Comunismo e cristianismo segundo Karl Kautsky


-- "A origem do cristianismo", de Karl Kautsky --

por André Egg

Eu recebi esse livro para resenha, se não me falha a memória, em junho do ano passado. Demorar sete meses para mandar uma resenha pode ser desculpado por um monte de compromissos pessoais, nenhum dos quais seria justificativa suficiente. Prefiro argumentar que o livro foi publicado originalmente em 1908 por uma editora alemã, e sua tradução para o português foi feita por Moniz Bandeira em 1969. Ficou na gaveta do tradutor esse tempo todo, até que no início de 2006 ele concluiu uma revisão da tradução com base na primeira edição alemã, escreveu um prólogo e um apêndice, resultando no volume que saiu publicado agora em 2010 pela Civilização Brasileira, um selo da editora Record. Vicissitudes do mercado editorial brasileiro atrasaram tanto esta publicação fundamental, que me fazem pensar que fica desculpado meu atraso com a resenha.

Dificilmente eu escreveria um texto mais instrutivo que o prólogo escrito pelo tradutor, de modo que prefiro ressaltar aspectos que ele já não tenha contemplado.

Quando recebi o livro, por sugestão do nosso editor, Daniel Lopes, imaginei que seria uma obra de interesse apenas histórico, no sentido de ser uma obra velha, já com mais de 100 anos de publicação original, que não pudesse dar nenhuma contribuição relevante à bibliografia existente sobre o assunto (a história do cristianismo nos primeiros séculos) e, além de tudo, que já estivesse totalmente superada pelas pesquisas realizadas em todo o século XX.

Isso talvez me levou a adiar ainda mais a leitura do livro, à medida em que seria para mim um obra mais interessante como meio de conhecer o pensamento do principal teórico da social-democracia alemã, um importantíssimo ramo do marxismo que foi totalmente derrotado/superado tanto na própria política alemã (com o fracasso do governo revolucionário de 1918-19) como na política da Internacional Comunista onde o bolchevismo soviético se tornou logo dominante — e depois uma ditadura internacional ignominiosa do seu ramo stalinista, a partir da década de 1930.

Termino a leitura surpreso com o tamanho do meu engano.

O interesse histórico na visão política de Kautsky e das disputas internas do marxismo existe apenas muito marginalmente, apenas naqueles pequenos trechos onde a obra se dirige mais claramente para seu público da primeira edição. Notadamente no último capítulo, onde o autor faz uma comparação entre o cristianismo primitivo e os movimentos operários alemães da primeira década do século XX. Esta parte é justamente a que mais envelheceu na obra, escrita num momento em que Kautsky ainda previa, quase que infantilmente para nós que conhecemos os desdobramentos posteriores desta história, uma vitória política da social-democracia, conduzindo a um verdadeiro comunismo. Que significava, como ele deixa claro, uma concentração dos modernos meios de produção nas mãos do Estado (e não na de um punhado de capitalistas), controlado democraticamente pelo proletariado por via de suas instâncias partidárias, e mantido o grau máximo de liberdade individual na ponta do consumo.

O programa social-democrata (espero que a sigla PSDB não confunda o conceito para os leitores brasileiros) continua muito agudo e atual, quanto mais se tornaram monstruosos os desvios políticos promovidos à direita e à esquerda desse programa – apenas parece que está absolutamente claro que ele não pode ser produzido exclusivamente em escala europeia: terá de ser pensado/empreendido em escala mundial.

Voltemos à história das origens do cristianismo.

A obra de Kautsky continua fundamental sobre o assunto, especialmente dada a escassez de bibliografia confiável em português. O assunto continua dominado por literatura confessional, salvo honrosas exceções. E neste campo, a literatura confessional continua se prestando às mais terríveis falsificações, em nome da preservação de certos dogmas cujo interesse de manutenção está nas instituições eclesiásticas às quais algumas editoras pertencem.

-- Karl Kautsky (1854-1938) --

Deste modo, é sempre importante uma obra escrita com o necessário “ateísmo metodológico”, no caso de Kautsky fornecido pelo que se entendia à época por “materialismo histórico” – a saber, a ideia de estudar a história sempre a partir do movimento de suas forças econômicas.

É verdade que o “materialismo histórico”, da forma como ficou sob o domínio do stalinismo, tornou-se apenas um arremedo de força intelectual/filosófica, convertendo-se em dogma de implantação violenta e coercitiva, do mesmo modo que as doutrinas cristãs em séculos anteriores. Não é assim com a forma em que a metodologia foi empregada por Kautsky.

O que o autor faz é o que convencionamos chamar de História Nova, que conhecemos no Brasil apenas pelos autores franceses influenciados pelo marxismo (começando com Marc Bloch e Lucien Febvre – que também escreveram sobre história do cristianismo). Kautsky trabalha com a literatura latina, com memorialistas como Josefo, com a literatura patrística (especialmente a do segundo século) e mesmo com as Escrituras do Cânon Cristão. O autor faz aquilo que se tornou o metiér do historiador no século XX: tira das fontes apenas o que elas não pretendem dizer, desconfiando sempre daquela intencionalidade que faz de todo documento um monumento, ou seja, um discurso para a posteridade, imbuído de uma série de armadilhas possíveis na sua leitura.

O autor também dialoga com a fabulosa erudição alemã do século XIX, tanto histórica quanto teológica, o que torna o livro muito interessante para o leitor brasileiro, à medida em que não temos conhecimento desta bibliografia de base, inacessível em nossa língua. O livro é, então, muito mais do que uma história do cristianismo nos primeiros séculos: é uma síntese da pesquisa história sobre o império romano, a filosofia helenística e os movimentos do judaísmo.

Com base neste vasto panorama, Kautsky tira do cristianismo uma série de pretensas originalidades e mostra o movimento como deve ser visto: inserido nas disputas e contradições de seu tempo. Da mesma forma, trata como fonte histórica os Evangelhos e as Epístolas do Novo Testamento apenas naquilo que eles possuem de valor histórico: um testemunho sobre as comunidades que lhe deram forma escrita, entre 40 e 100 anos após a morte de Cristo. Para isso ele usa de forma muito instigante a crítica bíblica, disciplina que teve o grosso do seu desenvolvimento no século XIX.

O cristianismo assim desvendado por Kautsky foi um movimento proletário, a princípio uma comunidade sediciosa do nacionalismo judaico de Jerusalém e da Galiléia, que praticou o comunismo do partir do pão – que o autor classifica como um comunismo de consumo. Este o seu interesse pelo estudo do tema, pois o estudo da origens do cristianismo surgiu primeiro como uma introdução a uma obra em dois volumes intitulada Precursores do socialismo (volume 1: Movimentos comunistas na Idade Média e volume 2: O comunismo na reforma alemã – fica a dica para a Record traduzir também estes). Como fosse criticado por outros historiadores, o que era um capítulo inicial foi desenvolvido em uma obra maior e melhor fundamentada, resultado que continua relevante 100 anos depois.

Para mim, além da caracterização da comunidade cristã primitiva de Jerusalém (da qual temos boas caracterizações por outros autores), o que chama mais à atenção na obra de Kautsky são suas explicações sobre a transformação de uma comunidade radical proletária em uma instituição hierárquica, processo que sabemos que estava completo nos tempos de Constantino (século IV), mas que até hoje considero que ninguém explicou tão bem como nesta obra. Kautsky propõe que as próprias contradições do regime de comunismo de consumo praticado pelos cristãos primitivos levou às transformações operadas, fortalecendo a autoridade dos bispos.

Deste modo, é muito interessante ler uma história em que o cristianismo dos primeiros séculos não se reduz a um embate filosófico/doutrinário entre os primeiros teólogos (como geralmente o assunto é tratado na bibliografia sobre o tema), mas é apresentado como a história da vida comum dos pobres e de suas esperanças escatológicas, bem como os limites e contradições de suas formas de vida e trabalho.

Também recebe importância nas considerações de Kautsky o surgimento de um comunismo de produção nos mosteiros, a partir do século IV – assunto pouco discutido pelos historiadores, mas que tem papel preponderante no desenvolvimento de toda a economia europeia da Idade Média.

Enfim, continua sendo uma obra única e indispensável, pelas suas qualidades em intercalar o interesse para o estudo histórico de questões de economia, política e religião. E só nos mostra o quanto andamos atrasados em nossas discussões brasileiras sobre o tema, enquanto passamos um século desconhecendo esta interpretação tão original.

::: A origem do cristianismo ::: Karl Kautsky (trad. Luiz Alberto Moniz Bandeira) :::
::: Civilização Brasileira, 2010, 560 páginas ::: Compre no Submarino ou na Livraria Cultura :::
Amálgama




André Egg

Professor da UNESPAR, professor colaborador no PPGHIS-UFPR, colaborador da Gazeta do Povo. Um dos organizadores do livro Arte e política no Brasil: modernidades (Perspectiva, 2014).


Amálgama






MAIS RECENTES


  • Ignez

    Nada como uma indicação para leitura com tão bons argumentos. Interessei-me. Vou ler. Parabéns pela resenha.

  • Catatau

    Bela resenha, parabéns!

    Deu vontade de ler o livro mesmo

  • Pingback: Últimas | Um drible nas certezas()

  • Leonor

    Deu vontade de ler mesmo, já fiz meu pedido do livro pela Estante Virtual…

  • GERALDO

    Cuidadosa e excelente resenha (cheia de entusiasmo). Sou cristão de forte tendência ecumênica e mente aberta para contra-argumentos. Já comecei a leitura, antes mesmo, aliás, de ter lido a resenha (o que até me fez admirar mais a qualidade da resenha). Penso, igualmente, que , para qualquer cristão consciente, esclarecido e convicto, tornam-se úteis , acho que até necessárias, leituras de análises extra-confessionais, como a de Kautsky.
    Parabéns pelo excelente texto.
    Passarei a acessar seu blog.

  • Ivani Medina

    xaropada marxista fazendo do inexistente Jesus garoto propaganda dessa ideologia.

    Contam-se muitas histórias para não contar a verdade. Existem
    outras versões desinformadas de que Jesus foi uma criação romana para dominar o
    mundo, quando Roma já dominava a tudo e a todos. Jesus continua sendo um ótimo
    vendedor de livros pela curiosidade que ainda desperta. Quero falar um pouco de
    uma história que não interessa a religioso algum e não precisa da bíblia para
    nada. O foco dessa narrativa envolve judeus, romanos e cristãos. Os dois
    primeiros são bem definidos nas suas origens, mas quem seriam os cristãos na
    realidade? Ex-judeus?

    No final do século I a classe média romana de origem latina
    praticamente havia desaparecido. Outra classe média de origem grega havia
    substituído aquela. Isto ocorreu em função da enorme quantidade de escravos
    gregos e cultos traficados da Ásia Menor para a Itália. Esses escravos davam de
    dez a zero em seus ricos senhores romanos. Havia milênios que esses gregos
    orientais acumulavam conhecimentos gerais e específicos de todos os povos. O
    encantamento gradual e natural dos romanos, pelo bom resultado das suas
    aplicações, foi facilitando conquistas que escravo algum havia obtido de Roma.
    Otavio Augusto, um helenista de peso, cuidou bem de um melhor destino para essa
    gente. Foram esses hábeis sintetizadores e desenvolvedores de culturas que
    fizeram do príncipe do Senado Romano um deus a ser venerado por todo o mundo
    helênico. Uma providência muito curiosa, pois a tradição helenística
    transformava seus monarcas em deuses somente depois de mortos. Essa atitude
    surpreendente para aquele contexto era comum somente no Egito, que apresenta
    uma ligação estreita com o cristianismo.

    O esplendor de Roma chegou com o trabalho e o talento desses
    escravos especiais, que chegaram a partir do final do último século antes da
    era comum. Foi justamente essa descendência bilíngue que os primeiros propagandistas
    cristãos, gregos vindos em maioria da Ásia Menor, encontraram em Roma e lá
    fundaram as primeiras escolas cristãs para a formação dos homens da Igreja, no
    século II. O que os nossos historiadores
    cristãos não chamam atenção, para não despertar a curiosidade de ninguém, é que
    havia uma antiga rixa entre judeus e determinado setor das classes médias
    gregas, especialmente na Ásia Menor e no Egito. O domínio romano acentuou
    bastante essa disputa devido às medidas protecionistas concedidas ao judaísmo
    pelo Senado Romano, na época de Júlio César. Alexandria, no Egito, era a cidade
    mais importante depois de Roma. Quando os romanos mudaram o antigo status da
    cobrança de impostos os judeus quiseram se equiparar aos gregos, pagando menos
    do que os egípcios. Os confrontos sangrentos começaram a pipocar daqui e dali.

    Paralelamente a isso, havia muita conversão de gregos, romanos e
    outros ao judaísmo nos primeiros séculos. Josefo comenta que dois espertos
    judeus tiravam dinheiro de uma senhora da alta sociedade romana, a título de
    graças a receber do deus dos judeus, e seu marido os denunciou a Tibério.
    Escritores romanos como Juvenal e outros criticavam essas conversões como
    absurdas chamavam atenção para o perigo que representava o dominado se impor daquela
    maneira ao seu dominador. Tanto famílias humildes quanto famílias importantes
    das sociedades romanas estavam sendo absorvidas por aquele fenômeno. Esta situação
    foi num crescente tal, até que no século II, provavelmente pressionado pela sua
    corte, o imperador Adriano proibiu a circuncisão em todo império. Esta prática era
    o último passo no processo de conversão e a proibição severa, incluindo os
    judeus, provocou a terceira guerra judaica. A pena para quem desrespeitasse a
    ordem era a execução. Até aí não se tem notícias do alegado cristianismo de
    Jesus Cristo. Tais notícias vão surgir durante o reinado do sucessor de
    Adriano, Antonino Pio, em meados do século II. O temor da pena de morte mantida
    por Antonino, já excetuando os judeus, há de ter deixado uma imensidão de
    incircuncisos que jamais seriam aceitos como membros da nação judaica.

    Eis que nesse momento difícil para tantos incircuncisos, surge
    uma saída brilhante para enfrentar o judaísmo, encabeçada por gregos e
    descendentes greco-romanos: um judaísmo fajuto que dispensava a circuncisão e
    se voltava violentamente contra o judaísmo original. O pretexto era a
    “história” de que deus, magoado com o fato de os judeus terem
    sacrificado seu filho unigênito enviado para salvar a humanidade, rompeu com o
    judaísmo e passou a honrosa missão da salvação para os cristãos. História boba
    para boi dormir que recebeu o nome de “Teologia da Substituição”. Ridícula
    demais, mas colou. Daí nós podemos compreender com facilidade alguns fatos,
    como por exemplo: a) nunca ter-se encontrado ligação histórica alguma entre o
    judaísmo e o cristianismo (senão as que os teólogos cristãos inventam), pois necessariamente
    deveriam ser conhecidos e reconhecidos pelos judeus nomes de judeu-cristãos dessa
    transição; b) fica explicada a perseguição dos pais da Igreja aos judeus; essa
    perseguição herdada dos gregos manteve o judaísmo sob controle e possibilitou a
    expansão do cristianismo. A hostilidade para com os judeus era simpática aos
    insatisfeitos das altas classes greco-romanas; c) nenhum documento cristão do
    século I foi encontrado até hoje, portanto, evangelho algum foi escrito no ano
    70 ou em qualquer outro ano daquele século. Foram os pais da Igreja que dataram
    os evangelhos para cravar essa história falsa no século I. Como havia muitas
    seitas no judaísmo naquele século, mais uma criada antes da guerra de 66/70 que
    destruiu quase tudo em Jerusalém, ninguém ia desconfiar. Os incircuncisos
    precisavam ser enganados, pois os gregos não tinham como enfrentar aquela
    situação de outro modo; d) a relação entre o cristianismo e o Estado foi
    decisiva na sua vitória, conseguindo neutralizar a força dos privilégios conquistados
    pelo judaísmo no tempo de Júlio César e ao arrematar o rebanho perdido.

    Depois de que perceberam o poder do cristianismo se consolidando
    ao longo do tempo, e a realidade de estarem hospedados em sociedades cristãs,
    os judeus preferiram “esquecer” esses fatos por pura conveniência e sabedoria:
    iam cutucar a onça com vara curta e se desfavoreceriam em sua autoridade
    religiosa. A história secular na qual o proselitismo judaico havia sido o mais
    poderoso adversário da cultura greco-romana seria de pouca serventia no álbum
    das glórias passadas. Aliás, era até perigosa. A narrativa do Antigo Testamento,
    na bíblia cristã, continuava muito importante para todos e o mito da origem
    hebraica era fundamental ao judaísmo. Muito mais interessante do que aquela
    realidade histórica de povo constituído de convertidos de toda parte, sem o pedigree
    divino. Tal decisão veio favorecer a reinvindicação sionista pelas terras
    palestinas, das quais têm direito algum. Portanto, não interessando aos
    cristãos nem tampouco os judeus, a história desse antídoto (cristianismo)
    surgido para conter o crescimento explosivo do judaísmo no mundo antigo, pelo
    viés da genialidade grega apoiada por alguns latinos, acabou “esquecida”.
    Existem outras versões, mas não pude deixar de contar a minha. A mais simples
    penso eu.