A arte de desviar o olhar

Não é nada fácil encaixar o livro de China Miéville em alguma definição, mas pode-se tentar: mescla de narrativa detetivesca e distopia.


"A cidade & a cidade", de China Miéville. (Boitempo, 2014, 292 páginas)

“A cidade & a cidade”, de China Miéville. (Boitempo, 2014, 292 páginas)

Ele é mestre e doutor em filosofia do direito internacional pela London School of Economics, membro da International Socialist Organization, cofundador do partido britânico Left Unity e professor na Warwick University. Com formação amplamente política, era natural esperar que China Miéville fizesse seu nome primeiramente como acadêmico marxista – algo que ele, frisemos, também é. Contudo, é com o uso prodigioso da imaginação que seu nome hippie ficou conhecido nas letras.

Durante a maior parte de sua carreira China transitou por um território nebuloso entre a ficção científica e a fantasia, sendo o mais famoso autor de uma nova literatura conhecida como “New Weird” – uma atualização do gênero praticado por escritores como H. P. Lovecraft no início do século XX. Porém, em 2009 foi lançado no Reino Unido The City & the City, uma obra audaciosa que situava seu criador em novos terrenos, também preenchidos por sua cota de autores clássicos e estabelecidos – mas chegaremos lá. Finalmente, em novembro de 2014, chega ao Brasil a tradução do estranho mas intrigante A cidade & a cidade, lançado pela Boitempo.

Estranho, é claro, é um adjetivo elogioso quando se trata de Miéville. A cidade & a cidade foi concebido como um romance noir, mas seria injusto reduzi-lo a apenas isto. Tudo nasce na singela homenagem ainda nas primeiras páginas que abrem o volume – “Em saudosa memória de minha mãe, Claudia Lightfoot” -, palavras que revelam a motivação maior para a construção da história diferente do habitual. A mãe de China Miéville, também escritora e principal responsável por sua formação literária, era leitora habitual de romances policiais e foi sua musa inspiradora nesta empreitada. Mas se existe discussão sobre se o que China faz em seus outros livros é ficção científica ou fantasia, haverá também discussão sobre se o seu policial merece mesmo o rótulo..

Não é nada fácil encaixar o livro em alguma definição, mas pode-se tentar: mescla de narrativa detetivesca e distopia, A cidade & a cidade é permeado pela inventividade e os labirintos de Borges e o inferno burocrático kafkiano; e, acima de tudo e protegido por uma fortaleza invisível, o olho que tudo vê de Orwell. No centro da ação uma questão desafia a máxima científica: podem dois corpos ocupar o mesmo lugar?

Para responder é preciso compreender o funcionamento das cidades-estado do título. A primeira delas é Beszel, localizada em algum lugar do leste europeu – provavelmente entre os Bálcãs e a Ásia Menor. Ainda hoje, anos após se libertar do domínio soviético, a cidade ainda tenta lidar com o atraso político e econômico, altos índices de criminalidade e um sistema cujo método padrão de funcionamento está arraigado na corrupção. No mesmo espaço existe Ul Qoma, cidade mais próspera e desenvolvida. Os dois lugares compartilham a mesma geografia, mas leis, hábitos e costumes totalmente diferentes.

Dois elementos movimentam a trama. O primeiro é a habilidade dos habitantes de ambas as cidades, treinada desde a infância, de “desver” os cidadãos que caminham pelas mesmas ruas ou até nos mesmos edifícios, mas que pertencem ao outro Estado. Alguém de Beszel pode morar ao lado de alguém de Ul Qoma durante toda a vida e jamais trocar uma palavra ou sequer tomar consciência da existência do outro. O mero vislumbre involuntário de algo do lado de lá deve ser rapidamente corrigido com o ato de desver – em outras palavras, não registrar e esquecer o ocorrido. Uma tarefa e tanto para seres predominantemente visuais. Aqueles que incorrem no erro de reparar em algo que pertence ao país vizinho cometem “brecha”, um crime considerado mais grave até do que o homicídio.

Entra em cena a instituição conhecida como Brecha, com maiúscula. Nascida em algum lugar das páginas de 1984, a Brecha é um órgão que observa inclemente a vida cotidiana de todos os cidadãos de Beszel e Ul Qoma. Quando alguém comete o delito da brecha, homens vestidos de preto parecem se materializar rapidamente no local e levam o criminoso. A pessoa nunca mais é vista. Nada se sabe sobre a Brecha, apenas rumores e lendas urbanas que de nada servem para tranquilizar o cidadão comum.

Agora tente imaginar alguém vivendo feliz nessas cidades. É nesse ambiente de medo perpétuo que vivem os personagens do romance. É também com um tom de resignação e desesperança que Tyador Borlú, o narrador em primeira pessoa, conduz o leitor.

Por meio de sua narrativa encontramos o corpo de uma mulher em um lixão nos subúrbios de Beszel. Logo descobre-se que pertence a uma estudante de arqueologia norte-americana conhecida por desagradar muita gente nas duas cidades há alguns anos. Na ocasião, a garota apresentava um trabalho que fundamentava teorias da conspiração descreditadas pelos governos oficiais e tidas como folclore pela população. Mas outras pessoas desaparecem e o que começa como uma tímida hipótese se torna uma possibilidade real. Ou seria pura paranoia?

Tudo é ambíguo em A cidade & a cidade. As ruas podem pertencer totalmente a uma das cidades ou serem “cruzadas”, termo utilizado quando algum trecho do patrimônio público ou privado está nos dois lugares. As pessoas não parecem ser quem são, nem a História, com maiúscula, uma disciplina confiável. Verdades e mentiras são dois lados da mesma moeda girando incessantemente sobre a mesa sem jamais cair e revelar seu rosto.

Como suas cidades, A cidade & a cidade também é muitos livros em um só, um microcosmo para ser lido como múltiplas alegorias. Dos regimes totalitários do século XX às tensas relações entre Ocidente e Oriente durante a Guerra Fria, a política faz parte do enredo, direta ou indiretamente. Miéville retrata sobretudo o mundo multicultural do século XXI, elemento sempre presente na perigosa relação dos habitantes de Beszel e Ul Qoma, sempre a postos, todos eles, para criticar e deitar um olhar desconfiado aos estrangeiros. A persistente falta de aptidão dos povos para uma convivência pacífica é a peça que move as engrenagens do romance – sutilmente, é verdade, mas lá está ela, ao lado da xenofobia e da falta de comunicação.

Na orelha do livro, de autoria de Ronaldo Bressane, a pergunta perfeita para embalar a leitura desafia o leitor: dê uma olhada à sua volta: você está onde realmente acha que está? Tente encontrar a sua resposta antes do final arrebatador de A cidade & a cidade.

Amálgama




Douglas Marques

Curitibano, graduando em Psicologia, leitor assíduo e escritor nas horas vagas.


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