religião se dissolva ante nossos próprios olhos. É importante avaliarmos quão delicada é esta questão da interpretação da Bíblia.

Mas também é importante não ignorarmos fatos tais como eles agora são conhecidos. Fazê-lo seria violar um dos valores básicos da tradição judaico-cristã. Fazê-lo seria ignorar um valor pelo qual Jesus viveu e morreu – conforme João 8:32, Jesus diz: “A verdade vos livrará”.

Desvantagens da abordagem literal
Um dos problemas da abordagem literal é a utilização seletiva da Bíblia. Isto é, esta abordagem tende a enfatizar um texto e relegar outro. Os pregadores condenam as lésbicas e gays porque a Bíblia menciona de passagem atos sexuais entre pessoas do mesmo sexo.

No entanto, esses mesmo pregadores não advogam a escravidão, embora a epístola a Filemon inteira, e muitas outras passagens extensas, a defendam (Efésios 6:5-9; Colossenses 3:22-4:1; 1 Timóteo 6:1-2; 1 Pedro 2:18). Eles não encorajam as pessoas a furar-lhes os olhos ou a cortar-lhes as mãos, embora as palavras literais de Jesus sugiram este remédio para a tentação (Mateus 5:22-30). Estes pregadores geralmente admitem o divórcio, embora os ensinamentos de Jesus, tomados literalmente, o condenem (Mateus 5-32; Marcos 10:1-2; Lucas 16:18). Eles permitem que mulheres ensinem nas escolas dominicais, embora 1 Timóteo 2:11-14 o proíba de maneira clara. Eles permitem que as mulheres frequentem a igreja usando roupas claras e jóias de ouro e pérolas, ou mesmo sem chapéus, embora longas passagens se oponham a isto (1 Timóteo 2:9-10; 1 Coríntios 11:1-16). A abordagem literal é praticamente forçada a ser seletiva em sua aplicação dos ensinamentos da Bíblia, para evitar algumas situações inaceitáveis.

O que há na Bíblia sobre homossexualidade?
O estudo científico da sexualidade teve início a cerca de um século. Hoje sabemos que a homossexualidade é um dos aspectos básicos da personalidade, provavelmente fixado na primeira infância, tem base biológica e afeta uma parcela significativa da população em praticamente todas as culturas conhecidas. Não há evidências convincentes de que a orientação sexual possa ser mudada, e não há prova sequer de que a homossexualidade seja um fenômeno patológico em qualquer das suas formas. Desde a Segunda Guerra Mundial, uma comunidade gay vem se formando e ganhando voz em âmbito mundial. Dentro desta comunidade, e especialmente entre os gays e lésbicas que são religiosos, relacionamentos homossexuais amorosos e adultos têm se tornado uma preocupação importante.

Tudo isso é recente. Alguns destes fatos são absolutamente novos para a história da humanidade. Eles fazem parte de uma situação nunca imaginada pelos autores bíblicos, portanto não devemos esperar que a Bíblia expresse uma opinião sobre eles. O que pode ser esperado é o seguinte: quando a Bíblia menciona comportamentos sexuais entre pessoas do mesmo sexo, ela o faz tal como estes comportamentos eram compreendidos naquela época. Os ensinamentos da Bíblia só podem ser aplicados hoje na medida em que a antiga compreensão destes mesmos comportamentos for válida.

Mais especificamente, na época bíblica não havia uma compreensão muito elaborada da homossexualidade como orientação sexual. Havia apenas uma consciência genérica de atos ou contatos entre pessoas do mesmo sexo, o que poderia ser chamado de homogenitalidade ou atos homogenitais. A questão atualmente gira em torno das pessoas e seus relacionamentos, e não simplesmente de seus atos sexuais. O que se discute hoje é a homossexualidade, e não mais a mera homogenitalidade, e o afeto espontâneo por pessoas do mesmo sexo e a possibilidade ética de expressar este afeto em relacionamentos sexuais e amorosos. Como esta não era uma questão que os autores bíblicos tinham em mente, não podemos esperar que a Bíblia nos dê uma resposta.

Por que não? Se a Bíblia condena um determinado ato por qualquer que seja o motivo, este ano não deveria ser evitado sem mais discussões? Se a palavra de Deus diz que ele é errado, o assunto não se encerra aí?

Uma atitude é julgada errada por algum motivo. Se o motivo não mais existe e nenhum outro é fornecido, como esta atitude pode continuar sendo considerada errada? A simples afirmação de que “Deus disse que isto é errado” não é uma resposta boa o suficiente, pois o princípio é válido mesmo em se tratando de Deus: também Deus deve fornecer o motivo pelo qual algo é errado. Isto significa dizer que há bom-senso, que há sabedoria na moralidade exigida por Deus. Se não houver, então toda moralidade será arbitrária e Deus considerará as coisas como certas ou erradas segundo um capricho divino. Neste caso, toda a reflexão sobre a ética deixaria de existir, pois não haveria um princípio racional por trás da moralidade e as exigências Deus não seriam razoáveis. Tal conclusão, porém, é um absurdo. É completamente ridícula. Logo, é preciso que haja um motivo pelo qual algo seja considerado errado, e deve ser por este mesmo motivo que Deus o proíba.

Bem, mas Deus não poderia ter razões que escapem à nossa compreensão? Claro que sim. Mas se fosse este o caso, nunca poderíamos conhecer a vontade de Deus – a menos que Deus a revelasse. E onde Deus a revelaria? Uma resposta óbvia é: “Na Bíblia, claro!”

Esta resposta é perfeitamente válida. Mas ela nos traz de volta exatamente ao ponto de partida: como podemos determinar o que Deus quis dizer na Bíblia? As opções ainda são as mesmas: as abordagens literal e histórico-crítica.

Defendo a abordagem histórico-crítica da Bíblia. Espera-se que Deus afirme que algo é errado por um determinado motivo. O Criador teceu este motivo na estrutura do universo. A inteligência humana é capaz de discernir este motivo. Por conseguinte, quando não há nenhuma nova razão para que algo seja considerado errado e o motivo antigo não mais se aplica, não há base para se afirmar que aquilo seja errado. O motivo – o próprio motivo de Deus! – simplesmente não mais existe.

A palavra de Deus na Bíblia condena aquilo que hoje conhecemos por homossexualidade? Considere todas as passagens bíblicas que se referem a este tema. Compreenda-as em seu contexto histórico original. Avalie as provas com uma mentalidade aberta e honesta.

O pecado de Sodoma: a falta de hospitalidade
A história de Sodoma é provavelmente a mais famosa passagem bíblica que trata da homossexualidade, ou pelo menos é considerada como tal. Ela está no livro do Gênesis, capítulo 19, versículos de 1 a 11.

Nela, por que Lot desejaria expor suas filhas ao estupro? Por que Lot se oporia ao interrogatório e abuso de seus visitantes por parte dos habitantes da cidade? Lot era apenas um homem, ou, conforme as Escrituras, um homem de bem. Ele fez o que era certo e da melhor forma possível. Entre todas as pessoas de Sodoma, apenas ele teve a delicadeza de convidar os visitantes para passar a noite em sua casa.

Nas regiões desérticas como a de Sodoma, permanecer ao relento exposto ao frio da noite podia ser fatal. Logo, uma regra básica da sociedade de Lot era oferecer hospitalidade aos viajantes. Essa mesma regra faz parte da tradição das culturas semitas e árabes. Esta regra é tão estrita que proibia o ataque até mesmo a inimigos que tivessem recebido oferta de abrigo para passar a noite. Assim, fazendo o que era certo, seguindo as leis de Deus conforme ele a entendia, Lot recusou-se a expor seus convidados ao abuso pelo homens de Sodoma. Fazê-lo significaria violar a lei da sagrada hospitalidade.

Até mesmo Jesus entendia o pecado de Sodoma como o da falta de hospitalidade (Mateus 10:5-15). Outras passagens da Bíblia afirmam a mesma coisa de maneira bastante clara. Há outras referências bíblicas menos diretas a Sodoma: Isaías 1:10-17 e 3:9, Jeremias 23:14 e Sofonias 2:8-11. Os pecados listados nestas citações são a injustiça, a opressão, a parcialidade, o adultério, as mentiras e o encorajamento dos pecadores. Ainda assim, as pessoas continuam a citar a história de Sodoma para condenar aqueles que são gays e lésbicas.

Há uma triste ironia acerca da história de Sodoma quando compreendida à luz de seu próprio contexto histórico. As pessoas atacam homens e mulheres homossexuais porque eles são diferentes, esquisitos, estranhos. Lésbicas e gays não se encaixam em nossa sociedade, fazendo-se com que eles permaneçam estranhos, estrangeiros. São deserdados por suas próprias famílias, separados de seus filhos, despedidos de seus empregos, despejados de imóveis e expulsos de bairros, insultados por personalidades públicas, espancados e assassinados nas ruas. Tudo isto é feito em nome da religião e da suposta moralidade judaico-cristã.

Esta opressão é o próprio pecado do qual o povo de Sodoma foi culpado. É exatamente este o comportamento que a Bíblia condena repetidas vezes. Portanto, aqueles que oprimem os homossexuais devido ao suposto “pecado de Sodoma” podem ser eles próprios os verdadeiros “sodomitas” tal como a Bíblia os entende.

* Daniel A. Helminiak foi padre por 28 anos. Ph.D. em teologia sistemática pelo Boston College e em psicologia educacional pela Universidade do Texas, atualmente leciona no estado da Geórgia. Este post contém trechos dos capítulos 2 e 3 do seu livro O que a Bíblia realmente diz sobre a homossexualidade (Summus/Edições GLS, 1998) – trechos que o Amálgama reproduz com expressa autorização da editora, a quem somos gratos.

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