por Eustáquio Gomes – Um encontro que não houve. Assim poderia se intitular esta crônica. E no entanto esse não-encontro cobriu-se de lenda, uma lenda talvez mais densa do que se encontro tivesse havido. O não-encontro entre Cecília Meireles e Fernando Pessoa numa noite lisboeta de 1934, mais exatamente na noite chuvosa de 10 de […]
por Eustáquio Gomes – Um encontro que não houve. Assim poderia se intitular esta crônica. E no entanto esse não-encontro cobriu-se de lenda, uma lenda talvez mais densa do que se encontro tivesse havido. O não-encontro entre Cecília Meireles e Fernando Pessoa numa noite lisboeta de 1934, mais exatamente na noite chuvosa de 10 de dezembro de 1934.
Cecília, bonita, expansiva, na flor de seus 33 anos, estava em Portugal para proferir conferências. Pessoa estava no penúltimo ano de sua vida e acabara de sair de grave crise de neurastenia. Tinha de idade 46. Pode ser que, semanas antes, tivesse visto no Diário de Lisboa a foto da moça e um artigo de seu confrade José Osório de Oliveira anunciando o desembarque em Lisboa de uma “viajante ilustre”, a “poetisa do Brasil” que escrevia versos assim:
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Verdade que esses versos são de quatro anos mais tarde, mas ela já vinha precedida de certa fama. Contudo é pouco provável que Pessoa houvesse lido qualquer coisa dela. Talvez desconfiasse mesmo dessa história de “a poetisa do Brasil”. O círculo dos cultores de Pessoa era talvez até menor, pois Portugal demora a reconhecer seus gênios. Mas Cecília sabia dele e o admirava: seu marido, o artista gráfico Fernando Correia Dias, era português. Os dois Fernandos se conheciam. Curiosamente, ambos desapareceriam no mesmo ano: Pessoa de cirrose hepática, Correia Dias por vontade própria, depois de um longo histórico de depressão.
Fato é que Cecília quis conhecer Pessoa e um encontro foi marcado, provavelmente no café A Brasileira, no Chiado. Pessoa não apareceu. Após duas horas de espera, o marido achou melhor desistir. No livro Cecília em Portugal, Leila Gouvêa imagina o seguinte diálogo entre o casal:
— Vamos, Cecília, ele não virá!
— Podemos aguardar um pouco mais, quem sabe ocorreu um imprevisto…
— Não, é perda de tempo. Eu o conheço bem. Se não veio até agora, não vem mais.
De volta ao hotel, há um pequeno volume à espera dela. Trata-se do recém-impresso Mensagem, hoje um dos títulos mais célebres em língua portuguesa. Na página de rosto, uma dedicatória: “A Cecília Meyreles, alto poeta, e a Correia Dias, artista, velho amigo e até cúmplice na invocação da Apolo e Atena, Fernando Pessoa, 10-XII-34”. Ela acusou o recebimento num cartão lacônico: “Cecília Meireles – cumprimenta e agradece”. Desapontada?
Muito já se especulou sobre as razões de Pessoa. Prosperou a versão pouco fiável de que a principal delas era de ordem transcendental: os astros o teriam dissuadido de comparecer ao encontro. Heitor Grilo, o segundo marido de Cecília, teria difundido essa história depois da morte dela em 1964. A própria Cecília não contribuiu muito para esclarecer o episódio. Apenas, numa carta a Armando Cortes Rodrigues, escreveu em 1944: “Como lamento não o ter conhecido!” E, mais tarde, numa crônica, dirigiu-se ao próprio Pessoa nestes termos: “Mas tu preferes a penumbra dos cafés sonolentos, em cujas mesas todos os poetas da Lusitânia fincam algum dia o cotovelo e, fronte apoiada ao punho, criam aqueles sonhos que eles mesmos não governam”.
E quanto a Pessoa? Teria ficado nele algum resíduo desse evento talvez penosamente evitado, ao custo quem sabe de um remorso tênue, mas que terminou por ser em si mesmo um acontecimento fincado na história? São contemporâneos da passagem de Cecília por Lisboa uns versos dele que depois foram encontrados em seu famoso baú:
Na véspera de nada
Ninguém me visitou.
Olhei atento a estrada
Durante todo o dia
Mas ninguém vinha ou via,
Ninguém aqui chegou.
O resto é silêncio. Mas ninguém está proibido de imaginar o que teria acontecido se… Se? Cecília, ela mesma escreveu uma vez a respeito dele:
Eu creio bem que intimamente nos pareçamos, como se parecem as pessoas de origem comum. Não só descendemos ambos de açorianos, o que é uma psicologia especialíssima, como tivemos ambos grandes mergulhos na literatura inglesa. Ele até escreveu em inglês. E esses mergulhos já vinham, a meu ver, tanto nele como em mim, por uma necessidade que se poderia chamar talvez de ‘insular’ – um sentido de separação, de ausência, de mar em redor… E por todos esses motivos, você sabe que os açorianos, os irlandeses, os celtas são criaturas tão de sonho que estar acordado já é um grande sacrifício… Tanto ele como eu nos aproximamos de investigações místicas e mágicas do mundo. Ele chegou mesmo a ser astrólogo de renome, segundo ouvi dizer. Eu, apenas fiquei pasmada diante das feitiçarias do mundo.
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