Yoani deu as caras e finalmente sentou-se à mesa
Foi com alguma surpresa que recebi, ontem mesmo pela manhã, a notícia de que a famosa blogueira e dissidente cubana Yoani Sánchez iria participar de uma exibição do documentário Conexão Cuba-Honduras, do cineasta baiano Dado Galvão, com a presença de autoridades locais e também do Senador Suplicy. Fiquei bastante feliz com o fato de uma personalidade bem conhecida visitar essa terra tão fora do circuito principal que é Feira de Santana, portanto decidi conhecer de perto essa pessoa amada por uns e odiada por outros. Pessoalmente, não conheço a obra da cubana, decidi ir ouvir o que ela iria falar, ficar a par das histórias e relatos dessa mulher que causa tanto alvoroço.
Pois bem, o evento estava marcado para as 19 horas, mas cheguei às 18:30, de modo a escolher lugar. Estava até vazio no início. Ao passar da hora, mais gente ia chegando, inclusive os primeiros manifestante, umas pessoas com camisas que tinham estampadas os rostos de 5 cubanos que foram presos pelos EUA por espionagem; também haviam dizeres pedindo a liberdade deles, ou algo do tipo, não parei para observar com atenção. Deram-me dois folhetinhos com centenas de acusações à figura da blogueira cubana, tais como ela ser financiada pela CIA, uma agente infiltrada, uma traidora, que afinal em Cuba havia liberdade de expressão, sim, pois ela tinha um blog no ar e uma conta no Twitter. Não tive paciência de ler metade daquilo — impressão, aliás, feita a cores e bem editada, não era algo feito às pressas ou amadora.
O horário foi passando, era cerca de 19:30, mais e mais pessoas chegando com cartazes, camisas de partidos de esquerda, mas nada de Yoani. Não me recordo exatamente o horário, mas devia ser quase 20h quando comecei a ouvir gritos de protesto, cantigas e movimentação de gente. Alarme falso, não era a cubana ainda, não faço ideia do motivo daquela comoção. A imprensa filmava tudo. O barulho e a movimentação se intensificavam a qualquer movimento da guarda civil, responsável por fazer a segurança. Não deviam ser mais que 10 deles; os manifestantes já eram mais de 80% do auditório, que estava bastante cheio. Começaram a recolher as cadeiras. Será que afinal Yoani não viria?
Dirigi-me a um senhor muito simpático que segurava um cartaz de protesto, perguntei-lhe se haviam cancelado a exibição do filme. Ele não sabia. Perguntei se aquele pessoal fazendo barulho iria deixar que a cubana falasse, pois tinha graves receios de que não. O senho por sua vez garantiu-me que era um protesto pacífico. Outro, ao lado, disse-me que, como ela era cubana, iria deixar; se fosse americana, não. Começaram a falar do famigerado embargo dos EUA a Cuba, mas eu disse-lhes que não tinha mais que algumas semanas que eu tinha comprado um belo Romeo y Julieta, que a UE e o Canadá são os maiores parceiros comerciais de Cuba, que só os EUA mesmo que respeitavam o embargo. Uma senhora idosa havia entrado na conversa, com aquele discurso doutrinário de que eu nunca tinha ido para lá, que somente indo é que se poderia falar do local. Disse-lhe que já havia lido em vários jornais e sites sobre a situação da ilha. Com tom de voz irônico, um dos senhores perguntou: “E de onde são esses jornais?”. Devolvi-lhe a pergunta: “Então somente os jornais do governo é que são confiáveis?”. A velha paranoia de que o mundo todo está contra eles. Desconversaram e fizeram menção de seguir para outro lado, com direito a uma outra senhora dizer que eu só queria criar caso, que não levassem a sério. A senhora idosa ficava à minha beira, conversando alto, dando indiretas, dizendo que eu queria saber mais que todo mundo ali, mencionando minha provável condição social e coisas do tipo. Talvez por reparar que eu não estava dando a mínima, começou a usar de insultos, referindo que odiava gente branca, que nenhum branco presta etc. Ri-me sozinho e continuei distraído com meu telefone.
Finalmente os convidados haviam chegado. O primeiro foi o Senador Eduardo Suplicy, que também teve sua cota de cartazes com insultos, de traidor para baixo. Quando a cubana chegou, a horda furiosa avançou com gritos de “traíra”, “vendida”, dentre outros adjetivos pouco encantadores, e cantinhos que mais pareciam de torcida organizada. Pelo menos não partiram para a agressão. Foi preciso fazer um desvio por uma sala ao lado a fim de que os ânimos se acalmassem e fosse possível que a cubana se pronunciasse. É, nada de filme para ninguém, mas pelo menos ali estavam Yoani e Supla.
O senador veio à mesa, já cercada e ocupada pelos manifestantes, que, tais como as famosas ovelhas de A revolução dos bichos, não deixavam ninguém se pronunciar, mas, ao invés de “4 pernas bom, 2 pernas mau!”, entoavam cânticos de “viva Fidel”, “viva Cuba”. Sem pulinhos, mas alguns ensaiaram coreografias de dança. Finalmente, um que parecia ser dos líder de alguma organização pediu à horda que se controlasse, que deixassem que a blogueira fosse à mesa falar, pois ela deveria ser ouvida e debatida com respeito.
Não sei se eu seria capaz de enfrentar aquelas pessoas gritando feito loucas, mas Yoani resolveu dar as caras e finalmente sentou-se à mesa, obviamente sob vaia enorme e uma enxurrada de insultos. Trouxeram as cadeiras de volta. Começou o senador a fazer seu discurso, que durou por cerca de 15 minutos, onde estabeleceu, juntamente com um auto-proclamado moderador, o tal líder de uma organização, que poderiam fazer 3 perguntas de 3 minutos cada, e Yoani poderia responder cada uma em 10 minutos. O senador falou sobre sua carreira, que, como defensor do socialismo, apoiava a revolução cubana, e rejeitou as acusações de traição; depois alongou-se o possível, para mencionar que deplorava o embargo e que torcia pelo sucesso da revolução, assim como criticou a falta de respeito dos manifestantes que não deixavam que a cubana se expressasse.
Eis que a estrela da noite começou a falar, debaixo inicialmente de muitas vaias. Pena eu não ter conseguido absorver muito do que ela falou, o barulho era intenso e a acústica do prédio muito precária. Mas, em linhas gerais, ela falou da repressão do Estado, da importância das remessas do estrangeiro e mercado do negro para os cubanos conseguirem alimentos básicos, como leite e café.
As perguntas, se é que se pode chamar de perguntas, eram sempre sobre se ela era agente ou se foi financiada pela CIA, como era possível um país com elevados índices de educação e saúde ser assim tão criticado por ela. Confesso que fiquei irritado com o barulho em vários momentos e pedi às pessoas ao meu lado que me deixassem ouvir o que a mulher tinha a dizer. Numa dessas ocasiões, dirigi-me a um senhor que não parava de mandar que ela se calasse, e disse-lhe: “O senhor é um grande democrata. As pessoas aqui podem falar e ela não pode falar?”. Ele respondeu algo como: “Não, ela já falou muita mentira, já chega!”. Repliquei: “É, pelo senhor ela já devia estar numa prisão, recebendo uma bala na nuca, não é?”. O senhor, gesticulando com as mãos: “Isso mesmo, devia levar um tiro de AK47 na cabeça.” Não duvido que realmente ele quisesse isso. Já cansei de ver por aí maníacos planejando assassinatos numa revolução socialista no Brasil. Seria mais um.
O cineasta Dado Galvão falou menos de 5 minutos sobre o documentário que iria exibir; o resto do tempo, usou para responder uma pergunta sobre o financiamento da viagem de Yoani — foram quatro doações de cubanos que moravam no Brasil, nenhuma de qualquer governo ou instituição.
Infelizmente, não pude tirar uma foto com a blogueira, como havia planejado. A horda a circundava e a seu acompanhante, e os guardas faziam muito bem seu papel de afastá-los sem violência. No entanto, pude ter uma breve conversa com o Dado, que me falou do filme e que estava cansado desse disco arranhado dos comunistas, a mesma ladainha desde a década de 70.
Balanço do evento: considero positivo. Yoani respondia serena, sempre com um sorriso no rosto e com a maior desenvoltura, as perguntas e insinuações. Pude também ver ao vivo essa chusma dos radicais de esquerda, que parecem ter vindo diretamente de um livro de Orwell ou Rand.
Rafael Falcão
Graduado em Relações Internacionais na Universidade de Coimbra, mestrando em Administração Internacional no Instituto Universitário de Lisboa.
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