Engana-se quem acha que a violência black bloc é reação à violência da polícia
Se a oposição de esquerda ao governo Dilma e ao PT tem, no campo partidário, Jean Wyllys e Marcelo Freixo como principais representantes, quando vamos para o campo da oposição extrapartidária é difícil imaginar alguém mais respeitado do que o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. Recentemente, a revista piauí dedicou uma reportagem a seu perfil. Em certo momento do valioso texto, o antropólogo diz para o repórter Rafael Cariello: “É espantoso como a esquerda tradicional está histérica com os black blocs. Está histérica porque não controla, porque não é partido. Não é militante de partido. Os black blocs nem existem como movimento. É uma tática.”
Mais à frente, Viveiros, que ganhou proeminência por sua defesa de povos indígenas, fala de seu pessimismo com a situação geral do Brasil, mas ressalta que ele “não é paralisante”. “Dizem que os índios já foram incorporados ao capitalismo. Mas não foram dominados mentalmente.” E resume sua atitude de resistência: “É isso que significa o brasileiro virar índio. Numa versão ‘Twitter’, para encurtar a conversa, é isso. É virar black bloc. Menos pelego, e mais black bloc.”
Passando os olhos por essa inofensiva exibição de retórica, algum leitor podia ter se perguntado, quando estava com a revista em mãos, como esse intelectual e ativista reagiria no caso da “tática” black bloc acabar matando alguém. Com a morte do cinegrafista Santiago Andrade, veio a resposta: com jogo de palavras. Uma conhecida minha compartilhou no Facebook a peroração de Viveiros: “Não foram ‘todos’ que foram longe demais. E sobretudo, alguns desses não-todos que ~sempre~ foram longe demais e estão ~cada vez mais~ longe de serem ‘responsabilizados’ são a polícia e a mídia. Será possível que não se veja isso?”.
Mas aí é que está o nó da questão: dado que “polícia” e “mídia” tão cedo não deixarão de ir “longe demais”, ainda mais para os padrões black bloc, em tese não há limite para a quantidade de violência por parte de manifestantes extremistas que não possa ser justificada.
Para dizer o óbvio: a polícia brasileira é uma das mais incompetentes do mundo (não só na hora de reprimir apenas quem merece, mas também na hora de elucidar crimes); e nossos políticos, com suas pseudo-soluções fáceis e leis “antiterrorismo”, não ficam muito atrás. Mas uma das funções que a polícia, em qualquer lugar do mundo, deve cumprir é reprimir quem, por exemplo, está depredando o patrimônio público ou privado – e é assustador o número de gente que é contra “as ações policiais”, assim em bloco. Se eu e você, leitor, não podemos destruir pontos de ônibus ou agências bancárias, por que uma exceção deve ser feita a integrantes de movimentos sociais? E, já que a polícia tem que fazer parar a depredação, como ela o faria além de aplicando a violência legal?
De qualquer forma, engana-se quem engole a versão de que a violência black bloc é uma simples reação à real violência descabida da polícia (ou, pelo amor de deus, da mídia). Os extremistas estão nas ruas também para combater uma violência não real, somente imaginada, percebida, mas tomada como fato evidente pelos radicais e defensores seus. Tal violência não se resume às práticas policiais, e vai muito além da mídia. Para a mentalidade de cerco do extremista, virtualmente toda a sociedade está em prática constante de violência. Nossa democracia é uma farsa. Mais que isso: onde há capitalismo não pode haver democracia. E, se destruir o capitalismo é condição básica para instaurar uma democracia verdadeira, então ignorar as regras de convivência estabelecidas por essa democracia fajuta em que estamos inseridos é, não apenas aceitável, mas imperativo.
É de um arraigado anticapitalismo, por exemplo, que Viveiros de Castro deriva seu apoio aos black blocs. Para o antropólogo, combater o capitalismo não é só uma questão de mais justiça social, mas de sobrevivência da espécie humana. É porque sabe que os black blocs estão no fundo combatendo essa entidade assassina que Viveiros os apoia, e não por eles estarem chamando a atenção para a violência policial. Aliás, outro mérito dos black blocs, sob esse ponto de vista, é, com a “violência das ruas”, fazer com que a repressão policial se exacerbe e nosso regime supostamente democrático mostre sua “verdadeira face”.
E o que podemos fazer nós, antiquados defensores do aprimoramento (sim, reforma) das instituições, ingênuos crentes na possibilidade de existência de uma democracia liberal saudável em terras brasileiras, muitas vezes inseguros de nossas críticas, receosos de que nossa condenação dos black blocs possa ser tomada por nada mais que uma defesa das coisas como estão? O que podem fazer os indecisos na questão?
Eu humildemente sugiro uma única coisa. Que façamos o seguinte experimento mental e guardemos seus resultados em um local de fácil acesso: o que os black blocs fariam se contassem com o poder de fogo da nossa polícia (despreparada mas, bem ou mal, contida por leis)? Leve em conta que eles não perdem tempo sequer considerando a moralidade das regras de uma democracia liberal; que o fato mesmo de terem suas ações reprovadas pela esmagadora maioria da população só prova o poder maléfico da mídia e como suas próprias ações estão corretas; que estão engajados em uma luta contra o capitalismo que envolve a vida ou a morte da humanidade; e que, como guia, eles têm apenas suas próprias leis e sua infinita vontade.
Apoiar essa “resistência radical” é realmente colaborar para um mundo melhor?
Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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