Se o socialismo em quase momento algum serviu para enriquecer os pobres, desde os primórdios do séc. XIV já substituía tal ideia pela “vingança” de apenas atacar “os ricos”.
Quando damos de cara com um livro histórico descrevendo os fatos do séc. XX, os fatos do mundo bipolarizado, como os que aparecem nesse Ascensão e Queda do Comunismo, a primeira pergunta que se faz é: que lado o autor defende?
Em se tratando do comunismo, uma ideia que povoa um romantismo idealizado, virginal à realidade, sobretudo na mente de jovens, a resposta obrigatória é lembrar que um livro sobre o nazismo que omitisse as mortes do totalitarismo fascista seria desacreditado. Archie Brown, pesquisador cuja extensão de fontes exige uma vida de muitas décadas, não se furta a falar das mortes incrivelmente mais numerosas causadas pelo comunismo, e nem de outros “detalhes” pouco elogiáveis desse sistema: da falta de liberdade de imprensa até as mortes aos milhões por fome que ele legou ao séc. XX (curiosamente, ao se digitar “capitalismo” no Google Images, veremos muitas fotos de genocídios e mortos de fome, praticamente nenhum deles em um sistema capitalista).
As fontes e notas de Brown, aliás, cobrem sozinhas quase 80 páginas. É recomendável usar dois marcadores de página para não perder algumas notas que acrescentam dados ao texto. Eruditíssimo, a narrativa de Brown começa com os primórdios das ideias comunistas pré-Marx, e tenta seguir alguma complicada cronologia dali para frente. Como tal seria impossível com acontecimentos tão distintos ocorrendo simultaneamente em países tão diversos da União Soviética e da Cortina da Ferro (basta pensar em 68, com a Primavera de Praga, as agitações na Polônia e os estudantes em Paris), por vezes há algumas idas e vindas, e até alguns spoilers do autor para poder tratar de coisas importantes (como explicar a política externa de Brejnev bem antes de apresentá-lo ao leitor).
– O ideal de paraíso e o inferno real –
As ideias primordiais do comunismo pré-Marx são apresentadas ao novato no tema, embora não no modelo pente fino de Edmund Wilson em seu ultra-clássico Rumo à Estação Finlândia. Apenas são comentados alguns experimentos comunistas a partir do séc. XIV. Curiosamente, apesar da petulância de Marx em chamar seu sistema de “científico”, fica claro que muitos comunistas anteriores a ele, pechados de “utópicos”, de fato testaram suas ideias, enquanto Marx cada vez mais as tratou como abstrações: um jogo de “tentativa e erro” cujos erros custariam quase 150 milhões de vítimas em apenas um século. Seus erros, sua fé cega e seus palpites inconseqüentes já transparecem nas primeiras páginas.
Para quem já brincou de comunismo no modo very hard, no entanto, algumas críticas filosóficas ficaram de fora (como as feitas por Wilson e Kolakowski em seu obrigatório, e não ainda traduzido, Main Currents of Marxism). Não vemos por exemplo a linha direta que vai de Maquiavel a Vico, que influencia profundamente Marx e, posteriormente, Lênin e Gramsci: o poder ser completamente dissociado da moral, e a aplicação de princípios que mantenham o Príncipe (ou o Partido) no poder a qualquer custo (Lênin mostraria ser o primeiro discípulo prático de Marx poucos dias após seus cupinchas tomarem o poder, ao mandar fuzilar até o filho de 5 anos do tzar Románov).
Antes mesmo de qualquer comunista tomar o poder, ou antes dessas ideias serem apresentadas (geralmente às armas) a quem é de fora, o próprio Bakunin já zombava da alegação dos marxistas de que “somente uma ditadura, a deles próprios, é claro, pode trazer liberdade às pessoas”. Em verdade, se o socialismo em quase momento algum serviu para enriquecer os pobres, desde os primórdios do séc. XIV já substituía tal ideia pela “vingança” de apenas atacar “os ricos”.
O estilo socialista centralizador e oligárquico, quando não ditatorial e abertamente homicida, parece ser um “acidente” que ocorreu na história da URSS nas mãos de Stalin (ou ao menos é o que a propaganda socialista quer até hoje fazer crer). Vemos já em Lênin o quanto o estilo ditatorial é uma obrigatoriedade do socialismo, e não um desvio da norma (que Marx nunca deixou clara em seus escritos, mas que ele mesmo praticou).
Apesar de Hegel ser apenas citado de passagem, fica claro o erro do pensamento marxista durante todo o livro: o materialismo histórico-dialético, herdeiro do hegelianismo, preconiza uma inevitabilidade do socialismo após o capitalismo “não se sustentar” perante a “massa operária”. Um erro grosseiro, visto que nunca foram os operários que tomaram o poder, e nunca o capitalismo ruiu sozinho, sendo sempre forçado a tal por intelectuais de classe média (qualquer semelhança com a atualidade não é mera coincidência). Para tal, uma disciplina rígida, para-militarizada e mortal com os próprios revolucionários, além do centralismo antidemocrático de decisões, impera nos movimentos comunistas antes mesmo de se formarem como partidos.
Assim, antes de uma república de “operários” (que geralmente chegavam tarde nos Partidos), via-se um sistema romântico (como já criticado por próprios pensadores marxistas, como Horkheimer e Habermas) de amigos de armas que decidiam tudo mais por carisma e por capacidade de influenciar e de liderar do que perguntando a qualquer pobre qual era sua opinião, desejo ou necessidade (Lênin, por exemplo, declara ser “proibido” não gostar de um livro de um seu cupincha, Chernyshevsky, e pode-se imaginar a punição). Rapidamente, os crentes em um futuro poder político para as “classes operárias” eram devorados pelos burocratas que ajudaram a colocar no poder, e o “formalismo” democrático dava lugar ao socialismo (que, afinal, é, em essência, totalitário). Não parece à toa que os comunistas se tratem até hoje como “companheiros”.
Até mesmo Trotsky foi capaz de observar tal perigo, escrevendo ainda em 1904: “Os métodos de Lênin levam a isso: primeiro, a organização do partido substitui a si própria pelo partido como um todo; depois, o Comitê Central substitui a si próprio pela organização; e finalmente, um único ditador substitui a si próprio pelo Comitê Central…” (Nashi politicheskie zaddachi, citado por Isaac Deutscher, e na p. 61 deste livro).
Foi o próprio Marx que preconizou que as ideologias são indissociáveis de suas conseqüências práticas. Infelizmente, nenhum marxista no mundo parece ter aprendido bem a lição: tratam os genocídios e a oligarquia violentíssima do socialismo como “acidentes” por alguns psicopatas terem subido ao poder, mas tratam até hoje problemas com bancos ou empreiteiras como crises do “sistema”. A levar a sério o materialismo histórico-dialético, deveríamos perguntar por que um sistema tão perfeito (e “inevitável”) levou ao poder Stalin, um dos maiores genocidas da humanidade. Caso seja por acidente, perguntemos então por Mao, o número um como maior genocida. Caso aí seja uma “coincidência” de outro tarado psicótico subir ao poder no mais perfeito sistema já inventado, caberia ainda perguntar: mas e na Polônia? E na Iugoslávia? E na Hungria? E na Tchecoslováquia? E no Vietnã? E em Cuba? E na Coréia do Norte? No Afeganistão? E em Angola? E no Congo? E no Camboja? Tudo “coincidência acidental”, e o socialismo ainda dará certo?
Um pouco mais de teoria aparece estranhamente perdida após bons capítulos de relato histórico (até a Segunda Guerra). Vemos, por exemplo, por que Brown prefere o termo Comunista (com C maiúsculo) a socialista: era assim que se chamavam e, à possível exceção de Kruchev, é difícil crer que algum líder Comunista realmente acreditava na futura “sociedade sem Estado” que seria o comunismo para Marx.
Suas características essenciais do Comunismo são claras: o monopólio do poder pelo Partido Comunista (que, na melhor manobra marqueteira do planeta, permanece sendo chamado de “partido”, quando na verdade as eleições são abolidas e outros partidos proibidos, sendo a parcela da sociedade que discorda do comunismo verdadeiros mortos em questão de tempo), posteriormente trocado pelo eufemístico papel de liderança do Partido – através destes nomes os comunistas puderam matar muito mais e até hoje não terem seus crimes retidos na memória histórica, muito menos na de professores de História; o centralismo democrático, ou seja, a discussão fechada entre os “camaradas”, mas a aceitação irrestrita do que estes decidiram por toda a sociedade – se parece o modelo “assembleístico” de decisões por assembléias entre mancomunados da USP, basta lembrar que “soviet” em russo significa “conselho”. O caminho para o morticínio ditatorial com nomes bonitos como “democracia” e “partido” está aberto.
As características econômicas são a posse não-capitalista dos meios de produção (nunca confundir: direito à propriedade individual existiu em todos os países do mundo) e uma economia de comando, em que os burocratas-chefes se preocupavam com metas, e não com consumidores. Mais de uma vez fica claro um problema não abordado no livro, o que o maior economista do mundo, Ludwig Von Mises, chamou de “Problema do Cálculo Econômico”, ou seja: a falta de um sistema de preços impede que se conheça a vontade da população, e apenas se produza o que políticos manda-chuvas exigem à força. Na prática, o Comunismo ignora a realidade para se aferrar cegamente à sua ideologia, usando a própria força do seu fanatismo ao dogma como prova de que o dogma está correto:
“Compromissos ideológicos limitam as opções. Diante de um sanduíche de queijo e outro de presunto, a maioria das pessoas pode escolher qualquer um deles. Um rabino ortodoxo não pode. Os bolcheviques não podiam optar por ressuscitar as reformas de Stolypin ou tolerar por muito tempo uma economia mista.” (Alec Nove, The Soviet System in Retrospect: An Obituary Notice, citado na p. 138.)
As soluções da genialíssima Escola Austríaca de Economia, nas vozes de Menger, Böhm-Bawerk, Mises, Hayek, Rothbard e Hazlitt, fora análises geniais como as de Ayn Rand (que descreve com precisão o horror de qualquer política de “distribuição de renda” e “bem-estar social” em seu romance A Revolta de Atlas), Thomas Sowell ou Bertrand de Jouvenel (em O Poder ou Ética da Redistribuição) não são abordadas no livro, mas são uma leitura complementar recomendadíssima.
Há também a esfera ideológica: o objetivo final declarado de construir o comunismo, que só servia para justificar todos os desastres, mortes, os trabalhos forçados e o permanente estado de guerra, nunca de paz. Além disso, ser Comunista implica pertencer ao Movimento Comunista Internacional, embora esse movimento tenha sido liderado pela URSS e a Iugoslávia de Tito, posteriormente a China maoísta (que quase entrou em guerra com a URSS) e quase a Tchecoslováquia tenham saído do movimento e permaneceram Comunistas para o autor. Uma crítica possível a este último fator é que muitos regimes comunistas floresceram na África (República Popular de Angola, República Democrática Popular da Etiópia, República Popular de Moçambique) mas, sem fazerem parte de uma Internacional Comunista (Comintern, depois substituída pelo Cominform) com a URSS em frangalhos com a Guerra Fria, são colocados como apenas “de orientação socialista”, como a URSS os tratava. O perigo de se cair na litania de que o capitalismo gera fome na África não é dirimido.
– A história da catástrofe –
A narrativa da ascensão de Lênin ao poder é marcada antes de tudo pela atitude centralizadora e vaidosa de Lênin – mostrando sua personalidade autoritária e seu vezo em se acreditar sempre correto. A visão romanceada de Lênin e Trotsky apresentada por Bertram Wolfe em Three Who Made a Revolution e Edmund Wilson em Rumo à Estação Finlândia que conquistou gerações de jovens é destruída (Wilson ainda era trotskysta quando terminou o livro, apesar de sua acuidade técnica, e acrescentou posteriormente um posfácio em que admite esconder traços desagradáveis de Lênin e Trotsky quando da primeira edição do livro).
A disputa entre Trotsky e Stalin após o derrame prematuro de Lênin é apresentada de maneira alienígena a quem só conhece a velha conversa dos professores trotskystas de História: Stalin não queria um “socialismo em um só país” e Trotsky um internacionalizado, apenas disputaram o comando do Partido após a morte de Lênin com tal retórica (já que não eram exatamente “eleições” que por lá ocorriam). No entanto, é algo extremamente momentâneo: Trotsky, tão logo a Revolução Bolchevique eclodira, foi a principal voz a pedir para a Rússia sair da Primeira Guerra Mundial e ainda dar territórios à Polônia, sem se preocupar com a “internacionalização do movimento” (a URSS e, sobretudo, a população polonesa, pagaria caro por tal gesto algumas décadas depois), enquanto Stalin orquestrou a Terceira Internacional Comunista (Comintern), organização que dirigia os partidos comunistas no poder e fora dele pelo mundo, além de, obviamente, ter realizado uma política imperialista de dominar com tanques 13 países do Leste Europeu (os EUA, chamados sempre de “imperialistas”, nunca fizeram uma colônia outre-mer). Algo não dito no livro: Trotsky chamara Stálin de “a mais notável mediocridade do partido”. Stálin, que sempre ganhou dele, obtemperou que Trotsky, como revolucionário, era um ótimo jornalista.
Como o livro pretende documentar o ocorrido nos países Comunistas, Trotsky é um personagem um tanto apagado no livro, para quem tanto ouviu falar dele. Talvez também por já ter sido fartamente documentado: aparentemente toda editora universitária lança uns 5 livros novos por ano sobre o revolucionário que “poderia ter sido” e não foi (novamente, a vantagem do Comunismo escuda-se indo para o etéreo plano das ideias platônicas), além de ter vasta bibliografia, como a de Isaac Deutscher, recentemente relançada no Brasil.
Vale complementar com algumas histórias desconhecidas que não estão no livro. Isaac Babel, no conto “Linha e Cor” (1924, incluído no volume A Cavalaria Vermelha, lançado em 2000 pela Ediouro), alude a um discurso de Kerensky, o primeiro-ministro da revolução comunista antes do golpe de 1917, ante uma multidão enfurecida pelo sofrimento imposto. Saindo sob vaias, surge Trotsky para fazer seu discurso, e começa: “Camaradas!”. Aí termina o conto. Nada mais é preciso ser dito.
Babel morreu executado pela polícia soviética em 1949. Os artigos publicados no Pravda (o jornal com nome de “verdade”) que justificavam os primeiros expurgos de escritores e intelectuais, levavam a assinatura de Trotsky. Em março de 1921, o revolucionário dirigira o massacre dos marujos do Kronstadt (estes que tinham o apoiado alguns anos antes). Na guerra civil, sua disposição para matar indiscriminadamente o fez mandar executar mais gente do que o próprio Stálin, como lembra Robert Conquest, grande historiador do terror soviético. Os arquivos que a própria polícia política (NKVD) escreveram sobre Trotsky chegaram a ocupar três andares do prédio, no número 2 da rua Dzerzhinsky, em Moscou.
Tais informações não se encontram nas mais de 1800 páginas da trilogia O Profeta Armado/Desarmado/Banido, de Isaac Deutscher, notório trotskysta. Seriam um tempero especial neste livro, ainda mais por verdadeiros historiadores, como Adam Ulam, questionarem com documentos na mão o valor destes livros como pesquisa – livros estes que fazem a festa entre universitários de esquerda.
Trotsky era profundo crente na “História”, confundindo a História consigo próprio. Como mostrou Edmund Husserl, se John Jay Chapman disse que Browning usava Deus em sua obra como substantivo, verbo, adjetivo, advérbio, interjeição e preposição, o mesmo é verdade quanto ao poder e dever da “História” de Trotsky. Era um rapaz que daria a vida pela União Soviética – desde que tivesse uma boa platéia. Para sua infelicidade, acabou morto no México, por força dos espiões do Comintern stalinista.
A vida e atuação de Stalin aparecem em cores curiosas: com o perigo nazista, Stalin surge até como um cara simpático vez ou outra. Não à toa que até mesmo Churchill e Truman gostaram de sua companhia. Entretanto, as mortes que comandava são vistas de sua origem: a maioria, por verdadeiros chiliques. Um episódio que passa muito rapidamente no livro é a fome ucraniana de Holodomor, que matou cerca de 3 milhões de pessoas, causada deliberadamente pela cúpula do partido. Não sem ironia, Lênin, alguns anos antes, aceitara permitir algum capitalismo disfarçado nas fazendas longe de Moscou, ao perceber que mataria de fome as cidades russas todas se mantivesse ideais socialistas nos campos. Os números das mortes, tanto em Stalin quanto em Mao, são discutidos em casos específicos, mas o livro evita se embarafustar em demasia na discussão sobre os milhões totais.
As conquistas socialistas, como a educação, a alta alfabetização, a rápida industrialização e a corrida para se tornar uma potência militar também não ficam de fora, embora, é claro, devidamente contextualizadas.
Na China, os comunistas lutavam contra os nacionalistas do Kuomintang de Chiang Kai-chek. Alguns países do Leste Europeu realizavam revoluções “nativas”, sem intervenção da URSS. As forças anti-fascistas da Segunda Guerra se uniam: a única característica em comum foi o fato de todos os que apoiaram um regime comunista terem sido traídos e, muitas vezes, mortos por aqueles que ajudaram a chegar ao poder.
Stalin fez isso até com seus melhores marechais, os prendendo sob qualquer desconfiança. Chegou a mandar soldados marcharem sobre campos minados durante a Segunda Guerra, fazendo com que as mortes de russos chegassem a 9 milhões antes da invasão nazista. Mas nenhum país sofreu tanto com a Segunda Guerra quanto a Rússia. A morte de poloneses na floresta de Katyń não passa batida: após a abertura dos arquivos da URSS, hoje se sabe que foi um genocídio gratuito promovido por comunistas, e não pelos nazistas, como por décadas se acreditou (há um excelente filme recente sobre o caso, com trilha sonora do mestre Krzysztof Penderecki).
Com a vitória sobre Hitler (pergunta rápida: qual foi o primeiro país que Hitler invadiu? tm certeza?), a União Soviética, partilhando espólios, pode ter o tamanho que teve. No entanto, o laxismo da Inglaterra em atacar a Alemanha permitiu que muitas mortes de judeus ocorressem desnecessariamente, fez a guerra demorar mais e, sobretudo, impediu que as populações locais se revoltassem esperando ajuda externa, como ocorreu na Iugoslávia e Tchecoslováquia em outros tempos.
Os grandes expurgos de Stalin ficavam cada vez mais violentos – e igualmente anti-semitas. Tito, o mais liberal dos Comunistas, acabou fazendo a Iugoslávia ser o primeiro país comunista a rachar com a URSS. Stalin, para dar um “recado” ao Comunista Béla Kun da Hungria, que ousadamente chegara a cogitar aceitar o Plano Marshall, pediu para este dar aviso no rádio de que não estava preso… e o prendeu logo a seguir. Essas e outras maluquices são marca do estilo stalinista, que conquistou os comunistas ocidentais até Kruchev, que o sucedeu, expor seus crimes (para poder controlar seus antigos parceiros) no XXII Congresso do Partido.
Apenas Kruchev foi um líder soviético que não morreu no cargo, sendo apeado por uma conspiração bem parecida com a que ele próprio armou para tirar o poder dos sucessores de Stalin, como Malenkov e Molokov. Ser o segundo nome num regime não-democrático como o comunista era sinal de perigo para a pele, na URSS, na China ou onde quer que fosse. Cenas de deixar filmes absurdos de Hollywood comendo poeira no non sense são vistas com freqüência, como a prisão de Beria, chefe da Defesa soviética, que não poderia ser preso “normalmente” por seus crimes por poder controlar o Exército contra o próprio Partido. Curiosamente, as ações do KGB aparecem muito pouco, mesmo no curto período em que o seu ex-chefe, Yuri Andropov, foi o supremo chefe da URSS.
Kruchev, que pelo estilo e histórico lembra muito Lula, foi o arquiteto da crise dos mísseis em Cuba, que por uns 5 dias arriscou a varrer a vida do planeta. Perto de Stalin e Mao, tanto ele quanto Tito, Zhekov e outros facínoras parecem verdadeiros hinos de humanismo.
A Revolução Cultural chinesa também ganha destaque, tal como a Revolução Cubana. O capítulo sobre Cuba (o autor é grande estudioso do Leste Europeu para frente) traz algumas curiosidades, como o fato de que os EUA poderiam salvar Cuba do comunismo com 10 dólares (e comprova como Fidel Castro é imortal), além de abordar tabus para a esquerda, como o racismo desenfreado que a Revolução Cubana promove até hoje, mas ainda recai em algumas visões simplistas de fora, sobretudo numa espécie de aura de boas intenções de Che Guevara (que, na verdade, sequer era médico). Para mais detalhes sobre Cuba, é muito saudável ler o livro de Leandro Narloch e Duda Teixeira, o Guia Politicamente Incorreto da América Latina (Leya Editora), além de O Verdadeiro Che Guevara: E os idiotas úteis que o idolatram (É Realizações), de Humberto Fontova.
Regimes absurdamente violentos, como o do Camboja, que chegou a matar 1/3 da população do país (inteira, não apenas homens adultos), passam muito rápido. A Guerra do Vietnã também, embora os motivos para a guerra contribuam para um debate mais esclarecido – o erro de Einsenhower e sua crença de que perderia a Ásia se perdesse o Vietnã, que acabou deixando os EUA sem força para lutar na Primavera de Praga, são mais bem explicados do que na visão igualmente simplória de que tudo foi um gigantesco fiasco americano, embora tenha claramente perdido a guerra. A URSS faria o mesmo erro no Afeganistão, pouco depois.
O capítulo mais impressionante para o leitor brasileiro talvez seja referente à Primavera de Praga. Infelizmente nunca estudada nas aulas de História (alguma questão sobre ela já caiu em algum vestibular?), a forma como intelectuais e promotores de mudanças democráticas escaparam da morte por um fio (a URSS não poderia matar tantos nomes famosos de uma vez) é assustadora. Mas mais ainda o silêncio que acadêmicos brasileiros fazem sobre ela. Se tivesse dado certo, teríamos uma perestroika 20 anos antes daquela em Moscou. A coragem de seus orquestradores mesmo sendo avisados de que seus “protetores”, os homens de Moscou, lançavam tanques e meio milhão de soldados contra professores e escritores, deveria ser lembrada por cada candidato a uma faculdade de Humanas neste país. A voz de Brejnev, usando a típica novilíngua comunista, afirmava que “a classe operária” ficaria contra os líderes tchecos. Para sorte de Brejnev, ele nunca se perguntou o que a classe operária soviética achava de qualquer dirigente do Partido russo.
A mão mais pesada do sucessor de Kruchev, Brejnev, deu novos ares tanto para a URSS quanto para o Leste, a Polônia (que ganharia destaque com Lech Wałęsa fazendo greve contra dirigentes comunistas), a Alemanha Oriental e a futura derrocada sob Gorbachev. A Guerra Fria apenas impera hoje em lugares como a Coréia ainda dividida ou Cuba.
Mas o livro termina com uma importante questão: por que o Comunismo durou tanto tempo? O lado óbvio é a lei militar e a paranóia instituída na população (vide filmes como A Vida dos Outros ou Sem Fim, de Krzysztof Kieślowski). Porém, o Comunismo, mesmo fracassando miseravelmente em 99% do que pretendia, ainda cativa jovens que discutem suas vantagens no Facebook, sem atentar para a contradição disso.
É o caso claro de entender doutrinas como o marxismo como Mises o explicou com a teoria do polilogismo , Noïca o explicou com As Seis Doenças do Espírito Contemporâneo ou o Délire d’Interprétation de Paul Sérieux. A ânsia por controle, o medo de uma “desigualdade” (e a ideia da igualdade como um valor em si, mesmo que seja igualdade de pobreza) e todo um discurso em nome de uma suposta “classe” estanque em oposição a outra tida como inimiga (a única diferença para os nazistas é que estes criticavam a burguesia pela “raça” judia), em pleno séc. XXI, é apenas um grande estratagema para encobrir o que uma ação comunista sempre foi: uma doutrina de ódio e controle, e como todas as doutrinas de culto à morte da humanidade que funcionaram, é muito bem encoberta por um discurso com floreios humanistas que conquista jovens – os únicos adultos e velhos comunistas são aqueles que não mudaram de opinião desde os 17 anos.
::: Ascensão e queda do comunismo ::: Archie Brown (trad. Bruno Casotti) :::
::: Record, 2011, 854 páginas :::
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