As mentiras que os homens contam: a cartilha de 10 anos do PT no poder
As melhoras inequívocas no país que podem ser atribuídas ao PT estão na distribuição de renda e no combate à pobreza.
Fui conferir a tal cartilha (pdf) que o PT encomendou para comemorar seus 10 anos na presidência. É claro que não se pode esperar desse tipo de publicação um tom neutro ou simpático à oposição, mas ela tem tantas omissões e manipulações convenientes que resolvi documentá-las, para marcar a diferença entre alguns fatos e as versões que o partido resolveu contar. A cartilha trata quase o tempo todo de desempenho econômico, de forma que posso falar de seu conteúdo com alguma propriedade e sem recorrer às minhas precárias habilidades de análise política.
1. Chama a atenção, logo na primeira página (fora a capa no melhor estilo realista-socialista), a escolha da terminologia usada para distinguir entre os anos dos dois mandatos de FHC e os dez anos que somam os dois mandatos de Lula e metade do mandato de Dilma. Os primeiros são chamados de “neoliberais” (ou “neocolonialistas neoliberais”, quando o autor está mais empolgado); os segundos, de “desenvolvimentistas” (no restante do texto, vou conter meu ímpeto de toda vez usar esses termos entre aspas – mas que fique claro para o leitor minha repulsa a essa classificação simplista).
Acho essa distinção perversa, primeiro pela escolha dos termos: chamar uma corrente econômica de desenvolvimentista sugere que as outras não têm como objetivo o desenvolvimento, quando, na verdade, a principal diferença está nos meios para obtê-lo – com mais ênfase na presença do Estado ou no desenho de mercados livres e no sistema de preços. Este, porém, não é o único problema do material: a divisão temporal utilizada é simplesmente errada.
Após o caótico ano eleitoral de 2002, quando o câmbio R$/US$ desvalorizou 35% e ajudou a levar a inflação para um pico de 17% anuais, a prioridade do primeiro governo Lula era estabilizar a economia. Para isso, optou por uma equipe econômica que, pela dicotomia proposta, seria classificada como quase 100% neoliberal: o Banco Central e o BNDES foram entregue a banqueiros (Henrique Meirelles e Eleazar de Carvalho Filho, respectivamente) e a Fazenda a um hábil articulador político, que trouxe para o ministério Marcos Lisboa (secretário de política econômica, PhD pela Universidade da Pensilvânia, ex-professor de Stanford e da FGV e um dos signatários da famosa “Agenda Perdida“) e promoveu a secretário do tesouro Joaquim Levy (PhD por Chicago e que transitava no segundo escalão do governo FHC desde 2000). Entre os diretores do Banco Central durante o mandato de Meirelles estiveram: Afonso Bevilaqua, Luiz Candiota, Rodrigo Azevedo, Mario Torós, Beny Parnes, Alexandre Schwartsman, Paulo Vieira da Cunha, Ilan Goldfajn, Eduardo Loyo e Mário Mesquita – todos ligados ao mercado financeiro e “neoliberais” (ou pelo menos não-desenvolvimentistas) de carteirinha.
A virada para o desenvolvimentismo foi gradual. No BNDES, sucederam-se a Carvalho Filho, a partir de 2003, Carlos Lessa (até 2004), Guido Mantega (até 2006) e Demian Fiocca (até 2007). Mantega assumiu a Fazenda em 2007. Talvez este ano possa ser marcado como o do verdadeiro início do desenvolvimentismo: foi também quando Luciano Coutinho, Marcio Pochmann e Arno Augustin passaram ao comando, respectivamente, do BNDES, IPEA e Secretaria do Tesouro; e quando o reajuste do salário mínimo passou a ser indexado ao crescimento do PIB e inflação passados. Em 2008, Nelson Barbosa (ex-professor da New School, de Nova York, núcleo de heterodoxia econômica) tornou-se secretário de política econômica. Contudo, Meirelles ficou no BC até o último dia do mandato de Lula, sendo que o último dos diretores “neoliberais” mencionados só deixou o cargo em 2010. A vitória definitiva do desenvolvimentismo, creio, só pôde ser proclamada em 2011, com a posse de Dilma (que, ao contrário de Lula, tem ideias próprias no campo da economia), a nomeação de Alexandre Tombini para o BC e a rápida falha na tentativa de ressuscitar Palocci como chefe da Casa Civil.
2. É claro que a performance econômica nos anos de desenvolvimentismo puro-sangue não é exatamente motivo de orgulho (menos ainda no par de anos desde a posse de Dilma), e daí, creio, a tentativa de enfiar todo o período de 2003 a 2012 nesse rótulo e reescrever a história em termos mais favoráveis. Entre 2008 e 2012, o crescimento médio anual do PIB foi de 3,2% (contra 4% dos cinco anos anteriores). Parte importante dessa queda pode ser honestamente atribuída à crise global, mas para isso seria razoável e consistente dividir os créditos da bonança anterior com outro fator importante: a alta global nos preços de commodities, sobretudo nas duas mais importantes entre as exportações do país: minério de ferro e soja.
3. Não há, nas 27 páginas da cartilha, nenhuma menção a commodities ou termos de troca (a relação entre preços de exportações e importações do país), ainda que louve-se a acumulação de reservas internacionais e o fim dos problemas com a dívida externa. Ambos só foram possíveis graças a um cenário externo muito favorável (que proporcionou, para o Brasil e até para países de histórico de crédito muito piores, o fim do “pecado original” – a incapacidade dos tesouros nacionais conseguirem financiamento de longo prazo em moeda local, tendo que recorrer a emissões externas, em moeda forte) e, sobretudo, a um movimento histórico de alta de commodities, que acompanhou incessantemente os dois mandatos de Lula.
O impacto dessas mudanças, que, evidentemente, pouco têm a ver com quem estava ocupando o Palácio do Planalto, é profundo e difícil de ser subestimado: elas resolveram um problema histórico de periódicas crises de financiamento em moeda estrangeira no país. Além disso, o PT assumiu o governo com um câmbio muito depreciado, e teve pelo menos seis anos para colher os benefícios da apreciação gradual do real, provocada tanto pela correção do exagero do movimento de 2002 quanto pela entrada quase incessante de dólares vindos dos superávits comerciais e da entrada de investimento direto (que havia começado no período “neoliberal”). Qualquer análise da história econômica recente do país que não leve em conta esses elementos é, no mínimo, grotescamente incompleta. Evidências estão nos gráficos ao fim deste texto e aqui.
4. As melhoras inequívocas no país que podem ser atribuídas ao PT estão na distribuição de renda e no combate à pobreza (sendo que, por trás de parte das políticas utilizadas, está o economista Ricardo Paes de Barros, outro “neoliberal” com doutorado em Chicago). A cartilha, porém, dedica apenas seis páginas a esses indicadores, nunca sem compará-los ao fracasso do “projeto neoliberal”.
É sempre complicado lidar com contrafactuais e o que deixou de ser feito, mas cabe lembrar de alguns dos complexos desafios econômicos dos dois mandatos de FHC: consolidar uma estabilização monetária recente que dependia de juros altos e câmbio fixo e lidar com um período secular de aperto da liquidez global em dólares que provocou crises graves (entre calotes e maxidesvalorizações) no México (1995), Sudeste Asiático (1997), Rússia (1998), o próprio Brasil (1999), Argentina (2001) e, novamente, Brasil (2002). Ainda que a maior crise em pelo menos sete décadas tenha chegado ao mundo durante o segundo mandato de Lula, isso ocorreu, como mencionado acima, após anos de folga nas contas externas e possibilidade de blindagem contra uma parada súbita no financiamento externo – o que não impediu, porém, uma severa desaceleração do crescimento e quebras de algumas das maiores empresas do país, com alguma socialização dos custos associados (muitos, escondidos no balanço dos bancos públicos, seguirão aparecendo por muitos anos – vide os prejuízos contínuos do Banco Votorantim, que liderou uma bolha no financiamento de veículos e foi adquirido pelo Banco do Brasil).
Isso, porém, não tira o brilho dos dados (discussões sobre definições de pobreza a parte): desde 2003, o salário mínimo real subiu mais de 70%, a desigualdade (medida pelo índice de Gini) caiu de 58,1 para 52,1 e o país possivelmente alcançou o pleno emprego, com as menores taxas de desemprego da história recente. Não é pouca coisa, definitivamente.
5. A estagnação da economia nos últimos dois anos, causada, sobretudo, pela queda nos investimentos, é uma amostra dos problemas a serem enfrentados até as próximas eleições presidenciais. Os últimos grandes passos do desenvolvimentismo (a queda significativa nos juros reais e a tentativa de desonerar alguns preços e criar externalidades para o capital) foram dados no ano passado, e ainda não houve tempo para que suas consequências sejam devidamente avaliadas . A isso juntam-se algumas consequências indesejáveis das políticas dos anos anteriores: inflação persistentemente alta (sobretudo em serviços), aumento da dependência dos bancos públicos para concessão de crédito, queda nas margens de lucro e postergação das decisões de investimento e certo desencanto do capital externo (ainda que, em grande parte, causado por uma ilusão alimentada pela imprensa e relatórios de bancos estrangeiros). Em suma, boa parte das conquistas atribuídas pelo PT ao desenvolvimentismo devem-se a outro paradigma, e os testes mais duros para aquele ainda estão por vir.
6. Como dito, a cartilha alimenta uma polarização entre neoliberalismo e desenvolvimentismo. Como era de se esperar de um documento partidário, não faltam exageros e atribuições pouco responsáveis e mal fundamentadas. Exemplos são abundantes, entre eles:
“… o projeto de país liderado pelos governos neoliberais teimava em continuar a liderança do atraso histórico, presente e disposto a edificar o Brasil para uma parcela privilegiada da população.” (página 6)
“Percebe-se claramente que a armadilha na qual os governos liberais aprisionaram o país foi sendo desarmada…” (página 16) – grande ingratidão a dezenas de competentes servidores públicos “liberais” e revisionismo hipócrita, considerando que o “tripé macroeconômico” montado nos anos FHC (câmbio flutuante, metas de inflação e de superávits fiscais) foi mantido até hoje e segue sendo defendido publicamente por todos os ministros da área econômica.
7. Pelo tom da cartilha, me parece evidente que:
(i) Os desenvolvimentistas venceram uma batalha pelo poder importante dentro do partido, e devem seguir comandando as principais decisões de política econômica pelo menos até o término do mandato de Dilma. O texto da cartilha foi escrito em conjunto pelo PT, o Instituto Lula e a Fundação Perseu Abramo, que é presidida por Marcio Pochmann. Pochmann deixou a presidência do IPEA para concorrer, apadrinhado por Lula, à prefeitura de Campinas. Perdeu a eleição (ainda que forçando um segundo turno que parecia improvável), mas seguramente é dos quadros ditos “técnicos” com maior moral dentro do partido.
(ii) O tom da campanha presidencial do ano que vem deve ser marcado por comparações entre os oito anos de PSDB e os doze de PT, com variados graus de respeito aos fatos e correção nas relações entre causas e consequências. Lamento profundamente essa escolha, já que era uma grande oportunidade de tentar uma conciliação entre as diferentes correntes de pensamento partindo de uma base bastante boa que dependeu tanto da estabilização “neoliberal” quanto de certa ousadia “desenvolvimentista”. O país tem a perder com a tentativa de desmoralização dos liberais, já que em economia não há verdades absolutas e atemporais, e a ausência de pluralidade tende a desequilibrar a escolha de políticas e concentrar as apostas em um paradigma que seguramente não se provará correto por muito tempo.
(iii) Para a oposição, ficará a dificílima tarefa de lutar contra a combinação desse discurso com dados que, se podem ser enfraquecidos por uma análise criteriosa, aparecem muito bem quando apresentados de forma absoluta e com pouco contexto, estratégia que deve parecer óbvia para qualquer marqueteiro político. Na impossibilidade de negar as conquistas ou atribuir suas causas a decisões tomadas em um passado distante, restará uma tentativa de propor um aprimoramento no modelo atual, sem ameaçar os privilégios concedidos; ou uma torcida para que os ajustes que parecem estar se iniciando no mercado de trabalho gerem desconforto na maioria da população e desejo de mudança. Se vale a máxima “é a economia, estúpido”, com os dados disponíveis hoje, Dilma parece uma candidata muito difícil de ser batida em 2014.
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