Na obra do escritor carioca, a relação entre passado e presente é representada de diversas formas.
“Conforta acreditar que o passado é um inimigo que derrotamos de uma vez para sempre, que cada minuto é uma formiga que esmagamos com o pé em nosso avanço implacável. Ao contrário, minha sensação é de que o passado respira todo o tempo às minhas costas, anda sempre no meu encalço e, se acelero o passo, ele também aumenta o ritmo de sua marcha, disposto a me tragar de uma vez na sua corrente.”
O narrador responsável pela frase acima chama-se Gaspar, é um crítico de arte, homem que ascendeu socialmente e se esforça em esconder seu passado – tanto a infância pobre, quanto o período em que teve de morar na rua – e que se especializou em um escritor de carreira e vida nebulosas. É o narrador do romance Barco a seco (2001), de Rubens Figueiredo.
Sexto livro na produção do autor, o ponto de partida da obra é um mergulho do narrador no mar que quase acaba em tragédia. Em meio a esse cenário trágico, entre ondas violentas e um mar bravio, Gaspar se lembra de Emilio Vega, obsessão de sua vida e pintor conhecido por ter retratado apenas o mar, ou melhor, barcos atracados na praia. A lembrança é sucedida pela percepção por parte do narrador de estar fazendo parte de um quadro de Vega, percepção pela qual se recrimina: Emilio Vega, e Gaspar sabia disso melhor do que qualquer outro, nunca pintara o mar bravio.
Mais adiante, quando mais informações sobre o passado de Vega surgem, o leitor descobre que há décadas, talvez naquele mesmo trecho do mar, o pintor quase se afogara. A partir dessa quase morte, Emilio Vega muda completamente sua vida, tema de tantas discussões, teses e certezas por parte de Gaspar. O passado de uma região, em especial o passado de um homem, Emilio Vega, influencia e acaba por mudar de maneira vigorosa a vida de outro, Gaspar Dias: primeiro como matéria inerte – como a história que, mesmo com muitos contornos nebulosos, parece estar terminada; depois como algo vivo, influenciando diretamente a vida cotidiana de Gaspar.
Em Barco a seco, Rubens Figueiredo leva ao centro de seu romance um assunto que permeia alguns de seus contos, como “Os biógrafos de Albernaz”, e que também está presente em seu último romance, Passageiro do fim do dia (2010): a relação conflitante e viva entre passado e presente.
Em “Os biógrafos de Albernaz”, dois homens escrevem ao mesmo tempo a biografia de um importante intelectual já falecido e buscam terminá-la naquele ano – centenário do biografado. Durante o conto, o leitor acompanha através da visão de um dos biógrafos a disputa entre os dois por informações. Em determinado momento do conto, o leitor – e um dos biógrafos – descobre uma passagem da vida do biografado que, diferentemente das outras conhecidas, mancha a imagem até então ilibada do intelectual falecido.
Nesta passagem, uma informação não conhecida do passado acaba por mudar a percepção que se tinha dele próprio. Assim, a imagem do passado no conto difere-se daquela apresentada em Barco a seco, em que a história surge ainda viva no presente. De maneiras diferentes – seja através de novas informações sobre um fato já terminado ou pela descoberta de que o fato em si ainda não está acabado – tanto o conto quanto o romance deixam claros a capacidade da história de mudar a si própria e à realidade presente.
Além das maneiras explicitadas anteriormente, há ainda uma terceira maneira na obra de Figueiredo de representar a relação entre passado e presente, que pode ser vista em sua mais recente obra, Passageiro do fim do dia: a história de toda uma sociedade que influencia e continua viva no presente.
O último romance de Rubens Figueiredo narra a viagem que Pedro, o protagonista, costumava fazer às sextas-feiras para visitar sua namorada no longínquo bairro conhecido como Tirol. As relações históricas presentes no romance vão surgindo com o desenrolar do enredo, que nada mais é do que o trajeto que o ônibus percorre e as digressões que o narrador empreende ao seguir o fluxo de consciência do personagem principal.
A mais visível entre essas relações se dá pelo livro que o protagonista lê durante seu trajeto: uma apresentação à obra e vida do cientista inglês Charles Darwin, que trata detidamente de sua viagem ao Brasil. As relações entre passado e presente a partir da leitura do livro e da observação do mundo expõem a violência que perpassa o desenvolvimento histórico nacional, seja simbolicamente, como nas batalhas mortais entre vespas e aranhas observadas pelo inglês há mais de 150 anos e que se encaixariam tranquilamente como metáfora do que cerca o protagonista, seja nas claras descrições das relações escravagistas no Brasil imperial. O efeito de proximidade surge mesmo geograficamente, com a percepção por parte de Pedro de que os lugares a que Darwin se refere poderiam ser muito perto das ruas por onde seu ônibus passa.
Dois outros fatos merecem ser aqui apontados. O primeiro diz respeito ao bairro a que Pedro se dirige. Conhecido pelo nome de Tirol, o bairro fora construído para ser uma vila militar. Toda a história do lugar, a maneira desordenada como foi ocupado, os problemas causados pela falta de urbanização e pelo excesso populacional e a hostilidade com o bairro vizinho, conhecido como Várzea, influenciam o cotidiano do Tirol quase tanto quanto a pobreza que impera em suas casas e ruas.
O segundo fato se passa com Pedro depois de abandonar a faculdade de Direito, quando decide vender livros na rua e, logo que começa, vê-se envolvido em um conflito entre vendedores de rua e a polícia. Pedro tem o calcanhar esmagado por um cavalo da polícia e é convencido por um colega de faculdade de que deve pedir uma indenização do Estado. Mesmo sem acreditar na indenização – o que já diz muito sobre a aceitação da violência cometida pelo Estado por parte do personagem – Pedro ganha o processo e usa o dinheiro para montar sua pequena livraria, frequentada quase exclusivamente por advogados, juízes e alunos de Direito.
O passado em Passageiro do fim do dia é pano de fundo, ou melhor, é a sustentação de todos os atos, como um palco de teatro que, embora não seja parte visivelmente atuante na trama, serve como base para tudo. O passado está sempre presente, algumas vezes de maneira clara, como na dor constante que Pedro sente no calcanhar, outras vezes de forma implícita, como é o caso da violência que permeia toda a obra: a violência contra os escravos presenciada – e talvez perpetrada – por Darwin em sua viagem ao Brasil; a violência urbana percebida nos diversos relatos dos passageiros do ônibus, no relato de Rosane, namorada de Pedro, sobre jovens e crianças de seu bairro portando fuzis, e por fim na história contada por uma vítima de bala perdida, que acabou por perder o filho no sétimo mês de gravidez. Há ainda a violência do Estado, que vai além do ocorrido com Pedro e está presente no relato de um homem que fizera parte das forças armadas e, após cometer um erro, fora duramente torturado.
O passado nessas obras citadas de Figueiredo surge em alguns momentos como um fato desconhecido ou tido como insignificante e em outros como uma verdade impossível de ser burlada, mas que parece já ter chegado ao seu fim. O constante movimento de choque e repetição entre personagens e regiões com sua história, porém, mostra que a relação entre passado e presente é maior do que simples objeto de memória e que mesmo a própria memória é capaz de influenciar o presente.
Os romances e contos de Rubens Figueiredo, constantemente conhecidos pelo seu cunho crítico e sociológico, trazem ainda em meio à sua estrutura e enredo a observação histórica que não aceita a memória de uma nação e sua população apenas como matéria morta voltada a livros e especialistas, isso em um país que constantemente relega seu passado a algo que já chegou ao fim e não deve ser discutido e analisado como sendo capaz de influenciar o presente. A história para Rubens Figueiredo está viva e muito longe de chegar a seu fim, e sua prosa confirma isso.
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Fernanda Passamai Perez