PESQUISA

AUTORES

  • Emmanuel Santiago
  • Fabrício de Moraes
  • Gustavo Melo Czekster
  • Lucas Petry Bender
  • Lucas Baqueiro
  • Lúcio Carvalho
  • Marcelo Sarsur
  • Paulo Roberto Silva
  • Rodrigo de Lemos
  • Sérgio Tavares
  • Sérgio Tavares
  • Wagner Schadeck

Julian Barnes reflete sobre morte, religião e arte

por Daniel Lopes (09/02/2010)

por Daniel Lopes – Um dos baratos de se viver em uma era como a nossa, onde a expectativa de vida é enorme se comparada à de poucos séculos atrás, é que podemos conferir as reflexões de vários escritores sobre a velhice. A morte, claro, sempre foi tema literário, mesmo quando poetas ainda se matavam […]

por Daniel Lopes – Um dos baratos de se viver em uma era como a nossa, onde a expectativa de vida é enorme se comparada à de poucos séculos atrás, é que podemos conferir as reflexões de vários escritores sobre a velhice. A morte, claro, sempre foi tema literário, mesmo quando poetas ainda se matavam jovens. Mas ter visto muito e agora ver a vida se esvair como que querendo permanecer, esse é um mote que esperou as décadas mais recentes. Pense em García Márquez. Em J. M. Coetzee. Em Philip Roth. Isso na ficção, ainda que no caso de Coetzee autobiográfica.

O escritor inglês Julian Barnes dá agora sua contribuição a essa safra que ainda vai render muito. Ele entra na relação com um livro parcialmente de memórias, Nada a temer. Aqui, é verdade, é menos o envelhecer, e mais a morte e o morrer mesmo, os temas centrais, mas eles são abordados pelo prisma de quem já passou dos 60 anos e, por isso, resolveu refletir sobre esse assunto nada ameno, mas bastante sólido, aquele mais inevitável de todos os acontecimentos: o fim.

Uma vez que o leitor tenha conhecimento da temática do livro, seu título pretende passar uma falsa impressão. Nada a temer não é um grito de coragem diante da morte, mas antes tem como centro o “nada” que quase certamente existe após a morte, e é muito natural que Barnes e todos nós o temamos. A ideia da falsa impressão foi boa, e Barnes só a esclarece após a metade da obra, mas aparentemente ele não contava com o astúcia dos autores de sinopses e orelhas. Paciência.

Montaigne foi o grande inspirador do francófilo Barnes – “Montaigne acreditava que, já que não podemos derrotar a morte, a melhor forma de contra-atacá-la é pensar nela constantemente. (…) Antecipar assim a morte é libertar-se de sua escravidão: mais ainda, se você ensina alguém a morrer, você o estará ensinando a viver.” Será, Montaigne? Será que não é o contrário: quanto mais se falar na morte, mais se tenderá a temê-la, quer dizer, temer o nada que vem após? Será que esse temor constantemente aumentado não leva a ilusões auto-satisfatórias a respeito de uma outra vida, com o eventual desprezo desta única que temos? Mas Barnes está disposto a percorrer seu caminho e, verdade seja dita, ele não é um autor de ilusões. Aliás, Nada a temer é o tipo de livro que claramente começou a ser escrito sem que o autor tivesse a menor ideia (ou não muita ideia) de até onde ou em que direção suas elucubrações levariam.

Dois grupos o ajudam na empreitada: sua família e seus pares artistas. Quase todos, em um grupo e outro, já mortos. Avós, pais, irmão – principalmente seu irmão, professor de filosofia ainda vivo, com quem Barnes troca correspondências sobre a morte e a quem cita constantemente. Das recordações do passado e explorações da vida dos avós e pais, transparece a velha teoria sobre a subjetividade da memória: lembramos apenas o que nos apetece lembrar; algumas ocorrências que talvez nunca existiram são agora “lembradas” para aparecer em um livro; atos desagradáveis são ampliados, etc.

Há bastante história artística, particularmente literária. Barnes relata a experiência de diversos escritores com as mortes de amigos e familiares e com a proximidade da própria. Exatamente o tipo de experiência pessoal que ele quer retratar em seu livro. São pungentes os relatos sobre os últimos anos de vida de seu pai e de sua mãe, e embora nem tudo sejam mágoas, não há piedade póstuma, mas antes a lembrança de como a proximidade da morte exacerbou suas idiossincrasias mais desagradáveis – o pai pouco comunicativo, desdenhoso das broncas da esposa, e esta, por sua vez, orgulhosa, centralizadora.

Fora algumas tiradas de escritores, há pouco humor em Nada a temer, e quando há, como se poderia esperar de um livro que tem como tema morrer/morte, é um humor negro. Por exemplo:

Quando eu era jovem, tinha pavor de voar. O livro que escolhia para ler no avião era sempre algo que eu considerava apropriado para ser encontrado junto a meu cadáver.

Ou após relatar brevemente um caso na França em que o marido congelou a mulher prestes a morrer de câncer e a manteve no porão de casa, para ser reanimada quando houvesse uma cura para a doença, e ele próprio, duas décadas depois, também foi congelado e posto ao lado da esposa. No entanto,

um mal funcionamento elétrico fez subir a temperatura dos corpos a um nível que tornou impossível a volta à vida, e o filho do casal se viu com o pesadelo de todo dono de freezer.

(Confesse: você soltou uma risadinha contra a vontade.)

*

Barnes é agnóstico, mas quando mais jovem declarava-se ateu. Hoje, fica exasperado com as explicações racionalistas para a impossibilidade de eventos como a Ressurreição e a Virgem. Não que ache esses eventos com grande probabilidade de terem ocorrido ou voltarem a ocorrer; é apenas que, diante dos ataques do que considera “absolutismo ateísta”, se vê defendendo alguns argumentos teológicos, ou melhor, se vê defendendo a possibilidade de uma coisa – qualquer coisa – ocorrer.

Tais objeções e “explicações” científicas – Cristo não estava “realmente” andando sobre a água, mas sobre uma fina camada de gelo, que, sob certas condições meteorológicas… – teriam me convencido quando eu era garoto. Agora, elas parecem inteiramente irrelevantes. Como disse Stravinsky, provas racionais (e, por consequência, contestação) não significam mais para a religião do que os exercícios de contraponto significam para a música. Ter fé significa acreditar precisamente no que, de acordo com todas as regras conhecidas, “não poderia ter acontecido”. Nascer de uma Virgem, a Ressurreição, Maomé dando um salto para o céu e deixando uma pegada na pedra, a outra vida. Nada disso poderia ter acontecido considerando tudo o que sabemos. Mas aconteceu. Ou acontecerá. (Ou, é claro, com certeza não aconteceu e sem dúvida não acontecerá.)

Barnes não está preocupado com a factualidade de tais eventos, mas antes encara a crença neles como um exercício de imaginação… o quê – salutar? inofensivo? rico? indispensável?

Com base na lembrança desses mitos, o escritor parece ver o espírito racionalista e materialista como um inimigo da ficção, da imaginação e nível de crença necessário para se adentrar em um conto, em um romance. A “suspensão da descrença”, diz ele, é pré-requisito para a fruição de obras como as de Shakespeare e Flaubert, e que tal suspensão “não está longe da admissão ativa da crença”. Mas há crenças e crenças. Há a ficção que sabe que o é – Hamlet. E há a ficção que muitos encaram como narrativa de fatos históricos e, além disso, como manual para a vida – Bíblia. Embora você já possa ter lido ou visto debates acalorados sobre Emma Bovary, dificilmente já leu sobre fãs do poeta Khalil Gibran explodindo universidades que privilegiam o ensino de Cervantes.

Felizmente, Julian Barnes não nega totalmente a existência de Deus por conta de uma adesão àquela aposta de Pascal tão ao gosto de muitos. Para o filósofo francês, como é sabido, é melhor você acreditar em Deus e nas Escrituras. 1)Se Ele não existir, após a morte você não terá perdido nada; 2)se existir, você terá ganho nada menos que o passaporte para o Paraíso; 3)se não acreditar e Ele não existir, você também não terá perdido nada, mas o melhor é não correr risco desnecessário, porque 4)se você não acreditar, e Deus existir, você estará frito, literalmente, porque o Inferno o aguarda.

Isso é o que hoje chamaríamos de cinismo, ou mesmo de indigência intelectual, mas que já foi um hit em meio a muitas turmas. Barnes observa corretamente que a aposta pascaliana não é uma prova da existência de Deus – “mas (…) uma tomada de posição interesseira, típica do corpo diplomático francês” – , e levanta algumas questões, como tantos outros já levantaram antes dele, de uma forma ou de outra:

E se Deus não for como se imagina? Se, por exemplo, Ele não gostar de jogadores, especialmente aqueles cuja fé n’Ele esteja baseada numa mentalidade de pagar para ver? E quem é que decide quem ganha? Não nós: talvez Deus prefira um incrédulo honesto ao apostador servil.

Bingo!

E lá vai Julian Barnes, o ficcionista, se divertir imaginando várias possibilidades e vários perfis possíveis de Deus. Por exemplo: Deus existe, mas não a vida eterna. Ou Deus prefere os insetos aos homens, e é aos primeiros que ele observa e guia. Ou de repente Deus é um grande gozador:

O jogo imaginado por Deus, o irônico, é este: incutir desejo de ser imortal numa reles criatura e depois observar as consequências. Observar este humanos, dotados de consciência e inteligência, correndo de um lado para outro como ratos aterrorizados. Ver um grupo dizer ao resto que a porta deles (que nem eles conseguem abrir) é a única certa, e depois, talvez, começar a matar todo mundo que aposta numa porta diferente. Isso não seria divertido?

Sim, em uma ficção seria divertido. E por favor, não me venha dizer que o Deus imaginado por Barnes – em qualquer uma de suas diversas formas – não pode ser o verdadeiro Deus. A prova para a existência do Deus de Barnes é exatamente aquela para a existência do Deus de Ratzinger: nenhuma. Mas apenas um dos proponentes está consciente de que só está exercitando a imaginação.

*

Os que vê como “mitos modernos” tampouco lhe atraem. Desenvolvimento da personalidade, bens materiais, status garantido com um bom emprego, uma boa poupança, façanhas sexuais… São os novos caminhos para um Novo Paraíso, escreve Barnes. E o que dizer daquele grande consolo que podemos ter frente à inevitabilidade da morte, o de que, se deixarmos um filho no mundo, de certa forma continuaremos a viver? Não é algo que faz sentido, até mesmo geneticamente falando? Bem, diz nosso porta-voz do contraponto, “Em alguns casos, os filhos podem até piorar as coisas: por exemplo, mães podem sentir sua mortalidade mais agudamente quando os filhos saem de casa – a função biológica delas foi realizada, e agora o universo só precisa que ela morram”.

Há ainda os muitos pais que não se enxergam nos próprios filhos, e os muitos filhos que vivem a partir da adolescência para matar a memória dos pais – o que, de uma maneira nem tão aguda, é o que ocorreu na própria família de Julian Barnes. Mas mesmo que o “carregamento intergeracional” ocorra em alguns casos, e filhos lembrem os pais nos dois sentidos da palavra lembrar, “Até onde vai isso? Uma geração, duas, três?”

O que acontece quando você chega à primeira geração nascida depois que você está morto que não tem nenhuma lembrança de você, e para a qual você é mero folclore? Você continuará a viver nela e ela saberá que é isso o que está fazendo? Como Frank O’Connor, o grande autor de contos irlandês, disse: o folclore “nunca entende nada direito”.

OK, Barnes, OK, OK. Mas se estou no final da minha vida e acho que ela dá um livro – ah-rá! –, agora sim ficarei imortalizado. Não?

(…) se, quando nos aproximamos da morte e olhamos para trás, “compreendemos nossa narrativa” e colocamos um sentido final nela, acho que estamos fazendo pouco mais do que confabular. (…) Eu esperaria que uma pessoa que está morrendo fosse um narrador não confiável, porque o que é útil para nós geralmente conflita com o que é verdadeiro, e o que é verdadeiro naquele momento é a sensação de ter vivido com alguma finalidade, e de acordo com algum enredo compreensível.

Ou seja, eu posso achar que minha vida dá um bom livro, e isso ser apenas wishful thinking. Ou a vida realmente ter lances de sobra para render um bom livro, e eu não saber escrever. Ou de repente escrevo um bom livro recheado de invenções e não de memórias. Neste caso, terei escrito uma boa ficção, e, ei!, a ficção de qualidade, de boa a sublime, não imortaliza seu autor? As criações de um Dostoiévski, de um Michelangelo, não imortalizaram seus criadores?

Não há nada que Julian Barnes valorize mais que a boa arte. Bem, talvez a vida, mas concluí que esta sem arte, para Barnes, não seria uma vida em que se valesse a pena lamentar a morte. Após informar que Nada a temer está repleto de pensamentos de gente como Stravinsky e Jules Renard, Barnes confessa: “Estes artistas – estes artistas mortos – são meus companheiros de todo dia, mas também são meus antepassados. Eles são minha verdadeira linhagem (…)”. (Jules Renard, em particular, é com seu Journal o principal companheiro de Barnes em Nada a temer.)

O autor vê com ótimos olhos a “religião da arte” de Flaubert, com ênfase na prática, não na devoção – “Se for para comparar a arte com uma religião, não será certamente com uma religião como o catolicismo tradicional, com o autoritarismo papal em cima e a servidão obediente abaixo. Em vez disso, deve-se pensar em algo como a Igreja dos primeiros tempos: fértil, caótica e dividida. Para cada bispo existe um blasfemador; para cada dogma existe um herético.”

Por falar em cristianismo, o que Barnes teme com uma hipotética derrocada sua é o posterior vazio. Não vazio moral, mas estético. Ou melhor, um vazio de senso de apreciação estética e de ignorância histórica sobre a produção artística do passado, incluída a arte sacra. Mas aqui Barnes tem a companhia inclusive de Cristopher Hitchens e Ricard Dawkins – o primeiro disse certa vez que não consegue pensar a Europa sem suas catedrais, ou, se consegue, não gosta do resultado; o segundo já se confessou apreciador da beleza da arte na Capela Sistina.

Mas o ponto é que a ênfase na “atemporalidade” e “imortalidade” da arte e do artista é outro mito, para Barnes. Não tão moderno, mas um mito, talvez hoje mais em voga do que nunca. Dada a vastidão do tempo geológico, mesmo a literatura de Shakespeare e a música de Mozart mais tarde se tornarão tão mortas quanto já são hoje as criações de infinitos artistas menores do passado.

O gosto muda; as verdades se tornam clichês; formas inteiras de arte desaparecem. Até o maior triunfo da arte sobre a morte é risivelmente temporário. Um romancista pode ter esperança de ser lido por mais uma geração de leitores – duas ou três, se ele tiver sorte – o que pode parecer um escárnio em ralação à morte; mas isso, na realidade, é como um condenado arranhando a parede da sua cela. Fazemos isso para dizer: eu também estive aqui.

Não uma citação muito animadora para se concluir a indicação de um livro, admito. Mas leiam, leiam. É o que nos resta. Leiam antes que seja tarde demais.

::: Nada a temer ::: Julian Barnes (trad. Léa Viveiros de Castro) :::
::: Rocco, 2009, 256 páginas ::: encontre pelo melhor preço :::

—–
ATUALIZAÇÃO:  Nos comentários abaixo, um link interessante para palestra do escritor Terry Pratchett, sobre Alzheimer e com reflexões sobre a morte. Clique aqui para assistir.

Daniel Lopes

Editor da Amálgama.

Avatar
Colabore com um Pix para:
[email protected]