por Ana Al Izdihar – Caso não tenha se emocionado com as cenas fortes que descreviam as ruas das favelas cariocas no filme Cidade de Deus, tenho a impressão que com Quem quer ser um milionário? (Inglaterra, 2008) seu coração de pedra não vai agüentar. E se você se comoveu com o filme nacional, se prepare quando for ver essa nova proeza do diretor Danny Boyle: é emoção na veia. E já aviso: vai doer, ok? Não é a Índia dos rajás da novela global…
O título em português pode até fugir do assunto à primeira vista, mas é adequado à divulgação. Se fosse traduzido ao pé da letra (favelado milionário), acredito que o brasileiro não iria querer ver. Já na gringolândia a coisa seria o contrário: com o título de “Who wants to be a millionaire” o público talvez pensasse que seria um filme fútil com ênfase no programa de TV.
A estória é mais ou menos assim: por um motivo muito forte, o jovem indiano muçulmano Jamal se inscreve num programa de perguntas na TV para ganhar 10 milhões de rúpias. Ao longo do programa, o espectador descobre mais sobre a vida de Jamal, sua infância pobre nas favelas de Mumbai (antiga Bombai) junto a seu irmão Salim e a amiga Latika. E o que se vê é mais do que simplesmente uma retrospectiva da vida de Jamal: é a história de uma comunidade inteira, é a regeneração dela através da própria regeneração de Jamal! É o amadurecimento da alma desse rapaz tão profundo, um sobrevivente que realmente sabe as respostas. Aliás, guarde essa frase: ele sabe as respostas.
A Índia que não vemos na novela das oito é revelada pela câmera cinética e crua de Danny Boyle – a marca registrada de Boyle: a câmera muito perto do movimento, resultando num efeito estonteante, mas paradoxalmente real demais (veja seus outros filmes, por exemplo, Trainspotting), que assume na primeira infância de Jamal o ponto de vista das crianças. A impressão de que as imagens são mostradas de baixo para cima, e/ou na altura dos olhos delas, ou seja, como elas vêem o mundo; também muito rápida, insinuando a velocidade que aqueles pequenos precisavam ter para se safar dos perigos. Também é costume de Boyle começar o filme com alguma cena do denouement (do meio para o final) do mesmo e depois vir recheando e costurando o enredo ao longo da narrativa.
A cada pergunta feita a ele, Jamal vai buscar a resposta na sua jornada, como um herói das narrativas mais antigas do mundo. Tudo o que ele viveu no passado se transforma em algum tipo de conhecimento ao qual ele atribui significado no momento presente, acionado pelas perguntas do programa e decifrado pelo seu depoimento na delegacia de polícia. Na sua imensa e intensa necessidade de apreender todo e qualquer conhecimento à sua volta, Jamal aguça sua percepção ao longo de sua jovem vida, a princípio para fugir da morte e viver mais um dia. Porém, naquele momento em que está no programa, juntando tudo o que aprendeu, Jamal está no limiar do próximo passo lógico de sua existência: sua regeneração e individuação. E a partir daí começará a realmente viver e usufruir dos frutos de sua coragem, sinceridade e obstinação.
O processo de individuação de Jamal é compartilhado com o oficial de justiça – que pede explicação a cada pergunta que Jamal teria acertado… Como um garoto favelado poderia saber tudo aquilo? – e inconscientemente pelo grande público do programa. Digo inconscientemente, pois para o coletivo Jamal não precisaria se explicar. O espectador do filme pode sentir a platéia crescer em entusiasmo por Jamal, mesmo sem conhecer os detalhes de sua vida e o por que dele sabe as respostas, mesmo quando ele diz ao apresentador que não sabe. O saber para Jamal tem um significado muito mais profundo (leitura de mundo) do que o conceito de saber do apresentador (leitura empírica).
Contudo, para o público bastou saber que Jamal veio de um passado nas favelas e que hoje era um servente de chá numa empresa de atendimento ao cliente de celulares. Eles sabem (intuem?) por que Jamal sabe as respostas. Há uma solidariedade silenciosa entre eles, e não há perguntas do público para Jamal… Eles simplesmente torcem para que ele ganhe. E vejam a repercussão cíclica desse filme: os indianos favelados assistiram, torceram e comemoram muito a vitória desse filme na cerimônia do Oscar. Ao ver essas cenas jornalísticas na TV, parecia que eu estava revendo o público de Jamal no filme…
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Ao assistir o filme, as imagens subliminares que mais grudaram na minha mente foram as de contraste entre a lama, a sujeira, o lixo, e a beleza, a sinceridade, a obstinação… O enredo me lembrou a carta 19 do tarô [ao lado], a Lua. Ao analisarmos a iconografia tradicional dessa carta – com a ajuda de uma interpretação do acadêmico jungiano Gerald Schueler –, vemos duas torres unidas por um rio, tendo a cada lado da margem um cão e um lobo; no final do rio, atrás dos animais, um caranguejo tentando sair do mangue; acima, a Lua ofuscando o Sol. O crustáceo saindo do mangue representa as forças da regeneração e muitas vezes ressurreição. O cão e o lobo sugerem o subconsciente, as sombras ou forças instintivas. A Lua em si é a própria representação da vida nas sombras e a força da anima ou da parte feminina do ser humano. O rio, o relacionamento entre os seres ali postos. E as duas torres podem significar o portal entre a vida e a morte.
Assim, se observarmos bem, essa carta pode resumir o momento de Jamal: saindo da lama, da sujeira, encarando as torres da Mumbai em transformação. Jamal e seu irmão mais velho Salim viviam numa favela afundada em lixo com a mãe e depois, ao ficarem órfãos, vivem também em vários outros lugares extremamente sujos. Um dos momentos mais significativos dessa simbologia é quando Jamal consegue um autógrafo de seu ator favorito, após se jogar na fossa. Todo coberto de fezes, Jamal triunfa com seu primeiro “pequeno” objetivo alcançado, para depois perdê-lo para a ganância de Salim. Salim fica lhe devendo uma.
A antiga favela dá lugar a prédios de empresas, mas ainda governada por um submundo mafioso, ou como diria Salim ao contar ao irmão que trabalhava para um gangster: “eu estou no centro do centro”. Vejo Jamal como o caranguejo (quem se lembra da “filosofia” de Chico Science levanta a mão!), as torres como a Bombai/Mumbai, seus perigos e fronteiras, o lobo como Salim, e talvez Latika como o cão, sendo que ela também se transforma no objetivo da busca de Jamal, a própria Lua, ou seja, a busca de sua anima representada no ser feminino de Latika, para completar-se como indivíduo.
Jamal acha que seu destino com Latika está escrito e, muito mais do que se sentir responsável por ela, a ama com toda a alma e sabe que ela é a sua redenção e ele a dela. E ironicamente está sim escrito nas entrelinhas das perguntas e alternativas dadas a ele, as quais ele responde com toda a sabedoria que colheu somente para esse intuito: resgatar e acolher Latika.
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Há quem possa pensar que, por ser o irmão mais velho, Salim seria uma figura protetora, mas vemos que não o é. Ele representa o desbravador de caminhos, com seu jeito tortuoso de agir (vendendo a foto autografada que Jamal conseguiu, fazendo sexo com Latika), em comparação com o centrado e, aí sim, paternal irmão Jamal. Salim abre espaço por entre as torres para que Jamal saia da lama, dos perigos e no final é ele quem dá o último empurrão para (re)colocar Latika ao lado de Jamal para sempre. Latika pode ser comparada ao cão quando se une a eles para fugir dos perigos, ativando assim seu lado mais masculino, ou quando se mostra em parte, uma mosqueteira…
Aliás, você se lembra das personalidades de cada mosqueteiro? Danny Boyle e o roteirista Simon Beaufoy exploraram sutil e lindamente essa analogia. No filme, Jamal nunca conseguia se lembrar do nome do terceiro mosqueteiro (Aramis). Pela ironia da sincronicidade, é justamente a última pergunta a ser feita a ele para que ganhe os 20 milhões de rúpias. O sorriso irônico de Jamal ao ouvir a pergunta nos coloca extremamente próximos dele…
Bem, só lembrando rapidamente: Athos seria o mosqueteiro mais paternal dos três, aquele que era nobre, honesto e mais calado, guardando suas preocupações e tristezas dentro de si. Porthus era extrovertido, dado às mulheres, e boemia, um tanto exagerado nos atos, às vezes iludível e morre de maneira grandiosa. Aramis apresentava vários entraves à perfeição de um herói, como pensamentos vingativos, um tanto interesseiro em dinheiro, mais sortudo do que estratégico, porém seu único traço impecável era a fidelidade aos amigos.
Podemos então ver uma “trindade” um tanto corrompida (Jamal-Salim-Latika), sendo que Latika, por ser muito frágil e dependente, aparece como uma “Aramis” sortuda em parte, mas nem tanto interesseira e sim medrosa ao ficar com aquele que no momento lhe oferecia guarita, mesmo que a humilhasse. Contudo, seu coração era fiel à amizade dos três e ao amor a Jamal. Tanto é que quando Jamal liga para o celular do irmão para que o ajude na resposta do terceiro mosqueteiro, Salim está morrendo grandiosamente por ter permitido que Latika fugisse, enquanto esta está com o seu telefone e não sabe a resposta para ajudar Jamal. Porém, ela sorri e sabe que ele responderá assim mesmo…
[veja o trailer]
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