Ode à família

O novo livro de contos de Piñon é uma obra cheia de pormenores sombrios, crus, dolorosos, da convivência familiar.


"A camisa do marido", de Nélida Piñon. (Record, 2014, 160 páginas)

“A camisa do marido”, de Nélida Piñon. (Record, 2014, 160 páginas)

“Família” é a definição dada a um grupo de pessoas ligadas por consanguinidade, matrimônio ou adoção, que costumam dividir o mesmo teto agindo de acordo com o que é imposto como moralmente correto pela sociedade em que estão inseridas. O papel desta instituição, tão antiga quanto o homem, é contribuir com a povoação do mundo e fazer com que os valores e tradições do clã sejam propagados, além de inserir suas crias no convívio social. Cabe à família educar, instruir, proteger, amar. Contudo, sabemos que não é bem assim que as coisas funcionam.

O mais novo livro de contos da ilustre Nélida Piñon, apesar de classificado como tal, — afinal é composto por histórias separadas, segmentadas, em narrativas curtas — parece ter sido moldado em uma só unidade, pois a maioria dos textos descreve famílias disfuncionais e desestruturadas: A camisa do marido é uma obra cheia de pormenores sombrios, crus, dolorosos, da convivência familiar.

A autora, imortal da Academia Brasileira de Letras, embora desconhecida do público brasileiro em geral, levando em consideração a enormidade de seu talento, já foi traduzida em mais de 20 países, é ganhadora do prêmio Jabuti e de diversos outros prêmios nacionais e internacionais, além de ter publicado dezenas de trabalhos notáveis. Nesta recente obra, Piñon presenteia os leitores com sua escrita elegante, intimista, conhecedora dos detalhes e sutilezas, a fim de, sem receios, explorar as profundezas das relações humanas; desde o mais elevado estado de amor até o mais cáustico desprezo.

As histórias que compõem o livro são palpáveis, verossímeis; ao lê-las, o leitor pensa já ter ouvido aquilo antes: que aquela mulher religiosa poderia ser sua tia; o homem abusivo, castrador, seu avô; aquele rapaz calado, olhos flamejantes de ódio, um primo distante, solitário em suas tentativas fracassadas de aceitação. Há catarse, reconhecimento, um esgar no sorriso torto esboçado ao término da leitura. Os sentimentos são deveras veementes, o amor profundo demais, doído no peito, o ódio tão ardente que ultrapassa o limite das palavras e chega ao plano físico, queimando na pele, nas maçãs do rosto, levando o leitor a relembrar episódios de sua própria vida, desenterrando esqueletos do poço da memória, vivos, imortais em sua presença.

A paisagem é bucólica, pois as personagens são, em geral, do meio rural. Tal escolha de cenário indica ser um reflexo dos descendentes galegos da autora, e emprestam às narrativas um ar de estagnação, até mesmo de primitivismo. A religiosidade, por sua vez, é uma presença velada, revelando-se, em certas ocasiões, apenas na escolha do nome das personagens.

Há, ainda, três contos “dispersos”, ainda que apropriados, do restante da coletânea. Fala-se da reescrita de um episódio de Dom Quixote, da decadência e ruína do escritor Luís Vaz de Camões e de uma homenagem ao imperador espanhol Carlos V. Nessas narrativas, Piñon realiza um belíssimo trabalho de metalinguagem, incursão literária e histórica.

A escrita de A camisa do marido é madura, retrato de anos de experiências adquiridas não só com a arte e a técnica da escrita, mas com o existir. Piñon faz um panorama das relações humanas, mostrando que os laços familiares são indissolúveis; ainda que tentemos rompê-los parte deles segue dentro de nossos seres, lembrando-nos constantemente de nossas fobias, incapacidades e paixões.

Amálgama




Bruna Gonçalves

Formada em Letras pela PUC-Campinas, revisora, tradutora e "semiescritora" nas horas vagas.


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