Uma intervenção solo da OTAN contra Assad não é o ideal, mas não agir não deve ser uma opção
Como, de cada dez opiniões sobre o Oriente Médio rodando pela web, nove são de não especialistas em relações internacionais, acho que posso muito bem somar a minha. Não pode doer tanto. Aqui na minha mui humilde condição de possuidor de algum interesse e de uns poucos mas valiosos contatos na região. Também na minha condição de editor de um pequeno site baseado num país cujo governo jamais se mete em assuntos de outros países – exceto quando se mete, invariavelmente do lado errado, como quando diz que uma revolta democrática legítima diante de eleições fraudulentas é puro choro de perdedor, ou quando não atrela polpudas ajudas econômicas a ilhas de socialismo a abertura política, ou quando livra a cara de italianos procurados em seu país de origem por crimes contra a literatura.
Não ia fazer isso (o leitor do Amálgama ganharia mais se eu traduzisse a opinião de alguém que observa o Oriente há mais anos do que eu tenho de vida), mas depois de pegar o último bloco do mais recente Painel Globo News, sobre o programa nuclear iraniano, resolvi fazer. Aí aproveito para dar um pitaco sobre a Síria. Sim, eu acho que deve haver intervenção. Mas chegaremos lá.
O Painel trazia o professor Reginaldo Nasser, Arlene Clemecha, diretora do Centro de Estudos Árabes, e o ex-ministro Celso Lafer. Pelo último bloco, e pelas já conhecidas manifestações dos participantes na imprensa, adivinha-se o que todos disseram durante os blocos iniciais. Reginaldo acha que não há provas de que o Irã quer conseguir uma bomba atômica, e acha também que um Irã com bomba atômica seria algo compreensível. Arlene acha a mesma coisa, mas, meiga, coloca alguns ingredientes “culturais”, para quem sabe a coisa parecer menos trágica. Celso faz as vezes de representante da “direita”, muito embora ele não consiga dizer com todas as letras que um Irã com poderio nuclear é inaceitável e que portanto um ataque de Israel e/ou dos EUA às suas instalações é algo defensável.
Não acredito que a Globo News foi incapaz de levar alguém para fazer melhor o contraponto a Reginaldo/Arlene. E logo num programa apresentado pelo agente da CIA William Waack (é serio! não, não é). O professor Roberto Romano teria sido uma ótima escolha, ele que – como transparece de um de seus melhores livros, Os nomes do ódio – é capaz de ver com clareza a perniciosidade e a pestilência inatas à monarquia clerical iraniana, uma “república islâmica” com quase nada de “república” depois da eleição de 2009, roubada pelo presidente e chancelada pelo Líder Supremo.
Arlene Clemecha diz que por trás do discurso ocidental de não proliferação está a vontade de mudar o regime em Teerã. Não acredito que o Ocidente tenha estômago para intervir diretamente na Pérsia. O que ademais seria burrice: o Irã tem uma oposição islâmica “moderada” considerável, e uma nova geração de espírito democrático, mesmo pró-ocidental, ainda mais considerável, e pode-se apostar com alguma segurança que, dado tempo, elas venham a causar mais problemas à monarquia do que causaram em 2009. Por outro lado, é inegável que existe por trás do discurso de não proliferação uma vontade de ver um regime diferente no Irã. E, de fato, um Irã com armamento atômico ou com “latência nuclear” é um mal por dois motivos: 1)porque estaria mais propenso do que Israel e qualquer outro país (com a possível exceção da Coreia do Norte) a usar esse novo poder agressivamente; e 2)porque não haveria “primavera” iraniana forte o suficiente para a ditadura armada não tentar esmagar impiedosamente, sem medo de intervenção externa.
Aqui está a pergunta principal para quem pensa como a Arlene: dos três cenários – monarquia clerical empregando armas nucleares contra Israel e o Ocidente, diretamente ou por meio de grupos terceirizados; monarquia clerical com armas nucleares “apenas” para se precaver de qualquer pressão externa enquanto lida com a oposição como bem entender; monarquia clerical sem armas nucleares e tendo que dar aos reformistas iranianos pelo menos o mínimo de respeito para não invocar mais pressão externa –, você realmente acha que último é o pior? Se você, como eu, não acha, então a possibilidade de um Irã nuclear é simplesmente inaceitável. Eu não gostei das imagens da repressão de 2009. E não gostaria de ver o regime duplicar, triplicar ou decuplicar a matança apenas poque adquiriu “poder de dissuasão”, não mais do que eu teria ficado feliz se Kadafi não tivesse desistido de seu programa nuclear após a queda de Saddam.
Acontece que a Arlene e o professor Reginaldo, embora possam justificadamente se indignar com mortes de palestinos causadas por ação israelense, passam para o nível moral zero quando o assunto é Irã. Aí, são todos “realistas” da escola Kissinger. “O governo iraniano, como qualquer governo do mundo, tem direito a perseguir seus interesses estratégicos”. “Israel adquiriu poder nuclear ilegalmente, por que o Irã não pode?”. Ou, mais infantilmente, “Se os Estados Unidos têm a bomba, o Irã também pode ter.” Mas o quão dignos de defesa podem ser os interesses de uma ditadura? O quão provável é que um regime milenarista passe o mesmo tempo que Israel passou de posse mas sem usar a bomba? Nível zero, como eu disse.
Agora, vejam bem, eu não defendo um ataque às instalações iranianas. Não agora, como quer a direita populista estadunidense e a israelense. Não resta dúvida de que o programa iraniano não tem “fins pacíficos”, mas ainda assim é preciso esperar o último momento possível antes de levar a cabo um ataque. Os pré-candidatos republicanos e os “amigos” de Israel só precisam ler os relatórios dos serviços de inteligência dos dois países para saber que um ataque atualmente seria tolice no que toca a legitimidade do ato. Por outro lado, um ataque no último momento possível seria não apenas estratégica e moralmente justificável como ainda encontraria menos resistência entre o corpo diplomático e a opinião pública mundial – inclusive entre a “rua árabe”, ou pelo menos a rua sunita.
Até por isso, dá tempo de cuidar da Síria antes. Deixa eu checar aqui o número atualizado de mortos, só um instante. Mais ou menos 8 mil, dos quais quase 6 mil são civis. A margem de erro é de uns poucos milhares para mais. Aqui estava uma bela oportunidade para os árabes e esquerdistas brasileiros que foram à avenida Paulista em 2010 protestar contra o ataque israelense à flotilha de Gaza voltarem às ruas. Se há uma coisa que indigna esse pessoal é ver árabes sendo mortos por israelenses. Pelo menos isso a gente pode dizer em defesa deles. Mas convenhamos que o povo sírio tem o mesmo direito a viver livre de opressão que o povo palestino. Em outubro do ano passado, 50 heroicos sírios se reuniram para protestar na Paulista. Onde estava o restante da comunidade árabe? Onde estavam os militantes brasileiros pelos direitos dos povos árabes, que não apareceram para demonstrar solidariedade? Provavelmente estavam, ambos os grupos, ainda se recuperando da ressaca da manifestação de março, bem maior, de apoio a Assad, com participação da Federação das Entidades Árabes do Brasil – manchete do Vermelho.org à época: “Sírios fazem manifestação em SP contra sabotagens do imperialismo”. Vergonha completa.
No protesto de 2010, fez sucesso um banner igualando Israel a uma nação nazista — ou seja, estrela de Davi é igual a suástica. Pois agora em 2012, usando do mesmo artifício, os manifestantes teriam o trabalho de convencimento da população bastante facilitado, já que a segunda maior agremiação política da síria depois do Baath é o Partido Nacional Socialista Sírio, tolerado por Hafez al-Assad, legalizado por Bashar, atualmente dando suporte ao terrorismo de estado, e que tem a suástica como símbolo.
Talvez a Paulista seja ocupada depois dos 15 mil mortos, ou 20 mil, quem sabe, mas está mesmo é parecendo que os progressistas 2.0 não acham a causa da oposição justa o suficiente. Afinal, Assad não é um “amigo” dos palestinos? Claro. Da mesma forma que era o regime de Saddam, com seu braço terrorista chegando aos mais diversos pontos do planeta para assassinar negociadores palestinos que aceitavam ter seu estado ao lado de Israel. E da mesma forma que o regime iraniano, com o Líder se posicionando contra a solução de dois estados e o complexo militar e de segurança, semi-independente, sabotando as negociações de paz desde pelo menos o início dos anos 1990. Houve um trovão na hora, mas se não me enganei Reginaldo Nasser disse que o Irã tem pouco ou nenhum histórico de envolvimento com grupos fundamentalistas estrangeiros. Isso seria juntar falsificação histórica ao grau moral zero. Professor por professor, queiram ler Saïd Arjomand em seu mais recente livro, After Khomeini, saído pela prensa de Oxford (o paperback sai no final de março).
Está claro que a oposição à ditadura Assad não abandonará a luta para derrubá-lo, e está claro que Assad continuará matando adoidado, o que, valendo-se dos exemplos de Tunísia, Egito e Líbia, podemos dizer que apenas aumentará o ímpeto da oposição.
Aqui, uma intervenção praticamente solo da OTAN, ao estilo líbio, não é o ideal. Todos os especialistas e palpiteiros concordam. Mais do que a Líbia, a Síria é um país cheio de divisões, e sua geografia (tanto no que diz respeito à geografia física do interior do país quanto à geopolítica da vizinhança) é infinitamente mais complexa que a da Líbia. Mas não agir não deve ser uma opção. Entre algumas ideias do que pode ser feito, aqui está a de Kanan Makiya:
First, the United States should convene an emergency summit of Turkey and the Arab Gulf countries (under the auspices of the Arab League or not) along with itself and the EU. The purpose of the summit should be to bless the establishment of a safe-haven area inside Syrian territory policed by Turkish troops, funded by Arab countries, and blessed by as many countries as are willing to come on board. Turkish troops should then enter that predetermined safe haven—having announced their intention to the Syrians in advance—and proceed to welcome into it Syrian refugees and members and organizations of the Syrian opposition. Of course, Turkey and its allies would have to prevent any Syrian attempt to challenge their entry, shooting from the air and ground wherever necessary. Finally, the Arab countries funding this effort should then attempt, with Turkish and U.S. help, to forge a workable transitional Syrian government capable of replacing the Assad regime.
Como sabe o leitor, algo parecido ao primeiro passo sugerido por Makiya já ocorreu, no encontro dos “amigos da Síria” de dias atrás. Os governos sírio, chinês e russo não gostaram da conferência, mas esse é um ponto positivo. O ponto negativo é que também a oposição a Assad não gostou muito do encontro, achando a coisa toda muito tímida, no que têm certa razão. Mas já foi melhor do que nada. Agora urge tomar algum rumo parecido com o que propõe Makiya.
Dia desses o colega Gato Précambriano, companheiro de luta contra o obscurantismo religioso, me sugeriu a leitura de um artigo de Peter Oborne, que aponta entre outras coisa para o risco de o Ocidente se envolver com uma oposição a Assad que pode incluir membros da al-Qaeda. (Oborne é o principal comentarista de direita do Daily Telegraph, e o artigo em questão foi reproduzido no site do “radical” estadunidense Norman Finkelstein. O que não soma nem subtrai de seus argumentos, mas não deixa de ser interessante.) Eu disse ao colega, quase textualmente, que não duvido que porras-loucas da al-Qaeda estejam em ação na Síria. Não necessariamente no ataque com carro bomba alegado pelo governo, mas devem estar sim. E por que não estariam? Se eles pipocam gente até onde sunitas não estão sofrendo opressão, imagina onde sunitas, sendo maioria, estão.
O ponto é que a coisa pode ser vista pelo outro lado: alguém realmente acha que a presença e o apelo da al-Qaeda entre os sunitas sírios irão diminuir enquanto houver um regime de apartheid assassino e sem freios? Eu duvido muito. Imaginem um sunita sírio atualmente, que numa democracia estaria inclinado a votar num candidato religioso moderado ou mesmo secular, mas que, ao invés de transição democrática, vê sua vizinhança ser dizimada por baterias antiaéreas. Aí esse cidadão vê militantes da al-Qaeda chegando, lutando contra o regime, chamando ele pra luta, e diz “Não, obrigado, eu não sou muito fã da ideologia de vocês, prefiro fazer um abaixo-assinado para levar ao Conselho de Segurança”. Inimaginável, não? Por isso, além de tudo mais, Assad tem que cair o mais rápido possível. Cada dia de chacina pode significar um ponto a mais no ibope da al-Qaeda – isto é, se a teoria de parte da direita isolacionista ocidental, da esquerda anti-imperialista e do governo sírio (de que a al-Qaeda é uma presença considerável entre os opositores da ditadura) estiver correta.
É verdade que, mesmo na Síria pós-apartheid, fundamentalistas terão apelo, por meio do sistema eleitoral, inclusive. Mas isso não é motivo suficiente para não derrubar o ditador. Como não foi na Líbia ou no Egito. Ou o Finkelstein republicou algum artigo defendendo a permanência do Mubarak no poder porque havia risco de a Irmandade e os salafistas vencerem eleições e gradualmente imporem uma teocracia? E a Palestina? Se na próxima semana surgisse um estado palestino nas fronteiras de 67, alguém aposta todas as fichas em que os partidos islâmicos perderiam eleições para os seculares? Nem por isso a gente prefere um interventor israelense ou um árabe pau-mandado de Israel comandando os territórios ocupados, com mão livre para bombardear áreas residenciais sob o pretexto de combater terroristas.
Em suma, a al-Qaeda e os crentes medievais devem ser combatidos também, mas deixar Assad no poder não vai ajudar em nada essa batalha, e pode atrapalhá-la bastante. Devemos estar vigilantes com as tendências fundamentalistas que eventualmente chegarem ao poder no Oriente pós-primavera, e com a mão em suas cabeças que eventualmente passarem governos, corporações e esquerda ocidentais. Mas primeiro os ditadores precisam cair.
Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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