Ainda que eu andasse pelo vale das sombras

por Sérgio Tavares (04/02/2014)

Rogério Pereira lança um olhar impiedoso sobre a vida de uma família de retirantes

"Na escuridão", de Rogério Pereira. (Cosac Naify, 2013, 128 páginas)

“Na escuridão, amanhã”, de Rogério Pereira. (Cosac Naify, 2013, 128 páginas)

É comum se conferir a um romance qualidade insuperável pelo fato de transportar o leitor para os limites internos da trama e lá trancafiá-lo até o dobrar da última página. Não deixa de ser uma boa verdade, mas não a verdade absoluta. Há romances que são radiosos em razão de, no curso da leitura, criar pontes para universos contidos em outras obras, resgatando do hipocampo de quem lê fragmentos latentes, passagens marcantes, personagens e cenários ímpares, o espírito transcendente de um clássico universal.

De modo que é impossível percorrer o domínio conformado por Rogério Pereira, em Na escuridão, amanhã, sem cruzar umas dessas pontes. E não há, nessa afirmação, qualquer ideia de demérito. Muito pelo contrário. Em sua primeira publicação, o escritor catarinense, editor do periódico Rascunho e cronista do site Vida Breve, dialoga incessantemente com autores e títulos magníficos sem comprometer o verniz que faz do seu livro um dos debutes mais originais, poderosos e desconcertantes da literatura contemporânea brasileira. Estão ali o despertencimento nato do êxodo de Steinbeck, em As vinhas da ira; a lúgubre densidade poética faulkneriana, de Enquanto agonizo; a inexorável relação entre religiosidade e decadência de Cornélio Penna, em A menina morta; a repulsão à figura tirânica do pai, de Lavoura arcaica; e a impiedade divina que irradia certas passagens bíblicas.

Há uma fuga na primeira frase e essa fúria por expulsão varrerá as páginas até o final. A história acompanha a saga de uma família de retirantes que abandona o meio rural rumo ao obscuro que a recepciona na cidade grande chamada de C. É uma transferência levada pelo pai, a contragosto emudecido da esposa e dos filhos, desencadeando um estranhamento imediato e intratável que, à medida que a promessa de boa-venturança se revela malograda, faz com que criem uma réplica do ambiente miserável que deixaram para trás. Em C., voltam a sovar a terra, rodeiam-se de bestas, pois só assim conseguem se enxergar adequados àquele novo território. Ocorre que a verdadeira razão da ruína não provém da crueza do mundo exterior, mas da corrupção que irrompe do cerne das relações pessoais, da sufocante incomunicabilidade que encoberta abusos de distintas naturezas e condutas imperdoáveis. Os traumas gestados nesse período de transição vão amarrar os destinos desses personagens a uma fieira de autoaversões e mortes.

A partir desse argumento, Pereira estabelece dois planos narrativos para costurar o romance de maneira densa, laivamente poética e desconstruída de linearidade. O primeiro deles fica a cargo das cartas, a maioria escrita por um dos filhos, expatriado no que parece um campo de guerra, e endereçada ao pai. O outro segue o relato transitivo da vida familiar, deslocando-se desmedidamente pelo tempo, onde a voz mais atuante é a do outro filho que remonta cenas que compreendem o período da infância à adolescência, o estágio em que o desejo carnal enfurece o corpo. No entanto, há breves incidências de outras vozes, aparições exangues, e os planos se intercalam, cambiando a posição daquele que vê para a de visto. O único silêncio cabe ao pai. Exatamente aquele que, em opressivo mutismo, provoca o desmoronamento, agindo com perversidade e perversão contra as próprias crias, invocando uma galeria pessoal de demônios. É dele que todos querem escapar, ou tentam escapar, cavando saídas estéreis e sumárias.

A mãe se refugia na religiosidade, na fé cega a um Deus inclemente e intransitivo que acredita espreitar a vida deles, embora seja uma presença mais assombrosa que protetora. A crença, de fato, engorda a negligência, a inércia frente aos filhos que embrutecem no correr da puberdade, soltos pelo matagal à caça de passarinhos para expor as vísceras, de quem caiba saciar seus primeiros ímpetos sexuais, e da filha que morre precocemente, em decorrência da inocência destroçada. Fato é que a mãe também é uma vítima. A exemplo de Jó, eles são severamente punidos, mas não por um deus incorpóreo e sim por um patriarca autoritário, de ações desbragadas, que sega todos os laços fraternais, tornando-os vozes distantes a gritar contra o vazio. Porém, apesar da repulsa desmedida e do ódio que carregam desse homem-fera, é a maldade dele que levarão como herança, um câncer incrustado no tronco familiar.

Com uma prosa oblíqua, Pereira desnorteia o leitor, sobrepesando poesia e intensidade num livro amargo e sombrio. O uso excessivo de metáforas funciona bem no intuito de desumanizar seus personagens, colocando-os à margem dos valores morais e da resiliência; condição visualmente reforçada pelo projeto gráfico que comprime o texto no pé da página, de modo que o maciço branco produz uma ideia de esmagamento. Talvez o termo melhor seja asfixia. Tentar respirar, reagir contra um passado que confina, que tem o mesmo efeito anulatório da morte. Invocando o filósofo latino Sêneca: “Perdemos a infância, depois a adolescência, depois a juventude. Todo o tempo que passou até ontem morreu. O próprio dia que estamos vivendo hoje nós o dividimos com a morte”. A infância é um período que, quando corrompido, toma a vida por extensão. Nunca vai embora.

Sérgio Tavares

Jornalista e escritor, autor de Queda da própria altura (2012), finalista do 2º Prêmio Brasília de Literatura, e Cavala (2010), vencedor do Prêmio Sesc.

Avatar
Colabore com um Pix para:
[email protected]