Pedras da dignidade

Anos após o Maracanazo, Obdulio Varela declarou com tristeza que “o futebol virou um negócio onde não importa a dignidade do homem”.

Obdulio-VarelaEm uma manhã ensolarada de primavera, operários da construção civil trabalhavam nas ruas do bairro Paso Molino, em Montevidéu. Entre eles, um moço de ombros largos, pele morena e veias salientes, ajudava a descarregar lajes de um caminhão. Suas mãos rudes, sem luvas, pareciam insensíveis ao receber a carga pesada, a poeira branca grudando no suor do corpo enquanto a carreta ia sendo esvaziada. Depois, empunhando a espátula com paciência, o rapaz preenchia os espaços da calçada com cimento fresco. Sua atitude tinha algo de misterioso, típico das forças da natureza. Como se fosse uma aranha tecendo a sua teia, ele misturava a massa cinzenta lentamente, sempre em silêncio. As pessoas, hipnotizadas pela rotina frenética de todos os dias, caminhavam apressadas ao redor da obra. Entretanto, elas sabiam quem era aquele pedreiro: Obdulio Varela.

Quando eclodiu a greve dos jogadores uruguaios em 1948, Obdulio não teve outra alternativa a não ser voltar à labuta que desempenhava antes de defender as cores do Wanderers e, depois, do Peñarol. A sua grande virtude dentro das quatro linhas era o caráter, liderando o time com garra, carisma e determinação. Esse temperamento forte veio à tona também na hora de lutar pelas causas da sua classe de futebolista profissional, que vinha sendo tratada de forma fria e ignóbil no país vizinho. Sofrendo na carne a injusta situação, Obdulio se viu forçado a encarnar o caudilho rebelde dos gramados outra vez. A única diferença é que agora os inimigos eram os próprios dirigentes. A queda de braço durou alguns meses, mas finalmente as demandas dos jogadores foram atendidas.

O tempo passou, até que, no dia 16 de julho de 1950, o “Negro Jefe” teve pela frente um outro desafio. Vestindo o uniforme do Uruguai, camisa celeste e calções e meias pretas, Obdulio troca flâmulas com Augusto, o capitão da seleção brasileira. Nas tribunas do Maracanã, a magnífica plateia de duzentas mil pessoas não espera outro resultado que não seja a vitória e a conquista da IV Copa do Mundo de Futebol. Antes de entrar em campo, Obdulio havia alertado seus companheiros para que não olhassem para as arquibancadas, evitando a visão apavorante do estádio lotado. Assim como Perseu evitou os olhos da Medusa na mitologia grega, se os uruguaios mirassem apenas no terreno de jogo, tudo ficaria bem. Contudo, com a bola rolando, o Brasil abre o marcador com um gol de Friaça, já na segunda etapa do prélio. O Maracanã quase veio abaixo, ensandecido pela ilusão da vitória.

Nesse instante crítico para a seleção uruguaia, Obdulio fez valer toda a sua experiência e sabedoria. Calmamente, o centromédio caminhou até o bandeirinha, reclamando de um suposto impedimento não marcado no lance. A catimba de Obdulio acabou esfriando os ânimos do time treinado por Flávio Costa. A partir daí, nossos craques, como Zizinho, Ademir e Jair Rosa Pinto, talvez assustados pelo peso de um triunfo iminente e avassalador, acabaram entregando inconscientemente as rédeas do jogo ao inimigo. A voz de Obdulio passou a ser ouvida como o estrondo de um trovão, empurrando seus asseclas para o ataque sem desistir jamais. Após empatar através de Schiaffino, as hostes orientais dão volta no placar graças a uma escapada do ponteiro Ghiggia. Desferindo um chute rasteiro, despretensioso até, mas forte o suficiente para enganar Barbosa, o formidável carrasco silencia o Maracanã, descortinando a tragédia da derrota.

Nos minutos finais da partida o Brasil agoniza sobre a relva, lutando bravamente contra o seu destino cruel e inescapável. Os ponteiros do relógio giram implacáveis e os corações da turba batem em descompasso, até que o apito enérgico do juiz sepulta definitivamente toda e qualquer esperança de reação. As mãos ásperas de Obdulio, que tantas vezes haviam carregado e dilapidado pedras brutas, agora seguram uma jóia delicada e valiosa, a Taça Jules Rimet, feita de mármore e ouro puro. O crepúsculo do triste domingo se abate sobre o país, castigando os brasileiros como um pesadelo terrível e real.

Entre os vencedores, por sua vez, não houve um lauto e apoteótico jantar de comemoração. Na verdade, os próprios dirigentes uruguaios não acreditavam na vitória antes da partida, tendo pedido que os jogadores apenas perdessem “de pouco” e mantivessem a honra intacta, tamanho era o favoritismo do Brasil. Obdulio, incapaz de permanecer no hotel da delegação, decide sair sozinho e perambular pelas ruas do Rio de Janeiro. Instintivamente, ele acaba entrando em um botequim. Lá, entre o murmúrio fúnebre da ralé, o “Negro Jefe” gasta o pouco dinheiro que tem em um lanche. Tomando cerveja de pé junto ao balcão, ele testemunha a frustração do brasileiro, um povo tão alegre e festivo, e que agora sentia o gosto amargo das próprias lágrimas rolando pela face. Imagens fortes, que provocam um sentimento de pena em Obdulio. Magnânimo, ele observa a desgraça daquelas pobres pessoas. Homens comuns e trabalhadores, com o olhar perdido no espaço, sem saber que o mulato quieto com quem bebiam era o responsável maior pela sua dor. Embriagando-se com suas vítimas, enquanto a noite ficava cada vez mais escura e fria, Obdulio chegou a se arrepender por ter vencido.

Depois de pendurar as chuteiras, Obdulio recebeu, como consolo, um emprego de funcionário público no Cassino de Montevidéu. Mas os jogadores da epopeia de 1950 nunca foram recompensados à altura. O lendário “Negro Jefe” não obteve fortuna, e algum tipo de reconhecimento por parte das autoridades que regem o esporte só viria um pouco antes da sua morte, em 1996. Mesmo que fosse avesso aos holofotes, Obdulio acabou desiludido com toda essa hipocrisia. Muitos anos haviam se passado desde o famoso Maracanazo, quando, em uma entrevista, ele declarou com tristeza que “o futebol virou um negócio onde não importa a dignidade do homem”. Talvez por isso ele não gostasse de lembrar do passado. Aquele domingo distante, no qual ele se tornou um mito, parece que lhe vem à mente por outras razões. O desencanto estampado na face dos brasileiros, nos bares da cidade, traz um sentimento de angústia, difícil de esquecer. Sempre um fidalgo, Obdulio via no sofrimento dos fracos e vencidos uma espécie de imoralidade, uma sórdida opressão, que ele, na ocasião, ajudara a perpetrar. E esse fardo, tão raro quanto estranho em um mundo onde a vitória a qualquer custo é o que importa, acompanhou o valente capitão até o final dos seus dias.



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