Yoani disse o que os ideólogos não queriam ouvir: “Vivo numa sociedade onde opinião é traição".
Yoani Sánchez chega ao Brasil sendo tão perseguida quanto é em sua Cuba natal. Não foi o povo brasileiro ou o governo (em sentido original) que promoveram o forrobodó: trata-se de um grupelho partidário defensor da ditadura cubana, muitas vezes pago para espalhar desinformação sobre a ativista.
A expressão “direitos humanos” tem um caráter curioso quando, ao invés de usada pela esquerda, é usada para analisá-la. Cesare Battisti, por exemplo, assassinou pessoas em nome de uma ditadura. É considerado um refugiado, um herói. Yoani Sánchez é perseguida por ser contrária ao regime que mais matou e violou os direitos humanos na América Latina no século XX. É tratada como uma bandida. Ou uma blogueira é tratada como bandida, e um assassino é tratado como escritor – vai do gosto por sangue de cada um.
As manifestações já vinham sendo preparadas pelo eixo de política externa que se torna cada vez mais forte na América Latina, e cujo poder passa a sorrateiramente incluir o Brasil com uma década de governo petista. Conforme denunciou a revista Veja, um dossiê foi preparado pela embaixada cubana e distribuído para peças cabeça que espalhariam difamações sobre a “farsa” Yoani Sánchez.
Os “críticos” de plantão apedrejaram a chamada de capa da revista (a crítica no Brasil dificilmente é feita abrindo algo para ler, e só depois criticando): “A conspiração cubano-petista contra a blogueira Yoani Sánchez”. Aparentemente, trataram como uma paranoia “ultraconservadora de direita” da revista (cujo único “direitismo” é admitir que o mercado funciona e que o Muro de Berlim caiu). Excelente noticia! Pensava-se por aqui que Lula e Fidel fossem amigos, tirassem fotos juntos, que a base de apoio do PT incluísse cubanófilos, que Fidel até tivesse vindo ao Brasil para a posse de Lula. Felizmente, fomos alertados por tais estudiosos que tudo isso foi delírio paranoico da nossa cabeça pequeno-burguesa.
O teste do caixote
Confirmando o prognóstico da revista, Yoani foi recebida sob vaias de militantes partidários da União da Juventude Rebelião, União da Juventude Socialista (UJS) e a Associação José Marti da Bahia já no aeroporto.
Com uma civilidade que raríssimas pessoas teriam, Yoani demonstrou educação e elegância formidáveis, em uma aula de democracia direta no estômago. Ao invés de se acuar diante de pessoas de comportamento (e ideologia) muito próximos do fascismo que tanto criticam, obtemperou fascistas com democracia: “Foi um banho de democracia e pluralidade, estou muito feliz e queria que em meu país pudéssemos expressar opiniões e propostas diferentes com esta liberdade.”
Yoani fez o que essa turma nunca fez e nunca fará: defendeu a liberdade do próximo. Defender a própria liberdade é pleonástico: até Mussolini ou Pol Pot o fizeram. Democrático mesmo é dizer: “É isso aí, você tem o direito de protestar contra mim. E prefiro que esse direito exista do que só eu poder falar.”
É uma situação perigosíssima quando entidades ligadas a um partido (ainda mais num sistema político em que recebem dinheiro do fundo partidário, ou seja, agem assim com dinheiro tomado mesmo de quem não votaria nessas pessoas nem contra o Cramunhão Ele Próprio) impedem que um filme seja exibido, um livro lançado, um blog lido. Foi o que fizeram esses militantes, impedindo a exibição de um documentário sobre a liberdade de expressão em Cuba e Honduras, planejado para ser exibido no Museu Parque do Saber, em Feira de Santana (BA). É inconcebível imaginar que até os caipirões do Tea Party tomem uma atitude parecida. Para tais militantes, já agindo como militares, virou lícito. Foi um dia na história brasileira em que a democracia foi seriamente ameaçada como só se viu na ditadura.
Yoani disse o que esses ideólogos não queriam ouvir (e impedir que quem quisesse ouvir ouvisse): “Vivo numa sociedade onde opinião é traição. Um governo que censura a literatura, grampeia linhas telefônicas. Vejo o conflito entre o governo e o povo.”
É estranho que um governo precise governar contra o povo e ainda ser considerado redentor por pessoas que não viveriam 30 dias como um cubano vive. Apenas considerando que você próprio é “o povo”, e não apenas você próprio em um cargo político, é que se pode dizer que ter alguma opinião livre contra você é “traição”. É o que os Castro fazem, e a mentira é comprada por essa galera impulsiva e violenta: Fidel fez de tudo para se confundir com Cuba. É uma mentira – ser a favor de Cuba é ser contra Fidel. Traição é defender uma ditadura que matou 73 mil pessoas em 50 anos, até hoje sem eleições. Pinochet matou pouco mais da metade. Os milicos brasileiros não passaram muito de 500 pessoas.
Yoani demonstra assim que o Brasil passou (por enquanto) no teste do caixote. É um teste simples que serve para averiguar se um país é livre ou não. Apenas tome um caixote, vá até uma praça pública bem movimentada, suba no caixote e fale mal do governo por 15 minutos. Se você não for preso, o país é livre.
A intelligentsia esquerdista brasileira agiu como os stalinistas que pouco disfarçam que são. Era costume dizer na União Soviética que nos EUA você poderia ir na frente da Casa Branca e gritar “Down with Reagan!” e ninguém te prenderia. Mas os ditadores socialistas mostraram que a população interpretava mal o bem que eles próprios faziam ao mundo, comentando que você também poderia ir na frente do Kremlin e gritar “Down with Reagan!” que também não seria preso.
A própria Yoani notou essa diferença no modo de pensar (e falar abertamente) do brasileiro: “O cubano está com máscara, sempre o amigo está te ouvindo para delatar.” É o que mostra Orlando Figes, em Sussurros: as pessoas presas num regime socialista são obrigadas a sussurrar para poderem falar de política. Numa ditadura com justificativa “social”, sempre se pode acusar o outro de “traição” contra o povo, e, assim, um percentual altíssimo do tal “povo” vai preso. Além de se justificar o fracasso em melhorar a vida do povo (“o país está cheio de espiões, agentes do fascismo e traidores”), ainda é um modo bizarro de subir nos escalões do Estado policial e ter uma vida melhor, tomando os bens de quem foi pego “espionando”.
Esse método de pensar orwelliano é típico dessa camorra. O encontro de Yoani (que, afinal, não teve o documentário exibido) foi seguido por discurso justamente dos fascistóides que a injuriaram (coisa impensável em Cuba, logo após um dos soníferos discursos de Fidel).
Depois de repapagaiar aquela ladainha sobre “avanços sociais” cubanos (os dados são do próprio regime, algo como utilizar a propaganda eleitoral do Maluf para falar do seu sistema de saúde, o PAS, e usar os dados como exemplo de gestão), os militantes dizem que Yoani não faz críticas suficientes contra o bloqueio econômico americano. Estranho: Yoani faz. O tempo todo. Mas essa “dialética” falsa é típica de ditadores contrários ao livre exercício de pensamento, ao cuidado na hora de tirar conclusões de fatos (ao invés de usar ideologias como criadoras de fatos).
Se a ilha tem avanços sociais, parece não precisar se importar com o tal bloqueio, porque é uma maravilha. Se alguém diz que isso é meio falso, então é tudo culpa do bloqueio. Das duas formas, o sistema político atual em Cuba sai ganhando (e Cuba sai perdendo). Está tudo sempre justificado. Cara eu ganho, coroa você perde.
O próprio bloqueio econômico é, em si, uma farsa. Cuba comercia principalmente com a América. E o bloqueio, na verdade, valeria exclusivamente… para a América. Ademais, se o socialismo é necessário para evitar o “imperialismo” que é o comércio livre, por que querem comércio? Ele não é ruim? Ele não é contrarrevolucionário? Ele não é a causa da miséria brasileira? Não deve ser tudo estatal, e as coisas privadas são terríveis? A teoria esquerdista (sua filosofia, sua sociologia, sua psicologia, até sua linguística) não é uma explicação da realidade: é uma busca por desculpas.
A “mercenária”
“Você não consegue comida chinesa para viagem na
China, e charutos cubanos são racionados em Cuba.
Isso é tudo o que você precisa saber sobre comunismo.”
P. J. O’Rourke
A duplicidade de pensamento é séria em Cuba, pois o país é miserável, mas tem subsídios para casas e para apenas o básico da alimentação. Um restaurante pequeno brasileiro tem mais bife do que o consumido em um ano em Havana. Mas o arroz com feijão é fácil de conseguir – e apenas ele.
Uma das faixas mostradas no aeroporto contra Yoani despejava a mesma logorreia que se encontra no aeroporto José Marti: “Segundo a Unicef, existem 146 milhões de crianças subnutridas no mundo. Nenhuma delas é cubana.” É mesmo? De toda forma, parece que obesidade também não é lá um problema muito sério em Cuba, e é preciso ser muito ingênuo (ou muito socialista, o que dá no mesmo) para acreditar que é graças à medicina cubana (mortífera a níveis assustadores). Será que essas pessoas já se perguntaram quantas crianças em regimes de economia realmente livre são subnutridas? Quantas crianças subnutridas são suíças? Australianas? Canadenses? Neo-zelandesas? Sul-coreanas? Monegasca?
Na verdade, quem escreve uma pantomima dessas sabe muito bem que a estatização da economia gera miséria (não é preciso ler a história dos 35 milhões de mortos na União Soviética, do Holodomor ou de como Mao Zedong levou ao abate 75 milhões de pessoas reduzidas a comer cascas de árvore antes de morrerem de fome). Se o próprio Stalin sabia que a economia livre do Estado é melhor, não é Fidel que vi deixar de saber.
Esses politizados querem poder. E, concluindo obviamente que numa economia livre não terão poder sobre outras pessoas (cf. a melhor análise já feita sobre o fenômeno, O Poder, de Bertrand de Jouvenel), precisam pelo menos vender alguma curta vantagem para jurarem que estão fazendo o bem ao ter poder de censura sobre os outros. Daí as migalhas: arroz, feijão e uma pastinha para acompanhar. O filé mignon fica para a elite de poderosos. Nem é preciso ler o melhor relato já feito sobre o famélico desastre econômico vermelho (Socialismo, do melhor economista do mundo, Ludwig von Mises) para perceber. Ou você conhece quem queira implantar a Revolução e, no dia seguinte, voltar a viver como operário, por que não tá nem aí para poder político?
Disso há uma consequência inapelável. É preciso doutrinar os futuros mandados na pobreza. Ninguém aceitaria uma revolução em que você perde o que tinha (e, por isso, é sempre preciso apelar para o terror ou para alguma ideologia insana para fazer revoluções – usualmente, ambos). É preciso enfiar em suas cabeças de que consumir é ruim – ao mesmo tempo em que se promete “tirá-las da pobreza” (ou seja, consumir mais, mas sem usar essa palavra horrorosa).
Isso é feito em plano internacional. Circula na mídia paga a soldo pelo partido no poder no Brasil ilações sobre Yoani. Na reportagem de Veja, comenta-se que o embaixador cubano pretendia difamá-la usando “jornalistas favoráveis ao regime”. Ditaduras têm dessas – “jornalistas favoráveis”.
Salim Lamrani (que vocês já conheceram aqui) afirma que Yoani gasta por mês no Twitter o equivalente a dois anos de salários mínimos cubanos. Ele teve também um ataque de pelancas graças aos prêmios internacionais que Yoani recebeu (ela não poderia receber prêmios em dinheiro?) e o salário que recebe como correspondente do El País, além do Estadão e tantos outros que pagariam muito mais para tê-la entre seus colunistas.
Hummm. Quantos salários mínimos cubanos ganha o sr. Salim Lamrani? O salário mínimo cubano é de cerca de 20 dólares (sic). Uma corrida de táxi em São Paulo dificilmente sai por menos do que o que ganha um cubano. E por que Yoani, hoje figura internacional, não poderia ganhar graças a seus méritos – o que inclui ter simplesmente o blog mais influente da raça humana?
O salário do El País tão choramingado, por exemplo, é de cerca de US$ 6 mil – não uma fortuna, e na verdade não muito mais do que recebe financiado pelo pagador de impostos brasileiro Ricardo Poppi Martins, o subordinado (sim, fala-se do salário do subordinado) do chefe da Secretaria-Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, que estava em reunião na embaixada para soltar o dossiê contra Yoani. Onde está o dossiê contra Poppi? Será que as famílias dos ativistas de aeroporto ganham muito menos do que um salário do El País, mesmo que não sejam colunistas disputadas por qualquer jornal do mundo contrário a ditaduras?
Yoani, portanto, é considerada “mercenária”. Ora, é claro que Yoani passou a receber bem. Aliás, se eu puder pagar alguma coisa para ela, é só avisar. Pago de bom grado. É isso que se chama economia livre – paga-se para quem se queira, trabalha-se para quem se queira. Até a acusação de “agente da CIA” ganha contornos humorísticos (porém, reveladores do pensamento da esquerda) se a aceitarmos: será que Yoani foi escolhida pela CIA para divulgar informações anti-Castro por, sei lá, seu cabelo? Ou será que peitou um regime que censura a internet e, conseguindo acessar de hotéis onde a internet é livre apenas para turistas (o que exige uma coragem e uma economia brutal antes de se tornar conhecida), ao custo de quase metade do seu salário por meia hora, acabou se tornando conhecida?
Eu acharia que finalmente a CIA gastou o dinheiro do pagador de impostos americano de forma correta depois de uma história de fracassos, se isso for verdade. O que vem primeiro: falar mal de Castro ou receber dinheiro da CIA? Antes passavam décadas até descobrirem agentes da CIA. Hoje qualquer leitor de Paulo Henrique Amorim conhece seus nomes.
Aliás, isso é motivo para xingar Yoani, ou para xingar a imoralidade que os Castro pagam aos cubanos pelo privilégio de morar numa prisão política cercada de tubarões?
A acusação de “mercenária” ultrapassa as raias do risível. Não dá para entender por que ficar em Cuba e enfrentar uma ditadura, pensando no seu povo e na salvação de sua cultura, é ser “mercenário”, mas simplesmente fugir do país e deixar o povo e a cultura às mínguas (como Yoani tem toda a capacidade de fazer) seria menos egoísta.
Claro, para a esquerda, isso é motivo de crítica. Como disse o filósofo Francisco Razzo, se Yoani invadisse uma igreja com as tetas de fora para velhinhas rezando, estaria lutando por liberdade – mas, como só está escrevendo contra o regime dos Castro, faz-se dela apenas uma marionete da CIA e do capitalismo imperialista norte-americano. Ainda vale citar Roberto Rachewsky: o legal é ver que os socialistas temem uma pessoa que deve ter medo de baratas, mas não tem de canalhas.
Nenhuma contradição pode ser melhor do que a explicação final (com fotos no dossiê) dessa galera para a “farsa” Yoani, comprada por 11 em cada 10 de seus críticos mocorongos: “Para o governo de Raúl Castro, fotos comprovariam que Sanchez teria se rendido ao dinheiro porque bebe cerveja, come banana e vai à praia.”
Minha nossa! Que vida luxuosa, essa de agente da CIA. Enquanto isso, nós proletários aqui ferrados sendo explorados sem praia e sem banana, e, pior ainda, sem cerveja Sol.
É, amigos, só mesmo o socialismo para nos salvar dessa agente do imperialismo norte-americano.
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