Ciência

Tentando entender a questão do aborto

por Carlos Orsi (06/02/2012)

É de se supor que, por trás de tanto furor contra o aborto, haja ideias. Quais seriam elas?

A discussão em torno dos direitos reprodutivos da mulher às vezes atinge níveis de estridência ensurdecedores (por exemplo, neste ataque aos Médicos Sem Fronteiras), com um bocado de histeria e gritaria de parte a parte, embora eu seja forçado a reconhecer que a hidrofobia mais profunda vem da oposição religiosa à interrupção voluntária da gravidez. Que é tão, ou mais, incivilizada e irracional que a oposição feita, por essas mesmas forças, aos direitos civis dos homossexuais. Seria interessante realizar um estudo psicológico/sociológico para entender por que as mesmas pessoas que parecem dispostas a derrubar governos, reformar constituições e até criar um Dops para gestantes por amor a um punhado de células, in vitro ou in utero, depois sentem que é seu dever divino condenar a uma vida de cidadania fraturada o homem a que essas células deram origem, só porque ele ama outro homem.

Enfim.

O fato, no entanto, é que nem toda oposição ao aborto é irracional e estridente. O arcebispo apoplético que baba e perdigoteja aos berros de “abortista!” é um mero estereótipo (embora pareça frequentar as páginas de opinião dos jornalões com certa regularidade), mas por trás de tanto furor há ideias — ou é de se supor que haja. E que ideias, afinal, são essas?

A principal, creio, pode ser resumida na seguinte sentença: o aborto é o homicídio injustificado de um inocente. “Homicídio” é, nesse caso, entendido como a morte, artificialmente provocada, de um ser humano. Para o silogismo da proibição fechar, portanto, é necessário estabelecer que o blastocisto, o embrião e o feto são seres humanos; que estão vivos; que são inocentes; e que o aborto não se justifica (por exemplo, em virtude de uma ameaça à vida da mãe, ou de um apelo a seus direitos pessoais).

É claro que cada elo dessa cadeia é passível de análise (da questão da justificativa com base no direito da mulher, por exemplo, já tratei na segunda remissão do parágrafo acima), mas agora queria abordar a divergência em torno do que geralmente se considera o aspecto mais “cabeludo” da questão: o que define um ser humano vivo?

Como muitas outras perguntas do tipo, a resposta pode parecer óbvia 99% das vezes (digamos, “um membro da espécie humana que esteja respirando”), mas sempre há o 1% de casos extremos que parece não caber na definição “evidente”.

Pessoas em morte cerebral cujo organismo é mantido vivo por aparelhos, por exemplo, respiram, embora não estejam vivas; mergulhadores pescadores de pérolas não respiram durante seus mergulhos, mas não são cadáveres.

E blastocistos sequer têm narizes ou pulmões. De fato, a maioria das definições clássicas ou intuitivas de “ser humano vivo” excluem os primeiros estágios do desenvolvimento intrauterino — o blastocisto e o embrião: eles não são racionais e políticos; não são bípedes sem plumas; não são agentes morais; etc. De fato, a atividade cerebral começa a surgir entre a 5ª e a 6ª semanas de gravidez, mas nesse estágio ainda é menos coerente que a de um camarão. O cérebro só é capaz de existir de modo viável a partir da 23ª semana.

Eu (e muita gente além de mim) dou destaque especial ao desenvolvimento do cérebro porque é desse órgão que dependem, de modo crucial, as capacidades e potencialidades que são mais reconhecidas como “humanas”. Da mesma forma que, após a morte cerebral, podemos afirmar que “não há mais ninguém lá”, também poderíamos argumentar que, antes do cérebro surgir, “ainda não há ninguém aqui”.

Essa formulação cai, no entanto, caso se adote uma postura idealista e se aceite que o que define a identidade essencial da pessoa humana não é o ponto de vista peculiar de cada um de nós, gerado pela interação entre meio ambiente, atividade cerebral e feitio genético, mas uma “alma” implantada diretamente na fecundação. Só que essa postura é pura mitologia, e não deveria ter lugar num debate sobre leis e políticas públicas.

Ela também cai caso se considere que a essência humana é fixada pela genética — se se têm os genes certos, e se as células estão funcionando, então trata-se de um ser humano vivo, automaticamente portador de certos direitos fundamentais. O problema com o argumento genético é que ele é inclusivo demais: tumores malignos, culturas celulares em laboratório e até mesmo as placentas se encaixam em seu escopo!

Neste momento, alguém chama a atenção para o fato de que um embrião se distingue de sua placenta (ou de um câncer) pelo fato de que pode, naturalmente, desenvolver-se num bebê. Constatação que nos traz ao fulcro da questão: o argumento da continuidade e o argumento do potencial.

Em sua forma mais tosca, o argumento da continuidade é o que diz: “Se o aborto fosse permitido no tempo da sua mãe, você não estaria aqui”. Para além da cretinice metafísica — nunca ter nascido não é um problema ou um prejuízo para ninguém, já que vir a existir é uma precondição necessária para se ter problemas ou prejuízos (e alegrias e lucros, por evidente) — há algo de estúpido e repugnante aí, nessa identificação do instinto maternal com o medo de polícia e na subordinação da vontade da mulher à função reprodutiva. É de se considerar se quem lança mão da frase grosseira realmente imagina que pessoas como ele mesmo só existem porque suas mães foram coagidas a parir pelo Estado. Eu realmente gostaria de poder imaginar que o mundo é habitado por pessoas que surgiram das decisões livres de uma vontade espontânea.

Em sua forma sofisticada, o argumento da continuidade afirma que a linha de causalidade que vai do encontro entre óvulo e espermatozoide ao nascimento é contínua, e portanto não se pode impor um ponto arbitrário até onde seria moralmente aceitável interrompê-la.

Essa modalidade admite (pelo menos) duas respostas: a primeira é a de que ligar o início da existência humana ao início da viabilidade cerebral não é nada arbitrário; há uma racionalidade articulada por trás dessa escolha, já que tudo o que mais distingue o ser humano do restante da natureza depende, crucialmente, disso. Essa racionalidade tem encontrado resguardo até mesmo em decisões judiciais, como as que autorizam a interrupção da gestação de anencéfalos. A segunda, que deve parecer evidente para qualquer um que já tenha assistido a De volta para o futuro, é a de que escolher o instante da concepção para marcar o início da cadeia causal que leva ao ser humano pleno é que é, aí sim, arbitrário. Afinal, por que não o momento da ejaculação, ou da ovulação, ou o primeiro encontro do casal de futuros pais? Ou dos pais dos pais? A concepção pode ser vista como apenas mais um ponto numa sequência de causas necessárias que se prolonga indefinidamente rumo ao passado.

O argumento do potencial é parecido, mas tem sutilezas próprias. Uma vez que o óvulo e o espermatozoide tenham se fundido, vai o raciocínio, e mesmo considerando que, sim, a plenitude da pessoa humana depende da presença de um cérebro minimamente funcional, as condições estão dadas para que uma pessoa humana se desenvolva, bastando para isso que deixemos o processo seguir seu curso natural. Daí, interromper o processo significa matar essa pessoa.

É meio difícil saber o que fazer com essa linha de pensamento, já que o que ela diz, em resumo, é que é possível cometer homicídio preventivo — matar alguém antes que a pessoa venha a existir. De volta para o futuro, outra vez.

Uma reformulação mais caridosa poderia ser: É condenável que, uma vez consumadas as condições necessárias e largamente suficientes para que uma nova pessoa venha ao mundo, tais condições sejam deliberadamente destruídas. Não tenho nenhuma objeção a esse princípio, ainda que não consiga encará-lo como algo absoluto, ainda mais como algo capaz de se sobrepor à vontade soberana da mulher sobre seu corpo. Não vejo, enfim, como impô-lo a toda a sociedade por meio de lei e, pior, igualá-lo ao bom e velho Não matarás.

Carlos Orsi

Jornalista e escritor, com mais de dez livros publicados. Mantém o blog carlosorsi.blogspot.com.