Cada avanço não apenas reduz o tempo de espera por novas tecnologias, mas também nos apresenta atalhos, aponta novas direções e possibilidades.
Imagine os seguintes cenários hipotéticos: Darwin vive tempo o suficiente para verificar que sua teoria serviu como ponto de partida para a expansão indefinida da vida humana; um hipotético explorador espanhol do século XVI é transportado para o terceiro milênio e é testemunha de um indivíduo com expectativa de vida em torno dos cento e cinquenta anos; e Dorian Gray, personagem de Oscar Wilde, acorda em 2013, apenas para perceber que não precisava ter vendido sua alma para viver belo para sempre. Todas essas imagens de vida eterna e cura para o envelhecimento habitavam até há pouco tempo o imaginário dos escritores de ficção científica. Embora não sejam eventos ainda factíveis, não parece justo com este momento histórico rotular de ficção o que pode muito bem ser verdade em pouco tempo.
Em 2011 o neurocientista Miguel Nicolelis lançou Muito além do nosso eu, livro que trazia o subtítulo “A nova neurociência que une cérebro e máquinas – e como ela pode mudar nossas vidas”. Em dezembro do mesmo ano a revista piauí trouxe uma reportagem de Bernardo Esteves em que Nicolelis revelava sua curiosa ambição: fazer com que uma criança tetraplégica desse o pontapé inicial da Copa do Mundo de 2014. O modus operandi estava relacionado às suas pesquisas com a macaca Aurora, na Duke University, em que a astuta primata utilizava apenas o pensamento para mover um robô localizado a milhares de quilômetros de distância, além de ser capaz de reconhecer registros táteis por ele enviados. Os resultados deixaram o cientista otimista e pronto para levar adiante sua ideia, aplicando sua engenhosidade ao equipamento que retornaria o dom da locomoção à criança. Seria um óbvio marco na história das Copas do Mundo, mas sobretudo um grande passo na história da humanidade – uma revolução talvez tão significativa quanto a alunissagem da Apollo 11 e seus astronautas em 1969.
Nicolelis aborda a interface cérebro-máquina de forma mais futurista naquilo que chama de brain net, uma forma bastante avançada da atual internet em que pessoas poderão se comunicar apenas via pensamento, independente da distância. Ainda que soe como ficção científica aos ouvidos mais incautos, o neurocientista já avisou que não há nenhum impedimento teórico para que isso aconteça. Falta-nos apenas o meio prático. Em outras palavras, tecnologia.
Não há dúvidas de que o século XXI será marcado pela velocidade vertiginosa com que tecnologia e informação colidem. E cada avanço não apenas reduz o tempo de espera por tais tecnologias, mas também nos apresenta atalhos, aponta novas direções, possibilidades antes inexistentes. O conhecimento técnico para desenvolver novas conexões cérebro-máquina que viabilizem outros padrões de relações entre humanos e possibilidades para o corpo tem seu desenvolvimento intimamente ligado a questões políticas, econômicas e éticas. Enquanto isso não acontece, a nossa criatividade dá conta de sublimar o desejo ainda oculto da humanidade em transpor os limites do corpo e da morte.
Doktor Sleepless, do premiado escritor de quadrinhos Warren Ellis aborda essa temática: na história, uma subcultura formada apenas por garotas utiliza um equipamento chamado shriekyware para compartilhar informações e experiências sensoriais – inclusive sexuais – sem que para isso estejam próximas.
Mas há também o lado sombrio e distópico. Deus Ex: Human Revolution, jogo lançado em 2011, o mesmo do lançamento do livro de Nicolelis, traz um protagonista que após uma explosão encontra-se à beira da morte. Para salvá-lo, um grupo de tecnologia extrai todos os tecidos mortos e danificados e os substitui por membros biônicos, nanomáquinas e aparatos tecnológicos que o deixam apenas pouco mais humano do que o RoboCop. A partir daí o que se vê é uma nova configuração de sociedade, em que o homem como o conhecemos divide espaço com outros que receberam esse upgrade tecnológico. Consequentemente, surgem também novas formas de discriminação – o homo sapiens contra o homem-máquina.
Para o bem ou para o mal, esses cenários fazem parte do que se convencionou chamar de transumanismo, movimento que é uma das principais apostas da ciência para o século XXI e engloba, além do desenvolvimento das nano e biotecnologias, um discurso filosófico de extensão da vida humana. Outro exemplo notório é a ficção científica Gattaca (1997), dirigida por Andrew Niccol e estrelada por Ethan Hawke e Uma Thurman. Na história, com ecos de Admirável mundo novo, seus personagens vivem em um mundo em que a eugenia tem carta branca para operar, e só são considerados dignos aqueles nascidos através de um processo de escolha de caracteres genéticos que os façam herdar apenas as características positivas de seus genitores. Os nascidos pelo processo natural sofrem com o preconceito da sociedade e amargam as sarjetas do submundo futurista. Uma imagem bastante icônica do futuro nas produções distópicas do século XX para cá. E são essas as grandes questões comumente levantadas pelo enredo das tramas de sci-fi: de posse de tamanha tecnologia, o que nos torna, de fato, humanos? E a quem serve essa tecnologia?
Para responder a essas perguntas precisamos entender primeiro do que falamos quando colocamos em pauta o transumanismo, ou transhumanism, no termo original em inglês. A organização Humanity+ compilou um interessante FAQ que visa responder às curiosidades mais diversas sobre o tema. São respostas a perguntas que vão desde a simples conceituação de transumanismo e biotecnologia até explicações minuciosas sobre o pensamento de seus adeptos.
Outro documento importante, a Declaração Transumanista, redigida por importantes entidades favoráveis à extensão da vida, lança as bases sobre as quais se fundamentam todas as vertentes do movimento. De forma resumida, sua principal característica é a utilização da ciência e da tecnologia para potencializar as possibilidades do corpo. Em outras palavras, é possível que obstáculos como déficits cognitivos, envelhecimento e adoecimento por razões diversas possam ser evitados utilizando máquinas que viriam para suprir debilidades nas funções corporais. E nem tudo precisa funcionar em escala micro.
Recentemente temos sido testemunhas de um crescendo na utilização de membros artificiais em indivíduos acidentados ou que se submeteram ao procedimento de amputação. Ou casos como o da americana Jan Scheuermann, de 52 anos e há treze diagnosticada com uma doença degenerativa do sistema nervoso. Jan Scheuermann é completamente paralisada do pescoço para baixo. Mas graças aos avanços em robótica e biotecnologia, médicos da Universidade de Pittsburgh puderam implantar eletrodos no cérebro da paciente e criar um braço sintético que pode ser cem por centro controlado apenas com a mente. Está ainda bem longe de ser a revolução imaginada por Miguel Nicolelis, mas é um autêntico representante dos esforços realizados ao redor do mundo para conciliar o orgânico e o sintético. E foi assim que pela primeira vez em tantos anos Jan pôde comer uma barra de chocolate sem a ajuda de ninguém. Ainda que experimentos como esse sejam exceções, e não regra, a tecnologia segue rendendo frutos em benefício do homem. Órgãos artificiais já não são propriedade exclusiva da ficção científica há muito tempo. Por outro lado, medicamentos reguladores do humor são prescritos indiscriminadamente, carentes de exigências mais criteriosas. A humanidade ainda está em um estágio experimental em sua relação com a tecnologia de ponta, colhendo os frutos do grande boom tecnológico da virada do século, e em especial dos esforços multidisciplinares em compreender o funcionamento do sistema nervoso nos anos 90 – década que ficou conhecida como “década do cérebro”.
Todo esse processo certamente não é fruto apenas das últimas décadas. Inúmeros exploradores do Velho Mundo perderam as vidas nas florestas americanas tentando encontrar a afamada Fonte da Juventude, e lendas semelhantes existem no mundo árabe e no Ártico. Os alquimistas perseguiam a panaceia, substância capaz de curar todas as doenças e garantir a vida eterna. Os chineses atribuíam as mesmas propriedades ao ginseng. Entretanto, talvez seja justo dizer que os primeiros esboços envolvendo a iminente possibilidade dessa transcendência encontram-se no movimento filosófico do cosmismo, precursor do transumanismo na Rússia czarista. Lá, entre os séculos XIX e XX viveu Nikolai Fyodorovich Fyodorov, um cristão ortodoxo admirado por figuras importantes como Tolstói e Dostoiévski. Ele entendia que a vida eterna e a ressurreição dos mortos são a legítima causa comum pela qual a humanidade deve unir forças, em um esforço utópico para superar nosso limitado corpo de homem e transpor uma suposta estagnação evolutiva. Entendia que a evolução, ainda inacabada, falhou em nos dar um corpo mortal e frágil, sensível a doenças e perigos de origem interna e externa que se encarregam de destruí-lo.
Já há mais de cem anos Fyodorov advogava a livre propagação de ideais. Era contrário à noção de posse de conhecimento – algo semelhante ao que vemos atualmente causar furor sob a égide de grupos como Wikileaks e Anonymous, entre tantos blogs de compartilhamento de arquivos. Não publicou nada em vida. Seus artigos foram compilados nos anos seguintes à sua morte por seus discípulos, que o publicaram em um livro intitulado Filosofia da causa comum. O filósofo entendia que a essência do verdadeiro cristianismo consistia em construir na Terra o verdadeiro Paraíso, e nisso residia o maior dos obstáculos à causa comum: a vitória derradeira sobre a morte. Não apenas para nós, os vivos, mas também para os antepassados que pereceram e devem ter igualmente a oportunidade de desfrutar da fraternidade eterna do paraíso físico. Com isso, lançou as bases de um movimento que mais tarde receberia o nome de transumanismo.
Nikolai Fyodorovich Fyodorov foi, em suma, um homem abandonado pela história. Caído no esquecimento, é caso legítimo dos homens a quem recaíram o infausto destino de viver em épocas que não eram suas.
Pavimentados todos os caminhos, não nos importa a nacionalidade de seus sobrenomes: brasileiros, russos, americanos. Sabemos agora que não há volta para as novas possibilidades da tecnologia e suas promessas. Séculos após a grande era das navegações mapear todo o globo terrestre e encerrar o milenar mito do mundo que se acabava em um abismo, os cientistas assumem o papel de novos exploradores e defrontam-se com uma nova fronteira. A eles coube a responsabilidade de se lançar ao desconhecido emaranhado de conexões cerebrais e tecnológicas que até agora nos impediram de desbravar por completo o continente humano.
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Luiz André