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por Daniel Lopes – Enquanto eu lia o primeiro romance do gaúcho Altair Martins, inevitavelmente lembrava dos narradores viscerais de Raduan Nassar e também da atmosfera de um Dyonelio Machado, mas principalmente do Angústia de Graciliano Ramos – e não só pelos desenhos de capa em traços desconfortantes que os dois livros têm em comum; […]

por Daniel Lopes – Enquanto eu lia o primeiro romance do gaúcho Altair Martins, inevitavelmente lembrava dos narradores viscerais de Raduan Nassar e também da atmosfera de um Dyonelio Machado, mas principalmente do Angústia de Graciliano Ramos – e não só pelos desenhos de capa em traços desconfortantes que os dois livros têm em comum; lembrei mesmo foi do protagonista, Luís da Silva.

Essas três referências, acredito, já bastam para deixar clara minha opinião sobre A parede no escuro (Record, 2008).

Sendo que há diferenças marcantes também. No livro de Graciliano não há um pingo de poesia. E a secura que torna a relativamente longa narrativa em primeira pessoa quase insuportável, agonizante, é obviamente seu maior sucesso. Para fazer um romance assim direto e reto e de muita qualidade, é preciso ter competência. Senão se tira o lirismo, não se põe nada e a coisa resulta numa massa murcha que não espanta nem mosca, apesar da “violência” do tema – sim, estou pensando na literaturaurbanamoderna. Digo, em parte dela.

Mas o assunto é Altair Martins.

É que para fazer, como ele fez, um romance com muita poesia e interesse, também é preciso ter talento. Porque, convenhamos: partir pra tal da “prosa poética” – um negócio hoje mais badalado que as turnês da Madona – é muitas vezes o último (ou o primeiro) recurso do prosador incompetente. De quem não tem uma estória interessante pra contar, mas, sim, muito floreio. Daí o sujeito se rola no gramado coberto de flores caídas e chama todo mundo pra ver o resultado – que só poderá estar nas “entrelinhas”.

Altair é competente. O evento-núcleo do seu romance é o atropelamento de um padeiro muito conhecido na pequena cidade de Pedras Brancas. O assassino, hum…, por acidente nós sabemos quem é: o professor Emanuel. Que, apavorado, foge após o feito. Não presta socorro. Não que fosse fazer alguma diferença se o tivesse feito, o padeiro provavelmente já caiu morto, tamanha a violência do choque. Mas pelo menos, talvez, a culpa que pregou em si a partir de então o remoesse com menos intensidade.

O padeiro assassinado é o pai de uma jovem que, por sua vez, saída de casa, divide um apartamento com uma amiga. Essa amiga, de 17 anos, é aluna de Emanuel, com quem, certa noite, tenta sem sucesso ter um relacionamento sexual. Só que Emanuel não sabe que a parceira dessa jovem é a filha do homem que atropelou numa manhã de muita chuva e pouca visibilidade para os desafortunados motoristas.

A filha do padeiro é Maria do Céu. Nunca se dera bem com o pai, e fora morar com a menina de 17 anos justamente após uma discussão com o mesmo, após a qual saiu de casa literalmente batendo a porta.

Pois Emanuel também guarda suas mágoas com o pai autoritário. Ex-partidário da Ditadura de 64, saudosista daqueles tempos de moral elevada, fã de pássaros e acostumado a bater no filho, o homem está agora moribundo, atacado por uma pneumonia aparentemente irreversível.

Pois quando Emanuel atropela o pai de Maria do Céu ele estava justamente indo à casa de sua infância pegar o velho e levá-lo para uma consulta de rotina.

Caminhos cruzados, vejam só.

Pois o romance de 250 páginas é narrado por mais de uma dúzia de personagens, com mudanças de um capítulo a outro, um parágrafo a outro. Há também um narrador em terceira pessoa que aparece em raros momentos e é, por assim dizer, inútil – ou seja, não contribui com nenhuma colaboração original para o andamento do relato.

Não se pode dizer que este narrador apareça de vez em quando para pôr uma ordem nas narrativas deliciosamente caóticas, porque isso não é verdade. Não há como haver ordem no mundo de A parede no escuro. Seus dois principais personagens, Emanuel e Maria do Céu, apesar de em constante conflito com os respectivos pais (“pais” de pai mesmo, as mães são mais passivas e não entram em choque com os filhos), não conseguem se distanciar dos mesmos, o que às vezes juram querer. De outra forma o que explicaria Emanuel ir atrás de levar ao hospital o homem que um dia lhe espancou com arame nas pernas e, em sequência, o deixou trancado por horas com fome e sangue em um viveiro de pássaros pelo simples fato de o filho ter mijado na cama?

A degradação em nível familiar – bem captada em passagens soturnas repletas de imagens de moscas e enojantes ovos cozidos em conserva – é parelhada pela degradação social. Aqui, Altair, não vai às camadas populares, senzalas e favelas, mas à escola particular para jovens bem nascidos em que Emanuel dá aula. Lá, alunos não respeitam professores (de fato, espancam um), professores irresponsáveis não se dignam sequer a elaborar as questões das provas (de fato, o que acabou sendo espancado), o diretor negligencia o pagamento de seus funcionários, os pais querem ver os filhos sendo aprovados a qualquer custo para poderem entrar logo em um curso de Direito ou Administração qualquer.

Enquanto isso, o professor Emanuel tem uma obsessão: não pode ver nenhum copo desalinhado em relação ao centro da mesa, nenhuma folha de papel deslocada em relação às restantes de sua resma, nenhum rótulo de cerveja ligeiramente torto. Isso o deixa mal. Então ele vai lá e põe os objetos em perfeita ordem.

Daniel Lopes

Editor da Amálgama.

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