Atualidade

Líderes eleitos não são intocáveis

por Carlos Orsi (22/02/2014)

A esquerda brasileira não tinha dificuldades em distinguir entre vitória nas urnas e unção divina

Em dezembro de 1998, logo após a vitória esmagadora em primeiro turno de Fernando Henrique Cardoso na eleição presidencial, setores do PT lançaram o slogan “Fora FHC”. Em 1999, Tarso Genro publicava artigo na Folha de S. Paulo pedindo a renúncia do presidente. No mesmo ano, Milton Temer, deputado federal do Partido dos Trabalhadores, pedia o impeachment do sociólogo-presidente. E ainda em 1999 houve uma tentativa de convocar um grande movimento de massa – a “Marcha dos 100 mil” – para pedir o fim do governo do PSDB.

Responda rápido: Tarso e Temer eram golpistas inimigos da democracia? A Folha, ao dar espaço para a proposta do então ex-prefeito de Porto Alegre, alinhava-se a um infame PIG antitucano? Os participantes da marcha eram coxinhas fascistas manipulados pela mídia, a soldo de potências estrangeiras?

Recuando um pouco mais na história: teria sido Fernando Collor de Mello vítima de golpistas antidemocráticos? Os jornais que publicavam denúncias contra seu governo eram parte de uma torpe conspiração? Aliás, para que ficar só no Brasil – a queda de Richard Nixon foi um golpe de Estado?

O fato é que parece ter havido uma época, hoje perdida nas areias do tempo, em que a esquerda brasileira não tinha dificuldades em distinguir entre vitória nas urnas e unção divina. Ou, em que se reconhecia que há circunstâncias em que é possível e legítimo remover um governante, mesmo um governante legalmente eleito, do poder sem que isso implique a morte da democracia ou a ação sub-reptícia da CIA, da Monsanto, do Império Romulano ou dos Lordes de Sith.

Esse ponto específico – de que uma das razões se ser da democracia moderna é a criação de regras para a solução pacífica de conflitos, que uma das soluções possíveis é a remoção do governante antes do fim do mandato, que mais importante que a prerrogativa pessoal de exercício do poder é a estabilidade das instituições e o respeito às leis – parece ter se apagado de corações e mentes com a chegada de Luiz Inácio Lula da Silva ao poder. Como dizem os gringos: go figure.

A facilidade com que a palavra “golpe” é invocada, em tom histérico, cada vez que surge algum movimento mais forte de contestação ao governo brasileiro ou a um de seus hermanos internacionais só é superada pela multiplicação leviana do epíteto “fascista”. Não falta muito para os dois vocábulos acabarem esvaziados de todo significado.

Golpes de verdade existem, é claro. O Brasil vai assistir em breve à passagem do cinquentenário de nossa iteração mais recente. Mas um pouco de precisão terminológica é importante: o trabalho clássico sobre o tema, Coup d’État: A Practical Handbook, de Edward Luttwak, deixa claro que o “golpe” clássico sempre nasce dentro do Estado.

Da elevação de Augusto a imperador, passando pela transformação de Luís Napoleão, de presidente em imperador da França e, por fim, à nossa quartelada de 1º de abril, golpes envolvem uma reorganização do poder por parte de quem já o detém, ao menos em parte, esmagando o espírito das leis ao mesmo tempo em que preserva a aparência externa de legalidade. Golpes geralmente envolvem a ação, ou ao menos a anuência, das Forças Armadas. Como o caso de Luís Napoleão mostra, a perpetuação de um presidente eleito no poder pode ser um golpe. Como Collor e Nixon ilustram, a saída de um presidente eleito do poder pode ser um simples sinal de democracia funcionando.

Existe um conto obscuro de ficção científica, chamado “2066: Dia de Eleição”, de autoria do americano Michael Shaara, publicado pela primeira vez em 1956. Nessa história, a eleição para presidente dos Estados Unidos é decidida por um único voto, dado por um computador – mas qualquer cidadão pode se candidatar, bastando para isso submeter-se aos testes aplicados pela máquina. O fato de a máquina eleitora ser perfeitamente imparcial e à prova de hackers era apresentado como o sustentáculo da democracia dos Estados Unidos do futuro.

Li essa história, pela primeira vez, ainda nos estertores da ditadura 64-85, na ressaca do movimento pelas Diretas, e até hoje me lembro de como a ideia me deixou chocado: afinal, democracia não é o sistema em que o povo escolhe seus líderes? Shaara não entra nessa discussão, mas define democracia da seguinte forma: o sistema onde qualquer um tem uma oportunidade justa de disputar o poder, ser distinção de raça, credo, gênero e – já que o computador é imune à publicidade, o que torna os gastos de campanha inúteis – condição financeira.

O que o conto de Shaara ilustra é o ponto talvez mais difícil de os democratas de ocasião – aqueles que se servem da democracia liberal por conveniência, mas sem ter real apreço por ela – entenderem, ou respeitarem: que direitos individuais são mais importantes que a vontade da massa (essa sim, em permanente flerte com o fascismo), e que a lei está acima dos homens – não importa o quanto eles sejam carismáticos.

Carlos Orsi

Jornalista e escritor, com mais de dez livros publicados. Mantém o blog carlosorsi.blogspot.com.