Haruki Murakami propõe, quem sabe, uma revisão das regras necessárias para se construir uma boa obra, subvertendo a concepção criativa já centenária de Tchekhov.
“Se você diz no primeiro capítulo que um rifle está pendurado na parede, no segundo ou terceiro capítulos ele deve absolutamente ser disparado. Se não irá ser usado, não deveria estar lá.” A frase de Anton Tchekhov, escritor e dramaturgo russo, deu origem ao princípio conhecido como arma de Tchekhov, segundo o qual não se deve inserir nenhum elemento na narrativa que não seja absolutamente relevante para a história. E ao longo de todo o terceiro volume de 1Q84 somos confrontados com essa máxima, colocada como pano de fundo que assume ocasionalmente os holofotes para nos lembrar de uma catástrofe que parece iminente, mas que nunca chega. A pergunta que se faz é: quando Murakami puxará o gatilho?
Já em 2009, em entrevista ao The Guardian, Haruki Murakami afirmou que seu próximo livro seria sobre um homem e uma mulher em busca um do outro, e que faria dessa “simples história a mais longa e complicada possível.” Ou seja, a arma de Tchekhov teria muita munição para descarregar, pois a forma que o ícone literário japonês encontrou para transformar 1Q84 em uma obra de proporções monumentais foi agregando muitos elementos à narrativa, por vezes aparentemente estranhos à história principal. Com a chegada do livro 3 ao Brasil e a trilogia finalmente completa, chega-se ao total de quase 1300 páginas. O objetivo inicial parece ter sido concluído com sucesso e as vendas falam por si só. Mas há qualidade na ambição por excessos de 1Q84?
A resposta é sim, há qualidade – e muita. Há uma passagem que resume a intenção de Murakami em dialogar com Tchekhov, a quem admira de longa data. A personagem Aomame carrega uma pistola para a própria proteção e diz que, afinal, pode ser que nunca a use. Segue-se a resposta de Tamaru:
Não importa. O fato de você conseguir superar os obstáculos sem ter de usá-las é ótimo. Estamos bem perto do final do século XX. Hoje, as coisas são muito diferentes da época de Tchekhov. Não há mais carruagens nas ruas nem mulheres de espartilho. O mundo conseguiu de algum modo sobreviver ao nazismo, à bomba atômica e à música moderna. Durante esse período ocorreu uma mudança radical no modo de escrever romances. Portanto, não se preocupe.
É isso: nada é como deveria ser na obra de Haruki Murakami. Gêneros clássicos de literatura como a ficção científica e os thrillers de mistério são entretecidos pelo pop, o surreal e o bizarro, incomuns há um século. A economia narrativa proposta por Tchekhov ainda encontra uma sobrevida na escrita cinematográfica, mas a literatura já não se ergue sobre os mesmos pilares. Murakami propõe, quem sabe, uma revisão das regras necessárias para se construir uma boa obra, subvertendo a concepção criativa já centenária de Tchekhov.
O processo de escrita de 1Q84 se deu como outros tantos livros do autor: um brainstorm contínuo onde não se vê solução nem conexão entre os fatos. Apenas ao término de alguns capítulos Murakami começa a delinear um contorno para a matéria amorfa que parece extrair diretamente do próprio inconsciente. São conteúdos que se repetem com frequência em seus livros – a personagem que desaparece sem deixar pistas; animais, especialmente gatos, sobrenaturais; o retrato aversivo da vida familiar; o erotismo; a solidão intransponível dos protagonistas, claustrofóbica e opressora como um muro. A esses elementos são acrescentados outros tantos, sem medo, de forma a criar mais perguntas do que respostas. É a dúvida que inflama a ação de 1Q84, que eleva suas possibilidades exponencialmente. É ela a responsável por fazer as páginas do romance virarem uma após a outra, distantes da realidade apenas o suficiente para causarem estranheza, mas sem se precipitar nos reinos da ficção científica, como tem sido frequentemente categorizado.
1Q84 é, ao invés disso, uma espécie de realidade lado B, desconfortável e improvável, mas familiar e próxima. As duas luas, as crisálidas de ar, o Povo Pequenino, entre outras bizarrices, são artifícios para refletir sobre problemas do nosso mundo, alguns ao alcance de um controle remoto ou menos – solidão, violência doméstica, estupro, pedofilia, extremismo religioso; problemas que fazem parte das políticas públicas de qualquer país sério. Murakami não é um autor abertamente politizado, mas se aproxima de autores mais realistas quando coloca em primeiro plano os suplícios do cidadão comum, aqueles que atingem o sujeito em sua individualidade e subjetividade.
Um dos novos elementos a surgirem no livro 3 foi a inclusão de um terceiro narrador que se une aos dois anteriores, Tengo e Aomame. Trata-se de Ushikawa, personagem retirado de The Wind-Up Bird Chronicle, romance publicado por Murakami em três volumes entre 1994 e 1995 e que também se passa em 1984. Ele é um detetive particular de cabeça disforme, contratado por dois rapazes para investigar Aomame, agora uma criminosa fugitiva após os eventos que encerraram o livro anterior. Toda a ação passa a girar em torno de seu esconderijo, a busca de Ushikawa e as resoluções particulares de Tengo quanto a sua vida pessoal, que prometem desestabilizá-lo e conduzi-lo ainda mais longe de sua zona de conforto.
1Q84 é um livro de ação lenta e leitura rápida, apesar do número de páginas. Isso porque o tom de mistério típico dos thrillers policiais jamais abandona o texto, e o ocasional distanciamento não dura mais do que alguns parágrafos, frequentemente terminando os capítulos em um gancho. O leitor é mantido em cativeiro durante a leitura, incapaz de largar o livro enquanto não terminar. Ainda assim, talvez a opção mais segura tivesse sido continuar com dois narradores. A inclusão de Ushikawa faz com que a obra se fragmente ainda mais, e a história que já era lenta perde ainda mais velocidade quando se aproxima do fim. Ao terminar o capítulo de uma personagem o leitor se vê obrigado a ler os longos capítulos dos outros dois para só então, finalmente, retomar a história de onde havia parado. Algumas dezenas de páginas habitam esse intervalo. É mérito do autor que, com tanta lentidão, consiga prender o leitor por tanto tempo.
Parece haver um consenso em relação à última parte da trilogia 1Q84. É um bom desfecho, mas não tão bom quanto os dois excelentes volumes anteriores. A história de amor criada por Murakami não clamava, é verdade, por um final súbito, mas isso não anula a possibilidade de ter contado a mesma história em menos páginas neste último volume. O leitor mais ansioso e ávido por respostas ficará certamente a ver navios. Mas é a única ressalva. Murakami parece estar satisfeito com o resultado de sua empresa. A “simples história” é, de fato, longuíssima e complexa, conforme projeções iniciais. E é impossível não ficar satisfeito ao encerrar a leitura e se deparar com o arsenal de Murakami ainda engatilhado e, diferente de Tchekhov, sem disparos.
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Wilson Costa