O Paraná está falido, e a invasão da Assembleia mostra que será preciso negociar
As manifestações dos servidores públicos do estado do Paraná, que ocuparam a Assembleia Legislativa na última semana, foram noticiadas amplamente pelo Brasil. Elas tinham como alvo os projetos de lei que atacaram direitos básicos dos servidores e o processo de tramitação apressado tentado pelo governador Beto Richa e sua ampla base de deputados estaduais. O mote era a crise financeira do estado, que vem tendo dificuldade para pagar seus compromissos básicos. O que talvez não se imaginasse era uma agitação política dessa amplitude, potencializada pelos erros políticos do governador e de sua equipe.
O governador Beto Richa não é o único responsável pela difícil situação financeira do estado, nem pela crise econômica. Pode alegar o problema das desonerações promovidas pelo governo federal em anos recentes (IPI, cuja receita é compartilhada entre União e Estados), que em tese diminuíram alguma arrecadação (talvez não – conta impossível de fazer, porque sem as desonerações as vendas teriam sido piores e a arrecadação idem). Há a inflação, que o governo estadual não controla.
Tudo isso não exime o governador das suas responsabilidades, afinal ele esteve no comando do estado pelos últimos 4 anos, e está recebendo aquela tal “herança maldita” que ele mesmo criou. É impossível o governo atribuir a má situação da finança estadual a problemas de arrecadação. Segundo a reportagem da Gazeta do Povo, o estado do Paraná foi o que mais aumentou a receita entre todos os entes da federação. O aumento foi o de 50% em 4 anos. A dívida está sob controle, como mostra a mesma reportagem. Então qual é o problema?
O problema é de administração.
Beto Richa é um político muito cioso de sua popularidade, e obteve desempenhos eleitorais fantásticos nas eleições que disputou. Sua primeira disputa majoritária foi a candidatura para governador em 2002, quando ficou em 3º lugar com 17% dos votos válidos, mesmo sendo apoiado por um governador altamente impopular (Jaime Lerner) e concorrendo com dois ex-governadores (Álvaro Dias e Roberto Requião, que foram para o segundo turno). Em 2004 elegeu-se prefeito da capital enfrentando Angelo Vanhoni (PT) no segundo turno. Em 2008, foi reeleito em 1º turno com 77% dos votos válidos, por uma coligação (PSDB, PP, PSL, PDT, DEM, PSB, PR, PSDC, PRP e PTN) que somava quase o tempo de TV de todos os demais candidatos. Em 2010 foi eleito governador numa eleição apertada contra Osmar Dias (PDT), e ano passado venceu em primeiro turno, com quase 56% dos votos válidos. A coligação que o elegeu era formada por PSDB / PROS / DEM / PSB / PSD / PTB / PP / PPS / PSC / PR / SD / PSL / PSDC / PMN / PHS / PEN / PT do B. Quem conhece a política brasileira sabe quanto custa formar coligações como estas.
Mas o aumento da despesa do estado não se deu apenas por causa de nomeações em excesso e favorecimento de aliados. O governador passou seus primeiros quatro anos pensando ser possível atender a todos, como se não houvesse amanhã. As contratações estaduais se deram em dezenas de milhares (de policiais, de funcionários da saúde, de professores do Ensino Básico). Várias categorias tiveram novos planos de carreira. Ao longo de 4 anos todo o funcionalismo do estado teve reajuste cheio da inflação em todos os anos. Graças a essa política, o governador viveu em “lua de mel” com o funcionalismo durante seus quatro anos de mandato. Que eu me lembre, houve apenas uma greve, em 2014 – dos professores do Ensino Básico, categoria mais numerosa e mal-remunerada dentre os servidores estaduais (e que obviamente tem o sindicato mais forte). Esta greve terminou em poucos dias, com as reivindicações atendidas.
Se por um lado as demandas salariais do funcionalismo vinham sendo atendidas para além do que manda a responsabilidade financeira (basta comparar quantos reajustes tiveram os servidores federais no mesmo período), por outro lado, os recursos necessários para o bom funcionamento dos órgãos públicos não vinham sendo suficientes. Nos primeiros anos do mandato de Richa, os órgãos estaduais chegavam ao último trimestre do ano enfrentando cortes de 30% na verba de custeio. Em 2014 a situação piorou muito: o corte foi maior e aconteceu muito mais cedo.
Desde 2013 saíam notícias fartas de que o estado não conseguia pagar fornecedores. Viaturas policiais ficaram sem combustível, entre outras coisas. Na UNESPAR, onde trabalho, desde meados de 2014 não compramos material de papelaria, toner para impressora, papel higiênico para banheiros etc. UEL e UEM, as duas maiores universidades do estado, chegaram a ter a energia elétrica suspensa no fim do ano passado. Policiais militares e bombeiros suspenderam a “Operação Verão” no litoral do estado, depois de ficarem semanas sem receber as diárias a que tinham direito por trabalhar fora de seus municípios. Motoristas e cobradores de ônibus fizeram greve em janeiro porque não receberam o vale – o motivo foi que o governo do Estado não pagou os valores de 2014 para as empresas de ônibus que fazem o sistema integrado da Região Metropolitana de Curitiba. A “solução” definitiva do governo do estado foi cancelar os repasses e acabar com o sistema integrado, que era uma das principais vantagens do sistema de transporte.
A situação era impossível de sustentar. Alguma coisa precisava ser feita.
A solução do governador, em seu novo mandato, foi chamar um novo secretário da Fazenda, o quarto ou quinto desde que Richa assumiu pela primeira vez. O indicado foi Mauro Ricardo Costa, trazido de fora do estado, com a credencial de ter trabalhado com Serra e Kassab na Prefeitura e no Governo do Estado de São Paulo e com ACM Neto na prefeitura de Salvador.
Qual a proposta? Um choque financeiro, capaz de aumentar a arrecadação e estancar a despesa corrente, principalmente salários. Quem pagaria a conta? Os contribuintes arcariam com aumentos de ICMS e de IPVA, e a conta da redução de despesas era mais fácil ser jogada nas costas do funcionalismo público estadual. Acabava a lua de mel. Detalhe: no início do ano foi aumentado o salário do governador e dos secretários (o salário de Richa foi para R$ 33.700 e é o mais alto entre os governadores do país), e também dos deputados estaduais (com o aumento de 26%, o salário foi para R$ 25 mil, além de vários benefícios).
Aí começou o problema. O secretário de finanças gestou um conjunto de medidas que começou a ser conhecido por “pacotaço”. Ele seria sobreposto ao “tarifaço” já posto em prática desde o início do segundo mandato. Pretendia dobrar a contribuição previdenciária do funcionalismo, extinguir quinquênios e progressões, incorporar recursos do Fundo Previdenciário do estado para arcar com despesas correntes (comprometendo futuras aposentadorias), entre outras ações. Ao que parece, o governador nem mesmo consultou sua assessoria jurídica, uma vez que as medidas receberam notas de repúdio da OAB-PR e da Associação dos Procuradores do estado (calculo que, se fossem implantadas, seriam revertidas judicialmente).
Mas a pior afronta, que realmente esquentou as coisas, foram os métodos políticos escolhidos para implantar as mudanças – o mesmo método que foi empregado inúmeras vezes por este governo. Nunca antes com repercussão tão negativa, mas é possível considerar que as várias tentativas praticadas nos anos recentes de forçar mudanças sem a devida negociação política com os afetados terminaram por encher o cálice da ira da população.
Para ficar apenas nos assuntos que acompanho mais de perto, o método de imposição política de decisões, conhecido como “tratoraço”, já foi aplicado com gosto no processo de criação da UNESPAR. Escrevi sobre isso, mas pra resumir a história: o governo quis criar a universidade com a sede em Paranavaí – para agradar aliados políticos, embora isso fosse contrário à decisão da comunidade acadêmica, que escolheu a sede em Curitiba. Tudo bem, era prerrogativa do governo estabelecer a sede onde bem entendesse, desde que aprovado em lei pelos deputados da ALEP. Qual o método para fazer a aprovação? Passar por cima das discussões e sessões públicas, aprovar o plenário como comissão geral para acelerar a tramitação, e decidir que a ALEP sequer poderia votar destaques na lei, devendo aprová-la como estava. Resultado? A sede aprovada em Paranavaí, mas com a desmoralização política total do governo e dos deputados com a comunidade da UNESPAR, uma vez que ignoraram totalmente os problemas de funcionamento que isso acarreta.
Já os professores do Ensino Básico, estavam desde o fim do ano na mira das ações do governo. Depois de formadas as comissões eleitorais e montadas as candidaturas, o governo resolveu anular as eleições para diretores de escolas e prorrogar os mandatos atuais por mais um ano. No que deveria ser a volta do ano letivo, as escolas estaduais foram surpreendidas com medidas duras: demissão dos temporários contratados (até agora não receberam as rescisões a que têm direito), atraso no pagamento do adicional de férias (que tem que ser pagos antes da saída para as férias, mas até agora estão atrasados), e o pior, cancelamento da distribuição de aulas já feitas.
Professores que já sabiam em que colégios trabalhariam tiveram que voltar a disputar aulas. Profissionais que tinham pedido demissão de outros empregos para assumir aulas agora ficariam sem nada. O número de alunos por turma iria aumentar brutalmente para diminuir a necessidade de contratação de professores. Ou seja, quando o pacotaço chegou à ALEP, pegou os professores do Ensino Básico já mobilizados pelas medidas anteriores.
Do mesmo modo, os reitores das universidades estaduais já vinham sendo coagidos a aceitar uma brutal redução do custeio. Como se recusaram a assinar, não se paga nada nas universidades desde o início do ano. Com isso, prestação de serviços de limpeza e manutenção estão sendo cancelados por falta de pagamento. A notícia da suspensão de contratação de temporários também colocava diante das universidades a dura possibilidade de ter diversas disciplinas sem professor para o início das aulas. Assim, o envio do pacotaço à ALEP também pegou os sindicatos das universidades já em estado de mobilização.
Funcionalismo mobilizado, todas as categorias com indicativo de greve aprovados em assembleias sindicais, manifestantes acampados em frente a ALEP para acompanhar as votações, eis que vem a cereja do bolo: os deputados aprovam o requerimento para transformar o plenário em comissão geral. O famoso “tratoraço”, tantas vezes empregado por Richa e os deputados de sua base de apoio. O que significa o plenário como comissão geral? Significa que não se fazem audiências públicas para discussão do projeto, nem se faz o trabalho das comissões. Significa que o processo de tramitação democrática, que faz demorar meses para aprovar uma lei, seria suspenso para que tudo fosse aprovado em um dia. O requerimento foi aprovado na terça feira, resultando na invasão do plenário da ALEP pelos servidores que estavam acampados em frente a ela. (A Gazeta do Povo fez um vídeo do momento da invasão do Plenário).
Iniciada no fim da tarde de terça, a ocupação durou todo o dia de quarta-feira, e estendeu-se até quinta. Impressionou a organização e a solidariedade dos manifestantes, como constataram vários presentes, e algumas reportagens. Um repórter da Gazeta dormiu com os ocupantes e escreveu uma reportagem. Com o Plenário ocupado, os deputados tentaram fazer as reuniões no restaurante da Assembleia, durante a quarta-feira, mas também foram impedidos. Na quinta-feira o governador tentou a cartada final: ordenou que os deputados votassem o pacotaço “a qualquer custo”. O secretário de Segurança Pública forneceu o plano: viriam em um grupo de deputados da base governista (a esta altura já reduzida), que se reunia na sede da COPEL. Seriam transportados no camburão da tropa de choque, e cortariam as grades de ferro dos fundos do terreno da ALEP para entrar sem interferência dos manifestantes. A intenção era aprovar novamente o requerimento do tratoraço, e em poucos minutos aprovar um pacotaço já modificado, agora sem várias das maldades que tinham sido imaginadas na primeira redação do projeto de lei. O repórter Rogério Galindo, da Gazeta, conversou com vários deputados presentes no ônibus da polícia, e fez a impagável “Crônica da viagem no ônibus do Choque“.
A notícia de que os deputados tinham entrado pelos fundos e iniciado a sessão em uma sala do prédio administrativo se espalhou entre os manifestantes acampados na praça. Isso resultou em nova invasão, que não foi contida pela polícia. Este foi o momento mais tenso. A polícia conseguiu manter a segurança da sala onde estavam os deputados, mas eles tiveram o bom senso de ter medo de votar o projeto naquelas condições. Percebendo o perigo de a situação descambar para uma tragédia de maiores proporções, o governador, através do Secretário da Casa Civil, enviou mensagem à Assembleia retirando o projeto de pauta. Toda esta movimentação foi sintetizada em uma vídeo-reportagem da Gazeta.
Com o recuo do governo, os manifestantes desocuparam imediatamente o plenário da ALEP. Os servidores públicos mantiveram o estado de greve e o acampamento na praça (agora em número mais reduzido). Segundo o governo, os projetos agora serão tramitados em separado, respeitando as comissões. Já está marcada uma reunião de representantes do governo com a APP-Sindicato, que representa os professores do Ensino Básico, para discutir as mudanças propostas.
Difícil não fazer comparação entre os protestos de Fevereiro de 2015 com dois outros momentos marcantes da política paranaense, o que talvez nos deixe o alento de estamos evoluindo na forma de solucionar conflitos políticos no estado do Paraná. Em 1988, quando o governador era Alvaro Dias, uma greve de professores, que acamparam no Centro Cívico, terminou com a política atacando com cavalos, cassetetes e balas de borracha. Em 2001 o governador Jaime Lerner enviou à Assembleia o projeto de privatização da COPEL, ação que era desaprovada por 90% da população conforme as pesquisas de opinião. O Plenário da ALEP também foi invadido, daquela vez pelos estudantes, de depredaram totalmente o prédio.
Desta vez a ocupação foi pacífica, e o prédio não sofreu danos como em 2001. E a Polícia Militar agiu de maneira exemplar, muito diferente de 1998. O único momento mais violento foi quando a Tropa de Choque agiu no momento da entrada dos deputados na tarde de quinta-feira. Houve spray de pimenta e balas de borracha.
No mais, durante os três dias de ocupação, o que se viu foi uma polícia respeitosa com os manifestantes, fazendo a segurança de maneira republicana. Pesou para isso o fato de os policiais também serem servidores do estado, e também estarem sendo afetados pelo pacotaço e pelos cortes de verbas. Aliás, conta-se que o governo não forneceu nem água nem alimentação adequada aos policiais que trabalharam na ocupação. Eles recebiam doações dos manifestantes.
André Egg
Professor da UNESPAR, professor colaborador no PPGHIS-UFPR, colaborador da Gazeta do Povo. Um dos organizadores do livro Arte e política no Brasil: modernidades (Perspectiva, 2014).