Livros

Almeida Garrett, o Romantismo em trânsito

por Gustavo Melo Czekster (15/02/2013)

O livro pode ser lido como um interessante estudo sociológico da formação do povo português

"Viagens na minha terra", de Almeida Garret

“Viagens na minha terra”, de Almeida Garret

Os principais motivos para qualquer pessoa viajar é conhecer novos lugares, lidar com personalidades diferentes e aprender sobre a própria cultura através da comparação com a de outros povos. É comum pensarmos que a literatura de viagem sempre trata de uma pessoa viajando para um ambiente distante daquele em que está acostumado a viver. No entanto, mais do que um deslocamento físico, viajar também pode ser um estado de espírito: submeter-se ao novo e ao estranho, olhar o mesmo mundo de outra perspectiva. Caminhar no próprio quintal pode ser tão enriquecedor quanto conhecer um outro país. Com esta intenção, o escritor português Almeida Garrett escreveu Viagens na minha terra, publicado originalmente em 1846 e relançado pela Ateliê Editorial acompanhado de notas biográficas completas que levam o livro até o seu máximo potencial, assim como uma apresentação crítica do professor Ivan Teixeira e desenhos minimalistas do artista plástico Kaio Romero.

Logo no início, em uma provocação explícita, Almeida Garrett fala que, se Xavier de Maistre escreveu um livro descrevendo uma viagem ao redor do seu quarto, nada impede que ele faça uma curta viagem entre as cidades que cercam Lisboa e escreva a sua opinião de “viajante”. Com este objetivo, o escritor sai da sua casa e, através de uma descrição minuciosa dos caminhos que trilhará, estabelece um roteiro de cidades próximas pelas quais passará e as circunstâncias que pretende verificar. Almeida Garrett é um dos expoentes do Romantismo português e, por este motivo, sua narrativa é repleta de arroubos, de exageros e de hipérboles. Ele se entrega de forma apaixonada para a viagem, descrevendo tudo aquilo que enxerga e enchendo de comentários e impressões, que oscilam entre a nostalgia do passado de glórias de Portugal e desejos de um futuro brilhante (ainda que com certa dose de melancolia, pois considera que a própria evolução do povo português e a deterioração progressiva do espírito que norteou os seus grandes heróis acaba vitimando tal desejo). Como afirma o professor Ivan Teixeira no seu ensaio, o livro propõe usar o aspecto sensorial como forma de explicar a existência e, com tal proposta, Almeida Garrett mergulha fundo em todas as sensações que cercam a sua trajetória.

Grande parte do fascínio de Viagens na minha terra se situa na possibilidade de retirar várias possibilidades de leitura de uma mesma obra. Cada camada de interpretação esconde outra em que o leitor pode se aprofundar. Pode-se ler o livro como um relato de viagem ou um diário, pois as descrições vívidas das paisagens conserva o viço mesmo depois de 167 anos. O didatismo das explicações sobre os meios de transporte usados, o tempo de deslocamento e a condição das estradas ou vias fluviais faz com que o leitor se sinta como se estivesse ao lado do autor, ouvindo os seus comentários quase como o fascinante monólogo de algum desconhecido que encontramos ao viajar. Neste sentido, Almeida Garrett funciona como um eficiente guia turístico, um Virgílio que nos conduz por um Portugal repleto de simbolismos, de mistérios, de mitologias próprias e de magias. Os nomes dos locais oscilam entre cidades conhecidas e outras que a passagem do tempo acabou engolfando, o que contribui ainda mais para o clima de estar andando em outro mundo.

Ao mesmo tempo, o livro pode ser lido como um interessante estudo sociológico da formação do povo português. No seu ufanismo crítico, Almeida Garrett não poupa ninguém: governantes, instituições, trabalhadores, artistas, apaixonados, a si próprio. Seus elogios e críticas são viscerais e intensos; em uma página, o autor pode elogiar uma decisão controversa do governo e, na seguinte, afirmar que a entrada em guerras somente por questões de vaidade destruiu a nata da juventude portuguesa. Enquanto louva o povo português, o escritor se ressente do avanço da mecanização do mundo, do desaparecimento dos sentimentos nobres e cavalheirescos, da mudança progressiva da paisagem em relação à sua infância. Ele percebe que o Portugal mítico fica cada vez mais no passado e receia que os portugueses acabem se distanciando demais dos ideais que constituíram o seu passado. Por ser um país relativamente novo com seus 513 anos de história, o Brasil ainda não passou por esta crise de identidade, e a obra de Almeida Garrett alerta que, um dia, será necessário relembrar a formação do país para traçar seu papel no futuro. Por meio de tal jogo literário, Viagens na minha terra pretende narrar a inocência de uma viagem realizada no tempo presente, mas faz constantes idas e vindas do passado para o futuro. O autor se alonga em digressões e reflexões que enriquecem o livro e transformam o leitor no companheiro de viagem de um homem opinativo, agitado e extremamente eloquente.

Além destas duas possibilidades de leitura, Almeida Garrett usa ao máximo a intertextualidade para explanar os seus pontos de vista. Assim como possui opiniões muito próprias sobre política, economia, ecologia (faz um capítulo insultando o governo pelo desmatamento de uma região de Portugal em benefício do progresso, algo que considera errado), relacionamentos humanos, o caráter e beleza das mulheres e outros, ele também comenta as obras de escritores que fazem parte da tradição literária universal. Não é raro que a reflexão sobre uma situação acabe encontrando paralelos em Camões, ou que o drama vivenciado por uma camponesa tenha sido explicado por Dante, ou que os acertos políticos para uma situação caberiam melhor em uma obra de Goethe. O autor faz novas leituras das obras do seu cânone pessoal e amplia a sua compreensão, transformando o livro em um mosaico de vozes de outros autores e de referências tão ocultas que o aproximam do hermetismo. As notas lançam muitos esclarecimentos para o leitor, mas, ainda assim, é forte a sensação de que a mensagem completa perdeu-se, em especial quando Almeida Garrett fala de acontecimentos mínimos da época. No entanto, muitas das suas reflexões são pertinentes e engraçadas: ao dividir o mundo que lhe cerca em Dom Quixotes e Sanchos Panças, detendo-se no capítulo em que Sancho Pança é escolhido como governador em Barataria, ele faz rir e pensar na correção da sua análise até os dias atuais.

Não suficiente, o autor realiza uma forte crítica literária sobre o próprio trabalho, sobre os estilos da época e sobre as obras de outros escritores. Em um procedimento que se aproxima da desconstrução (que sequer era sonhada na época), Almeida Garrett revela os segredos do Romantismo, mostrando os mecanismos que os autores usavam nas suas histórias para ludibriar o leitor. Como ele próprio se identifica como romântico, usará os mesmos truques que escancarou até o nível da exaustão, o que transforma Viagens na minha terra também em um livro irônico. Esta impressão é reforçada pela escolha do narrador intruso. Em alguns momentos ele se confunde com o autor, mas em outros ele se afasta e se dedica a comentar a história, tratando o autor como se fosse outra pessoa. Ao contrário de Almeida Garrett, o narrador intruso pede constantes desculpas ao leitor, aludindo ao cansaço da narrativa e ao seu pouco interesse prático. Enquanto Almeida Garrett apaixona-se pela forma de uma árvore, descrevendo-a com minúcias, ou sonha com o formato de uma janela vista da carruagem, imaginando-a como o local ideal para um poeta olhar a mulher amada, o narrador intruso se preocupa em fazer a história fluir apesar das distrações causadas pelo autor. Esta oposição entre narrador intruso e autor, tendo o leitor como juiz do embate, faz com que o livro nunca perca o seu interesse ou força narrativa.

No entanto, não é uma obra de fácil leitura. Ainda que facilitada pela inclusão das notas e de um alentado glossário, a linguagem mal dá conta de explicar o tortuoso raciocínio do narrador. Para dificultar ainda mais, cada pessoa que o autor encontra, em uma estalagem ou em algum pouso, tem a sua vida esmiuçada e, não raro, acaba contribuindo para a jornada contando alguma história, que é colocada no livro, criando uma multiplicidade de vozes e intenções. Mas o esforço da leitura acaba se tornando recompensador. A melhor forma de ler a obra é trafegar livremente pelas suas páginas; perder-se em Portugal, guiado por um autor falastrão e exagerado cujo maior objetivo é mostrar que a melhor de todas as viagens é aquela que um homem faz através da sua própria imaginação.

::: Viagens na minha terra :::
::: Almeida Garret :::
::: Ateliê Editorial, 2012, 368 páginas :::
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Gustavo Melo Czekster

Autor dos livros de contos Não há amanhã (2017) e O homem despedaçado (2011). Doutorando em Letras pela PUCRS.

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