Sai estudo pioneiro de Marcia Taborda sobre a importância do violão na cultura brasileira.
Este livro foi publicado a partir da tese de doutorado da autora, defendida na UFRJ, sob orientação de José Murilo de Carvalho. É um trabalho contraditório, sobrevivente no balanço entre virtudes e defeitos, especialmente pelo fato de ser a primeira, e até agora única, pesquisa sistemática sobre a presença do violão no Brasil e o significado do instrumento na música e na cultura brasileiras.
Estranhamente, o capítulo que tem a discussão bibliográfica e a reflexão teórica sobre cultura brasileira ficou como o último do livro. Seria de se esperar que fosse o primeiro, pois ali estão as leituras e discussões dos autores fundamentais para pensar a questão. Desde comentários de passagens de Aluízio de Azevedo, Machado de Assis e Lima Barreto, indo às discussões de Mário de Andrade e Gilberto Freyre, e chegando à bibliografia atual: Peter Burke e as discussões sobre cultura popular, Nicolau Sevcenko, e o próprio Murilo de Carvalho e o panorama das lutas culturais na Primeira República. Suspeito que a posição dos capítulos mudou entre a tese e a publicação em livro, porque o volume ora publicado simplesmente não tem final. Quero crer que também a autora fez uma revisão, solicitada pela editora, para retirar notas de rodapé e remissões bibliográficas, pois há muita informação no livro que a gente não sabe de onde vem.
Os principais defeitos do livro decorrem da tentativa de discutir temas muito amplos (cultura brasileira, popular versus erudito, América colonial e europeização, papel do rádio e da indústria do disco no surgimento da música popular, etc. etc.), o que acaba resultando em análises superficiais e lacunas bibliográficas. A que melhor lembro é a afirmação da autora de que Machado de Assis dedicou-se aos ambiantes burgueses e nada fala de música popular (“dos pobres urbanos” – p. 170). O que é no mínimo uma imprecisão imperdoável. A autora parece não conhecer contos como “Um homem célebre” ou “O machete“, e menos ainda o estudo de José Miguel Wisnik sobre o assunto. Suas considerações sobre a polca e o papel dela na cultura musical do Rio de Janeiro oitocentista, ou mesmo sobre o choro e o maxixe (outros nomes para a mesma polca), teriam sido menos impróprias se ela tivesse consultado o trabalho clássico (e obrigatório) de Carlos Sandroni – Feitiço decente, um livro sobre as transformações do samba entre 1917 e 33, mas que tem partes muito importantes sobre modinha e sobre o surgimento do maxixe pelo processo de abrasileiramento da polca.
Outro problema é que, além de abordar superficialmente assuntos por demais complexos, a autora também fica num tratamento muito superficial do que deveria ser o objeto principal do trabalho: a produção musical para violão entre meados do século XIX e a década de 1930 no Brasil. Neste aspecto ela não faz mais do que procurar listar os violonistas ativos, faltando um estudo, ainda que superficial, da obra musical destes pioneiros. Suspeito que o medo de empreender tal tarefa tenha decorrido do fato de o doutorado ser em um departamento de história. Tentar não transformar o trabalho em algo cheio da indevassável discussão técnica a partir de partituras acabou resultando no problema oposto: a quase ausência de música. Certamente contribui para isso o fato de que José Murilo de Carvalho, o orientador da pesquisa, apesar de ser um dos mais importantes historiadores brasileiros, não tem nenhum trabalho dedicado a assuntos de música, não podendo dar melhor direcionamento ao trabalho neste sentido.
Tirante estes defeitos teórico-metodológicos, resta um trabalho pioneiro. É o primeiro livro a tratar sistematicamente do violão no Brasil, e avança muito sobre tudo que já havia sido escrito sobre o assunto.
A autora teve o cuidado de fazer investigações na literatura sobre vihuela, alaúde e guitarra na Europa dos séculos XVI a XVIII, para evitar as confusões sobre as variantes dos instrumentos de cordas dedilhadas e a maneira como toda esta literatura musical desembocou na viola e no violão brasileiros. De especial importância é a revisão que a autora faz em traduções da literatura de viajantes, revelando erros fáceis de se incorrer pelo fato de o termo “violão” só existir em português – os correspondentes são guitar, guitarra, guitarre, etimologia que no Brasil ficou restrita à guitarra elétrica que ganhou fama na década de 1950.
Outra coisa que está abordada de maneira sistemática no livro é a relação de violonistas e violeiros ativos no Rio de Janeiro. A partir de consulta ao Almannack Laemmert, a autora elaborou lista dos professores de viola ou violão que anunciaram suas atividades na cidade. Também as lojas/oficinas do instrumento ativas na capital, além dos métodos publicados. Resulta um tanto curiosa a divisão que Marcia Taborda escolheu, pois o livro tem um capítulo para o violão de concerto (uma coisa que praticamente inexistiu no Brasil antes da década de 1960, como ela própria demonstra) e outra para o violão popular – modinheiro ou chorão. Nesta parte está a pior sensação daquele gostinho de “quero mais” para um leitor como eu: a autora elaborou um anexo com a lista de todas as gravações de violão no Brasil em 78 rotações. Ao longo do livro ela demonstra ter tido contato com este material, ou seja, ela não só viu uma lista, mas ouviu os discos, efetivamente. Isso seria a fonte privilegiada para o que deveria ter sido a principal contribuição de seu trabalho. Segundo informa, ela está trabalhando com transcrições em partitura para este material, o que espero ver publicado. Mas, já na tese/livro, teria sido muito interessante um comentário mais detalhado deste obra musical significativa. Isso é o que o livro fica devendo.
De qualquer forma, como sabemos, não há possibilidade de estudo definitivo sobre nenhum assunto neste mundo. O trabalho de Marcia Taborda se posiciona então como uma obra pioneira que abre um vasto campo de estudo para as ciências humanas e a música: o violão no Brasil é um tema que vai demandar ainda muitos estudos específicos sobre violonistas, compositores ou obras (muitos já estão sendo feitos, mas a autora não pretendeu consultar todos). Para todo mundo que for trabalhar com este tema, ou for mero curioso do assunto, o livro é desde já material de consulta obrigatória.
::: Violão e identidade nacional ::: Marcia Taborda :::
::: Civilização Brasileira, 2011, 304 páginas :::
::: compre no Submarino ou na Livraria Cultura :::