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A missão de Thomas Mann

por Rafael Bán Jacobsen (14/02/2012)

O público brasileiro começa a ser apresentado a outra – igualmente grandiosa – faceta do escritor alemão

"O escritor e sua missão", de Thomas Mann

Aquele que se aventurou através dos colossais Doutor Fausto e A Montanha Mágica, ou mesmo através de criações aparentemente menos pretensiosas como Morte em Veneza, já sabe muito bem do que é capaz o Thomas Mann ficcionista. Agora, com a publicação de O escritor e sua missão, começa a ser disponibilizada aos leitores brasileiros uma parte da vasta produção crítica e ensaística do vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1929. Essa compilação de textos não-ficcionais de Mann é, na verdade, o primeiro volume da série “Thomas Mann – Escritos & Ensaios”, que a Zahar está organizando com o objetivo declarado de preencher uma lacuna de leitura existente mesmo entre os fãs de Mann aqui na terra natal de Júlia da Silva Bruhns, mãe do escritor.

Em O escritor e sua missão, temos uma grande variedade de textos, englobando discursos, artigos de jornal, necrológios, prefácios, etc., versando sobre as obras de autores bastante conhecidos e apreciados pelo leitor brasileiro contemporâneo – como Goethe e Tolstói –, outros mais falados do que lidos – como Zola e Bernard Shaw – e ainda alguns certamente obscuros – Gerhart Hauptmann e Hugo Von Hofmannsthal, por exemplo. Essa diversidade de formatos textuais e de escritores resenhados tornam o percurso de leitura um tanto irregular, com significativa oscilação do nível de compreensão e do interesse (por sorte, os ensaios mais extensos tratam, justamente, de três autores bastante familiares e cujos referenciais estão muito bem alicerçados no cabedal de conhecimento de qualquer pessoa que tenha verídico interesse em literatura: Goethe, Dostoiévski e Tchekhov). Além disso, a opção editorial por minimizar as notas de rodapé, embora acertada no intuito de evitar a poluição do texto e de não tornar a leitura tergiversante, faz o leitor médio sentir-se, de fato, bem abaixo da média frente à erudição de Mann, que, com habilidade e naturalidade espantosas em uma era pré-Google, invoca autores clássicos e contemporâneos seus, passeia por fatos históricos dos mais variados, cita de memória e teoriza de improviso, fazendo jus à definição de “ensaio” cunhada pelo filósofo espanhol José Ortega y Gasset como sendo “a ciência sem prova explícita”. É bonito de se ver um intelectual do porte de Mann em pleno domínio de seu ofício, construindo raciocínios insuspeitos e pontes tão sutis quanto reveladoras entre as obras de arte que aprecia: mesmo ao produzir não-ficção, Thomas Mann escreve de modo apaixonado e tendo por público alvo os apaixonados por literatura.

O artigo que abre o volume intitula-se “Sobre Heinrich Heine”. Trata-se de um pequeno texto em que Mann elogia a obra desse poeta alemão de origem judaica que foi, provavelmente, o primeiro sujeito a receber a alcunha de “último dos românticos” e que foi celebrizado pela musicalização que compositores como Schumann, Brahms e Schubert fizeram de seus versos. O artigo visava defender a construção de um monumento em homenagem a Heine, projeto que, na época, estava atravancado pelo furor antissemita que grassava na Alemanha. O segundo texto é “Ibsen e Wagner”. Nele, Mann estabelece um paralelo entre as obras do compositor Richard Wagner, famoso por “O Anel dos Nibelungos”, seu ciclo operístico megalomaníaco (no melhor dos sentidos), e a dramaturgia de Henrik Ibsen, partindo de uma observação casual de Hermann Levy, um famoso regente de Bayreuth, que, ao assistir pela primeira vez a uma peça de Ibsen, teria dito: “Ou bem isto é ridículo, ou é tão grandioso quanto Wagner.” Mann advoga que Ibsen e Wagner, na comédia de costumes e na ópera, respectivamente, foram capazes de transcender os gêneros que cultivaram, criando, a partir de sua matéria bruta, algo novo e perfeito.

A seguir, o ensaio “Tolstói – no centenário do seu nascimento” apresenta um retrato semiliterário do romancista russo. Mann o enaltece como um homem de fibra e personalidade, representante dos melhores valores e do espírito épico da segunda metade do século XIX, uma espécie de profeta que, mesmo quando tencionava deixar a arte de lado para transmitir lições e opiniões, escrevia com criatividade e imensa lucidez, tanto que, nas palavras de Mann, foi capaz de conceber “o romance social mais poderoso da literatura mundial”: Anna Karenina.

O necrológio “In memoriam Hugo von Hofmannsthal” focaliza muito mais a relação de amizade de Mann com o poeta e dramaturgo austríaco do que a obra deste, a qual, pelo menos no Brasil, é mais conhecida através dos libretos que ele escreveu para várias óperas de Richard Strauss. Não deixa de ser interessante apreciar, através dos relatos de Mann, um pouco dos bastidores da cena literária alemã do começo do século XX, da camaradagem e das trocas entre os autores de então, e ainda deparar com percepções preciosas de Mann, como a seguinte descrição da pessoa de Hofmannsthal:

Ele tinha uma maneira de compreender antes que o próprio interlocutor compreendesse, de aperfeiçoar e dar sequência a coisas que capturava no ar, fazendo com que a conversação transcorresse com leveza onírica e jocosamente inteligente.

O quinto texto, “Discurso sobre Lessing”, é um ensaio caudaloso no qual Mann disserta sobre a obra de Gotthold Ephraim Lessing, poeta, dramaturgo, crítico de arte e filósofo, autor de Laocoonte, ou Sobre as fronteiras da pintura e da poesia, um clássico da teoria estética, enaltecendo-o como um tipo “fundador, em que vidas futuras se reconhecem”, um dos espíritos “mais crentes, bondosos e esperançosos que já viveram e se preocuparam com o humano”. Mann defende o status de poeta muitas vezes negado a Lessing pela crítica, aborda sua tendência à polêmica (descrevendo um célebre embate teológico em que Lessing se envolveu e ao final do qual acabou proibido de publicar textos sobre religião) e ainda traça um instigante paralelo entre ele e Lutero, tendo ambos como exemplos de personalidades libertárias, questionadoras e à frente de seus tempos.

Em “Goethe como representante da era burguesa”, Mann parte de três possíveis maneiras de avaliar a significância e o impacto de Goethe na cultura: a primeira, mais modesta, seria considerá-lo como o mestre do classicismo alemão que, de fato, forjou a noção de uma cultura alemã; a segunda, gradiloquente mas não necessariamente exagerada, consistiria em colocá-lo entre os “grandes vultos que já passaram pela Terra”, um desses expoentes cuja influência se estende por milênios e que, por isso, acabam adquirindo aura mítica; a terceira, uma espécie de meio-termo entre as duas primeiras abordagens, seria alçar Goethe à condição de representante da “era burguesa”, isto é, o período histórico que se estende desde o século XV até a virada do século XIX. A partir daí, Mann busca retratar o autor de Werther e Fausto como um típico burguês, de “modos simples e educados”, amante da boa comida e da bebida, que se agradava da rotina e do fato de pertencer a um estrato social confortavelmente mediano, o qual seria propício ao talento, pois, nas palavras do próprio Goethe, “encontramos todos os grandes artistas e poetas nas classes médias”. Levando-se em conta o contexto histórico, é plenamente justificado o esforço de Mann para retratar Goethe dessa forma: trata-se de uma resposta aos nazistas que, na época, em 1932, ganhavam cada vez mais poder e buscavam legitimar seus ideais e suas doutrinas deturpando a imagem de grandes pensadores germânicos, como Goethe, o qual, não raro, era convenientemente descrito por eles como populista e ultranacionalista.

O sétimo ensaio que compõe o volume é “Dostoiévski, com moderação”, um prefácio redigido por Mann para uma coletânea de romances do autor russo publicada nos Estados Unidos. Aqui, Mann demonstra seu fascínio pela condição de epilético e pelo estigma de homem doente sob o qual vivia o autor de Os Demônios, condição essa que abarcaria a “grandeza religiosa dos amaldiçoados, do gênio como doença e da doença como gênio, do tipo do atormentado e do possesso, no qual o santo e o criminoso se tornam um só”. Analisa, então, a repercussão dessa doença de êxtases e convulsões sobre a personalidade marginal de Dostoiévski e sobre a sua produção literária, chegando, em certos momentos, a tecer saborosas (porém equivocadas) especulações sobre uma eventual origem psíquica da epilepsia:

Em minha opinião ela indubitavelmente tem suas raízes no campo sexual e é uma forma selvagem e explosiva de sua dinâmica, um ato sexual deslocado e transfigurado, uma devassidão mística.

A partir da convicção nietzscheana de que as situações de exceção condicionam o artista, “todas as situações que são profundamente aparentadas e entretecidas com sintomas doentios”, e da pré-existência do conceito de “super-homem” na obra de Dostoiévski (mais especificamente nas falas da personagem Kirilov, em Os Demônios), Mann estabelece ainda um diálogo entre o romancista russo e o filósofo niilista alemão.

- O autor, pouco antes de morrer (1955) -

Segue-se o texto congratulatório “Hermann Hesse – homenagem ao seu 70º aniversário”. Nesse artigo, mais uma vez, Mann apoia-se na sua relação pessoal com o escritor comentado para tratar de assuntos universais – aqui, mais especificamente, o conflito entre a visão crítica de certos intelectuais alemães (ele próprio e Hesse inclusos) e a tacanhice ideológica e estultice patriota dos diversos setores sociais que serviram de substrato ao crescimento do nazismo ou que por ele se deixaram contaminar. Um dos primeiros pontos de contato que Mann apresenta para ilustrar sua proximidade com Hesse é o fato de ambos terem sido chamados de “miseráveis” por um certo compositor de Munique porque ambos não compactuariam com a crença de que os alemães seriam “o maior e mais nobre dos povos, ‘um canário entre rolinhas’”. A visão compartilhada de Mann e Hesse acerca da presunção e do provincianismo germânico é sintetizada em uma sentença no melhor estilo “pá de cal”: “Na Alemanha, aliás, os insatisfeitos com a cultura alemã foram sempre os mais alemães de todos.”

Em “Bernard Shaw”, mais um necrológio contido na compilação, Mann escreve sobre aquele que, sem dúvidas, foi seu dramaturgo favorito, ressaltando o apreço que o autor dublinense tinha pela Alemanha, esse país que reconheceu sua importância para o teatro antes mesmo dos países de língua inglesa, muito embora a influência da cultura germânica sobre a obra de Shaw fosse mínima e mesmo que seu conhecimento nesse âmbito fosse “fragmentário e casual”. Outro aspecto abordado por Mann é o influxo da música na obra de Shaw, socialista radical capaz de se dedicar com idêntica paixão ao estudo de O Capital ou da partitura de “Tristão e Isolda”. Shaw era um homem austero, dado a banhos frios, vegetariano, que gostava de escrever em uma cabana de simplicidade franciscana, e essas características, que se poderiam chamar de tendência ascética de Shaw, não passam incólumes à leve (mas constante) acidez de Mann, como mostra o trecho a seguir, um excerto particularmente divertido quando lido por olhos vegetarianos:

Na imagem de Shaw (…) há algo de magro, de vegetariano e de frígido que, para mim, não combina com a imagem de grandeza. (…) A batalha pesada (que lembra o titã Atlas) e a carga muscular e moral de um Tolstói; Strindberg, que passou pelo inferno; a morte de Nietzsche como mártir na cruz do pensamento nos insuflam esse respeito trágico. Nada disso no caso de Shaw.

E lança, então, uma pergunta provocadora, cuja resposta deixa propositalmente em aberto: “Estaria ele acima disso ou não estaria ele à altura disso?”.

O décimo artigo, “Gerhart Hauptmann”, versa sobre o vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1912, um romancista e dramaturgo alemão cuja obra, inicialmente de tendências naturalistas (vide as peças “Antes da aurora” ou “Os tecelões”), converteu-se em algo muito mais próximo de um simbolismo metafísico de forte inspiração religiosa (a novela Herege de Soana é um exemplo). Mann gasta um bom pedaço do artigo para explicar que o fato de ter se inspirado em Hauptmann para criar o cativante mas desajeitado e naïf Mynheer Peeperkorn de A Montanha Mágica foi uma homenagem, e não uma traição. Porém, ao tratar da concepção dessa caricatura, Mann não está se justificando ou pedindo escusas de qualquer tipo à opinião pública; ele está, em realidade, tratando de um tema fundamental na arte da escrita: a modelagem de personagens literárias. O penúltimo texto, “Fragmento sobre Zola”, é uma das raras referências ao escritor francês dentro da obra ensaística de Thomas Mann. Embora ele defenda a proposta estética de Zola, considerando que seu naturalismo “se alça ao plano do simbólico e se vincula intimamente ao mítico”, é o engajamento social do autor de Germinal que o fascina sobretudo, especialmente sua intervenção no famoso caso Dreyfus, em que um oficial judeu do exército francês, em flagrante manifestação de antissemitismo, foi injustamente acusado de traição à pátria.

Encerrando a compilação O escritor e sua missão, está o belíssimo “Ensaio sobre Tchekhov”. Certa vez, no começo de sua carreira literária, quando a fama do escritor já eclipsava a do médico, Tchekhov, eternamente modesto, insatisfeito e desconfiado do próprio talento para as letras, escreveu: “Será que estou ludibriando o leitor, já que não sou capaz de responder às questões mais importantes?”. E foi essa frase que tocou fundo no espírito de Mann a ponto de fazê-lo se debruçar sobre a biografia de Tchekhov. E, de fato, o ensaio de Mann elenca e esmiúça várias passagens da vida do russo, buscando, pelo veio biográfico, explicar a gênese e a importância de sua obra, essa obra que, ao contrário das criações de Tolstói e Dostoiévski, “abriu mão da monumentalidade épica” e, mesmo assim, conseguiu encerrar em si “toda a vasta Rússia de antes da revolução, com sua natureza eterna e suas eternas condições sociais ‘desnaturadas’”.

Esse caleidoscópio de ensaios, um bem temperado aperitivo da obra não-ficcional de Mann, certamente atrairá escritores (e candidatos a escritores) em busca de “conselhos” desse gigante da literatura universal sobre o ofício (até mesmo por causa do título escolhido para a coletânea, que parece insinuar algo nessa direção). Tais leitores poderão se desapontar, porque, de fato, o livro está longe de ser um “manual de criação literária” ou coisa parecida. Contudo, para quem tem sede de colher alguma dica sobre o assunto, é possível sim garimpar algumas delas entre as observações do próprio Mann e citações que ele busca em outros autores para ilustrar suas argumentações. Eis algumas delas, transcritas em uma salada proposital, sem delimitar claramente o que é original de Mann e o que é invocado por ele a partir de outros:

A genialidade na arte seria então o elemento da surpresa e do encanto que causa pasmo, o elemento da ousadia que só pode ser conhecido em suas realizações.

(…) como ensina a estética de Schopenhauer (…) as obras mais elevadas se contentam com um mínimo de ação.

Há a dolorosa constatação de que a palavra apenas consegue elogiar a beleza física, nunca reproduzi-la, há o desafio aos poetas de abrir mão da descrição, da narrativa da beleza, para, em seu lugar, pintar para nós o bem-estar, o afeto, o amor, o encanto que a beleza causa, pois com isso, diz Lessing, “tereis pintado a beleza ela mesma”.

Uma obra-prima não pode parecer obra-prima.

Apesar de tudo, parece que um artista, um criador (…), não tem como não afirmar a vida e lhe ser fiel.

Literatura nacional já não quer dizer muita coisa; é chegada a hora da literatura mundial (…).

Sinto que, sobre o demoníaco, deve-se “poetar” e não apenas escrever.

Foi o pintor e escultor francês Degas quem afirmou que um artista deve se aproximar de sua obra como um criminoso executa seu ato.

Pois a única forma de lidar com o que é poético, irracional, é por meio da literatura, e não por intermédio da palavra que analisa e dissocia.

A insatisfação consigo mesmo constitui um elemento básico de todo talento genuíno.

::: O escritor e sua missão ::: Thomas Mann (trad. Kristina Michahelles) :::
::: Zahar, 2011, 208 páginas :::
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Rafael Bán Jacobsen

Físico da UFRGS e escritor. Seu romance Uma leve simetria (2009) foi finalista do Prêmio Açorianos.

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