A filosofia do incômodo

O Projeto de Lei que quer regulamentar a profissão de filósofo não distingue este profissional do professor de filosofia.

“As pessoas se recusam a ser perturbadas pelo encrenqueiro que lhes tira o sossego. Sempre fui esse tipo de encrenqueiro, a vida toda, continuo sendo e sempre vou ser o encrenqueiro que meus parentes sempre julgaram que eu era. (…) Tudo o que escrevo, tudo o que faço é perturbação e irritação. Minha vida inteira, toda a minha existência nada mais é do que perturbação e irritação ininterruptas. Porque chamo a atenção para fatos perturbadores e irritantes. Existem aqueles que deixam os outros em paz e aqueles que perturbam e irritam, categoria à qual pertenço. Não sou o tipo de pessoa que deixa os outros em paz, nem quero ser uma pessoa assim.”
– Thomas Bernhard em Origem

- Giovani Cherini em um congresso de holística -

Passei alguns dias pensando no Projeto de Lei do deputado Giovani Cherini (PDT-RS), que visa regulamentar o exercício da profissão de filósofo em todo o país. Tão logo soube da notícia que este projeto tramita na câmara, me manifestei contra, simplesmente pelo fato de que ele claramente pretende favorecer a Academia Brasileira de Filosofia, uma instituição irrelevante para a comunidade filosófica e que, recentemente, encaminhou ao governo federal uma sugestão absurda como projeto de lei: estampar nas capas das obras do filósofo alemão Martin Heidegger a advertência “Este livro tem conteúdo nazista”. Ora, o projeto que visa regulamentar o exercício da profissão de filósofo pretende justamente conceder à Academia Brasileira de Filosofia a função de representante da filosofia e língua filosófica nacionais! Isso é preocupante, pois esse tipo de “ataque” não costuma ser tomado como legítimo tanto por quem conhece a história da filosofia quanto por quem decide pesquisar o pensamento de autores específicos ou escolas filosóficas.

Pelo contrário, o ataque – que funciona como um desserviço não apenas à comunidade filosófica como à sociedade em geral – pode ser detectado desde o nascimento da filosofia, por assim dizer, com a figura de Sócrates; nesse sentido, parece sempre se constituir como ataque de um determinado grupo com seus interesses específicos contra o filósofo. Ou melhor, não apenas contra o filósofo. Mas contra a filosofia. No final das contas, todos saímos perdendo, pois a filosofia – que assume a sua forma com a figura do filósofo – reconhece como válidos apenas os fundamentos diretamente relacionados à sua atividade: podemos provar essa tese quando entramos em contato através da produção filosófica de diversos pensadores nos mais distintos momentos da história.

Nesse sentido, a filosofia não é necessária apenas em momentos de crise, de mudanças, mas também nos momentos em que nós não conseguimos enxergar com clareza – por este e outros motivos, o Mito da Caverna, de Platão, sempre será um símbolo para a filosofia, independente da época em que nos situemos.

Sem dúvida alguma, o projeto de lei que visa regulamentar a profissão de filósofo atende a interesses externos à filosofia, indo, assim, em contraponto à liberdade necessária para o exercício da atividade filosófica, liberdade essa que também funciona como a própria garantia para a existência da filosofia, afinal, não nos esqueçamos que a filosofia, pelo seu caráter por assim dizer “subversivo”, via de regra sofre ameaças – quando menos, é vista com “maus” olhos. Um exemplo foi lançado recentemente pela Veja: como se não bastasse o fato da revista circular uma matéria que presta um desserviço ao leitor, ao confundir questões básicas de ensino (quem disse que a filosofia está desligada de matérias como matemática, física ou biologia), ela também deduz que a filosofia acadêmica no país se reduz ao marxismo, como um reflexo da década de 70, quando a filosofia saiu de “cena” devido à ditadura e os filósofos tiveram que atuar com suas trincheiras para combater a ditadura. Confesso que não consigo entender as deduções da revista.

A ameaça ao livre exercício da filosofia fica clara quando o próprio deputado diz que: “O Estado pode e deve agir para estipular as condições de habilitação e as exigências legais para o regular exercício da profissão de filósofo”. Há outro problema bem básico, que inclusive já foi apontado por outros colegas, e consiste justamente na confusão entre “filósofo” e “professor de filosofia”. Algo que a ANPOF (Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia) procurou esclarecer lançando uma nota de repúdio ao projeto. Destaco a parte em que lança-se luz sobre a diferença, que o projeto de lei parece simplesmente desconsiderar:

Cursos de filosofia formam professores de filosofia, que podem ou não ser filósofos. Assim também, cursos de literatura formam professores de literatura, que podem ou não ser literatos. Finalmente, há filósofos e literatos sem titulação acadêmica. É tão absurdo exigir diplomação específica para alguém ser filósofo quanto seria exigir diplomação específica para alguém ser escritor. A filosofia não é e nem deve tornar-se competência exclusiva de um segmento qualquer, seja ele de natureza estamental, profissional ou ideológico.

Não é o caso que a discussão seja inócua. Pelo contrário, da mesma forma que podemos discutir incansavelmente o papel da filosofia na sociedade, podemos discutir a atividade do filósofo – afinal, se a filosofia não exercesse fascínio sobre as pessoas, não teríamos “profissionais” das mais diversas áreas (direito, biologia, física, arquitetura, engenharia, etc.) “migrando” para a filosofia e se estabelecendo como professores de filosofia e filósofos. Porém, desconheço no país uma parcela expressiva que exija o reconhecimento do exercício de sua função nesses termos.

Talvez o projeto sirva para atualizar a discussão. Assim, sua ideia não deve simplesmente ser descartada sem maiores debates, pois como já disse Filipe Campello: “Repudiar o projeto com esses argumentos de distinção entre filósofo e professor de filosofia é dar um tiro no pé, podendo levar exatamente ao que a crítica à ABF quer evitar: a ideia de que qualquer um pode se autodenominar filósofo”. O que não quer dizer que devamos no final das contas aceitá-lo, com todas as conseqüências que pode acarretar. Senão correremos o risco de perder a figura do “encrenqueiro”, evidenciada na passagem destacada do texto de Thomas Bernhard. Essa figura, que talvez passou a existir com Sócrates, continuou com outros imortais, não da ABF, mas da história da filosofia, ou da história da humanidade, se vocês preferirem.

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