Espero que outras cidades do Brasil se interessem em receber o projeto
por André Egg
Normalmente escrevo comentários de concerto depois deles acontecerem. Desta vez faço o contrário – escrevo primeiro, depois o concerto acontece.
É que desta vez é um acontecimento especial, bem acima do corriqueiro. Trata-se de uma obra que dificilmente se vê executada em público, apesar de ser uma das obras mais representativas do repertório de concerto, e talvez a que mais revolucionou o próprio conceito de composição para piano. O pioneirismo desta apresentação vai mais adiante, pois além do concerto que será realizado próxima sexta e sábado no Teatro Palácio Avenida, em Curitiba, também será realizada gravação ao vivo da obra integral, a ser lançada em CD. Os ingressos têm preço único de R$ 5,00 – porque o projeto tem apoio da Lei de Incentivo à Cultura e da Fundação Cultural de Curitiba.
A direção musical e concepção do projeto é da professora Vera Di Domenico, cujo trabalho conheço há muito tempo. Ela se destaca como pedagoga exatamente pela capacidade de engajar seus alunos em projetos ousados, que resultam ao mesmo tempo no crescimento musical e pessoal dos alunos e na difusão de literatura musical de alto nível para a comunidade – no caso, a de Curitiba, onde Vera já realizou projetos importantíssimos com seus alunos, como o ciclo completo das Cirandas e Cirandinhas de Villa-Lobos (que comentei aqui), ou as obras para piano a quatro mãos de Schubert.
Mas desta vez o negócio é diferente. Muito mais do que fazer um projeto em que um grande grupo de alunos se reúne para realizar ciclos de obras chave da literatura musical, este concerto concebido por Vera Di Domenico é uma ousadia que já estava em intenção há mais de 20 anos, faltando apenas achar os pianistas ideais – com coragem e fôlego suficiente para encampar um projeto dessa magnitude. E quem tomou os brios de fazer isso foram Lilian Nakahodo e Grace Torres.
Como conheço a Grace há tempo, e acompanho um pouco do trabalho dela, entrei em contato para pesquisar sobre o projeto. Ela acabou me convidando para assistir um ensaio semana passada. Na verdade não foi um ensaio, foi uma versão privada do concerto que virá a público agora. Realizado na residência do casal Silvio Silva e Karine Kawamura: não é qualquer pessoa que se propõe a ter um piano preparado em casa, de modo que o apoio de entusiastas cultos se torna fundamental para um projeto desses.
O que vi foi uma coisa impressionante.
O ciclo de 16 sonatas e 4 interlúdios foi composto por John Cage (1912-1992). Ele é certamente o compositor mais importante do século XX, no sentido de ser o que mais fez para que a música do século XX rompesse com os modelos herdados do século XIX. Sonatas e Interlúdios para piano preparado foi um ciclo composto entre 1946-48, depois de mais de uma dezena de obras para este tipo de instrumento. Nesta obra, pode-se dizer que Cage atingiu a excelência da escrita para piano preparado, construindo sua obra maior após uma série de experiências de menor porte.
A composição do ciclo de peças incluiu a determinação de uma preparação do piano, que demora cerca de duas horas, e consiste em introduzir borrachas, parafusos e outros apetrechos indicados pelo compositor, em um total de 45 notas do piano.
Eu nunca tinha ouvido mais que trechos ou peças isoladas dessa obra, de modo que assistir o ciclo integral foi uma experiência muito marcante. A obra lida com a tradição musical de uma forma muito interessante: a referência do conceito de sonata vem de Scarlatti, como uma peça que está na transição entre a forma binária das danças barrocas e o elaborado allegro de sonata do classicismo. Muito do discurso pianístico aproxima a obra da sonoridade do cravo de Scarlatti. Outra referência notável é a prolixidade melódica de Satie, negando radicalmente a ideia de desenvolvimento temático do romantismo alemão. Cage, via Satie, compõe temas melódicos como coisas etéreas, não-objetivas, sem quadratura de frase, cadência ou lógica harmônica tonal. Também de Satie e da música popular norte-americana vem um discurso do piano de music hall, de cakewalk de música dançante e jazzística que estão como referência em muito da obra. Certamente a ideia do piano preparado e dos timbres inusitados que dele resultam trazem referências da música oriental, especialmente o Gamelão balinês, cuja sonoridade foi introduzida como referência na música ocidental primeiro por Debussy.
Ou seja, apesar de ser uma obra profundamente inovadora, revolucionária e radical – no sentido de abrir novos caminhos para a composição musical e para o uso do piano na segunda metade do século XX, a obra de Cage tem profundas raízes e um diálogo fecundo com a tradição musical do passado. A importância da obra fica reforçada quando sabemos que a trajetória posterior de Cage levou a novidades ainda mais instigantes – pode-se dizer que a música nunca foi a mesma depois de Cage. Para ficar apenas nas coisas mais inusitadas, vale lembrar Imaginary Landscape N° 4 (1951), para 12 rádios, ou 4’33” (1952) para qualquer instrumento ou combinação de instrumentos – na qual ninguém toca nenhuma nota.
Em suma, não há como exagerar a importância do compositor ou da obra em questão.
Resta pensar por que a obra é pouco tocada, e qual a relevância do concerto da Lilian e da Grace.
Em primeiro lugar, a parte logística da coisa é bem complicada. Pelo que conversei com Grace, ela tem um piano preparado em casa, mas também fizeram vários ensaios no piano do Sílvio e da Karine, porque cada piano preparado é diferente (muito mais do que cada piano comum é diferente). Como serão todos ainda diferentes do piano do Teatro Palácio Avenida, a oportunidade de tocar em mais de um piano é fundamental para a preparação.
O estudo da partitura começou um ano antes do concerto. Se algum pianista olhar a partitura, vai perceber que não são as dificuldades técnicas habituais que fazem a obra difícil. Não há passagens extremamente rápidas ou escalas especialmente complicadas, a textura não é tão carregada. A dificuldade se concentra especificamente na relação complexa que se estabelece entre o pianista e um instrumento que, a rigor, não é mais o piano.
Pianistas constroem sua identidade com o instrumento ao longo de muitos anos de prática diária, onde aprendem a associar certos movimentos musculares (pressionar tal e qual nota) a certos resultados sonoros. Estudar uma música envolve, por isso, memória mecânica (os movimentos dos dedos), memória visual da partitura, memória estrutural da música (quantas partes tem a obra, repetições, etc.), memória auditiva. Alguns pianistas usam também uma memória que envolve a compreensão das estruturas harmônicas da obra, mas nem todos fazem isso. Certamente a memória auditiva tem que ser totalmente reelaborada para estudar esta peça, especialmente naqueles recôndidos da atividade cerebral que associaram certos movimentos musculares ao som de certas notas: isso não acontece mais no piano preparado, onde algumas teclas continuam soando como piano, outras soam como instrumentos de percussão de altura definida, outras ainda como ruídos indeterminados.
Isso torna tudo muito mais complexo do ponto de vista da preparação do pianista, que é um misto de preparação cultural-musical e muscular-acrobática-atlética. Ambas ficam seriamente comprometidas na medida em que Cage subverte a relação tradicional com a literatura pianística e com técnica instrumental. Pode-se dizer que para esta obra o pianista tem que aprender a tocar piano de novo. Imagino que quando desmontarem seus pianos preparados após a gravação do CD, Lilian e Grace nunca mais serão as mesmas pianistas, voltarão ao piano tradicional de uma forma completamente nova.
O que ouvi no ensaio, apesar de minha cultura a respeito das gravações já existentes dessa obra ser limitada, me deu a certeza de estar diante de uma execução perfeita, em alto nível técnico e de excelência interpretativa.
E é bom que seja assim, porque essa peça não deve ter sido tocada muitas vezes no Brasil (será uma estreia em Curitiba?). Tampouco parece haver gravações fora do eixo Europa-EUA-Japão, a acreditar na lista de 26 gravações integrais que consta na Wikipédia anglófona.
É, em todos os aspectos, um trabalho pioneiro. Apesar de a obra ser obrigatória no acervo discográfico de quem pretende uma cultura musical mínima, certamente a experiência de ouvi-la ao vivo é inigualável. Neste sentido, espero que, além do público curitibano, outras cidades do Brasil se interessem em receber o projeto. Sei que as pianistas estão dispostas.
É uma iniciativa para a qual o meio musical brasileiro deve estender o tapete vermelho.
André Egg
Professor da UNESPAR, professor colaborador no PPGHIS-UFPR, colaborador da Gazeta do Povo. Um dos organizadores do livro Arte e política no Brasil: modernidades (Perspectiva, 2014).