A principal força da obra está na evocação de um mundo tão afastado, mas tão familiar
A vida de Galileu Galilei é um dos eixos em torno dos quais gira a civilização ocidental: sua genialidade, as circunstâncias históricas em que ela desabrochou e as consequências que o homem Galileu sofreu por conta disso fazem com que seu nome seja até hoje, quase 400 anos após sua morte, de menção obrigatória em qualquer debate ou reflexão mais aprofundado sobre filosofia e história da ciência, sobre a relação entre ciência e poder político e, mais ainda, entre ciência e religião.
Entre suas principais realizações estão a introdução da experimentação sistemática como método de pesquisa científica e do uso do telescópio na investigação astronômica; a postulação da matemática como a verdadeira “linguagem da natureza”; a formulação do chamado “princípio galileano” da relatividade, cuja generalização, séculos mais tarde, levaria à Teoria da Relatividade de Albert Einstein; e à dedução das leis do movimento que, depois, seriam sistematizadas por Isaac Newton.
Já o julgamento a que foi submetido pela Inquisição, e no qual foi considerado herege por ter afirmado, primeiro, que a Terra se move no espaço; segundo, que a Bíblia não é uma fonte de conhecimento científico, continua a ser motivo de debates acalorados até hoje.
O historiador Maurice Finnochiaro, autor de uma ampla compilação de documentos sobre o caso, o volume The Galileo Affair, vê a discussão dividida, historicamente, em três grandes campos: o do “mito anticlerical”, segundo o qual a Igreja Católica agiu contra Galileu movida por obscurantismo e pelo desejo de suprimir a verdade; o “mito antigalileano”, segundo o qual Galileu causou a própria desgraça, por despeito ou arrogância, e na verdade foi tratado com leniência pelo Santo Ofício; e o “circunstancialista”, segundo o qual ambos, Galileu e igreja, foram, de certa forma, vítimas de circunstâncias históricas infelizes.
Uma biografia de Galileu lançada agora no Brasil pela Zahar, Galileu Galilei: Um revolucionário em seu tempo, de autoria do norueguês Atle Naess, navega com habilidade entre essas três grandes teses, pendendo para o lado circunstancialista: ele descreve em detalhe o cenário de uma que Igreja que precisava reafirmar sua autoridade em meio aos choques da Contrarreforma e, mais especificamente, desenha bem a situação do papa Urbano VIII, principal artífice da humilhante retratação imposta a Galileu sob ameaça de tortura e de sua subsequente condenação à prisão domiciliar. O leitor fica sabendo que Urbano estava sendo pressionado a reforçar sua imagem de defensor da fé: acusações de tibieza nesse campo já o haviam levado a sofrer uma escandalosa censura pública, quase um pedido de impeachment.
Mas Naess também apresenta as decisões do Santo Ofício e do Índex de Livros Proibidos, tomadas em 1616, ainda no pontificado de Paulo V, no sentido de suprimir o debate em torno do modelo cosmológico de Copérnico – segundo o qual o Sol é o centro em torno do qual giram a Terra e os demais planetas. Ele também não deixa de apresentar exemplos claros de intolerância por parte da Igreja, como a condenação de Giordano Bruno (que, se de fato não é um mártir da ciência, certamente é um mártir do livre pensamento, em si uma pré-condição para a ciência).
Já o campo antigalileano é contemplado com a descrição da forma muitas vezes virulenta e soberba com que Galileu defendia suas ideias – mesmo ideias erradas, como a de que os cometas seriam fenômenos atmosféricos, ou de que as marés são causadas pelo movimento da Terra.
Naess parece dar crédito excessivo ao retrato idiossincrático de Galileu – “assassinato de caráter”, nas palavras do historiador Finnochiaro – desenhado por Arthur Koestler em seu livro Sleepwalkers: Koestler vê um Galileu obcecado, ao ponto da desonestidade intelectual, com sua falsa teoria das marés, e causador, por inveja e orgulho, da própria desgraça. O autor norueguês não é tão enfático quanto o de Sleepwalkers em seu indiciamento do caráter de Galileu, mas reconhece Koestler como uma de suas fontes favoritas a respeito do papel da personalidade de do cientista nos eventos de sua vida.
O autor se preocupa em explicar um dos supostos “paradoxos” do julgamento de Galileu – por que a Igreja decidiu banir o debate do heliocentrismo em 1616, depois de tolerá-lo por décadas, desde a publicação do trabalho pioneiro de Nicolau Copérnico, em 1543? Naess explica a distinção entre modelo astronômico – uma descrição hipotética dos céus, usada como base para cálculos e previsões – e modelos cosmológicos: que se propõem não como meras hipóteses matemáticas, mas como uma descrição da coisa em si, de como os fatos realmente são.
A Igreja de Roma era perfeitamente capaz de assimilar o heliocentrismo como modelo astronômico, mas quando as observações publicadas por Galileu a partir de 1610 – incluindo a descoberta das luas de Júpiter e das fases do planeta Vênus – começaram a dar sustentação ao heliocentrismo como modelo cosmológico, a ortodoxia viu a necessidade de tomar posição. E, numa das decisões mais desastrosas de sua história, a Igreja Católica resolveu que a afirmação do movimento da Terra era um absurdo filosófico (isto é, sem base em dados empíricos) e uma heresia, porque contrária às Sagradas Escrituras. A Bíblia, afinal, diz que o Sol parou no céu para que o exército de Israel pudesse completar a aniquilação dos amoritas ainda à luz do dia (cf. Josué 10:12)!
Essas afirmações demoraram um tempo doloroso para serem formalmente abandonadas. Foi apenas em setembro de 1822, mesmo mês e ano da independência do Brasil, que, por decisão da Inquisição, acreditar que a Terra gira em torno do Sol deixou de ser uma postura herética para fiéis católicos. E foi apenas em 1835 que os católicos puderam passar a ler, sem pecar, os livros de Copérnico, Kepler e Galileu. Em 1893, a encíclica “Providentissimus Deus”, do papa Leão XIII, determinou que a Bíblia é uma fonte de ensinamentos sobre fé e moral, mas não sobre o mundo físico, ecoando o famoso aforismo citado por Galileu, “a intenção do Espírito Santo é ensinar como se vai ao Céu, não como o Céu vai”.
Foi apenas no século XIX, portanto, que as duas opiniões julgadas heréticas de Galileu – de que o mundo gira, e de que a Escritura não ensina sobre a natureza – deixaram de sê-lo. Finalmente, em 1992, o papa João Paulo II, num discurso histórico, admitiu que Galileu Galilei tinha se mostrado “mais perspicaz (…) do que os teólogos que a ele se opunham”.
Dado esse histórico, quem espera que o Vaticano reconheça a utilidade dos preservativos como meio de prevenção de doenças ainda neste milênio pode se considerar otimista.
O julgamento, e os eventos que levaram a ele, ocupam, talvez inevitavelmente, boa parte do livro de Naess, mas não são o que torna o trabalho do norueguês interessante: leitores curiosos sobre esse aspecto específico da vida do grande cientista italiano farão melhor procurando obras dedicadas exclusivamente ao episódio. A principal força de Galileu Galilei, livro premiado em seu país de origem, reside na reconstituição de época, na evocação da Itália renascentista e da Europa da Guerra dos 30 Anos, no relato das intrigas políticas da corte papal: enfim, na apresentação, inteligente e concisa, de um mundo tão afastado de nós e, curiosamente, tão familiar em seus jogos de vaidade, traição e influência.
O autor também faz um bom trabalho para despertar a curiosidade do leitor a respeito das duas obras-primas de Galileu, seu “Diálogo sobre os Dois Sistemas Máximos do Mundo” e seu “Duas Novas Ciências”. No primeiro, Galileu apresenta uma discussão sobre o heliocentrismo; no segundo, suas descobertas sobre mecânica e cinética. Ambos são marcos da divulgação científica, já que foram escritos para o público em geral, e clássicos da literatura italiana, pela verve e pelo estilo do autor.
A tradução publicada pela Zahar, a cargo de George Schlesinger, não foi vertida a partir do original norueguês, mas de uma edição americana, em inglês. O texto em português é, no geral, agradável, mas peca por, em muitos momentos, soar como uma velha dublagem de Herbert Richers: por exemplo, em trechos como “foi acordado que tentar tal conversa poderia ser proveitoso”, ou “por meio de uma carta inusitadamente reservada” e ainda, na mesma página, “sou exigido a responder…”.
É impossível deixar de notar que frases do tipo – principalmente no estranhíssimo uso de “sou exigido” para significar algo como “exige-se de mim”, ou “é necessário que eu”— soam, mesmo em português, como se compostas em inglês.
Carlos Orsi
Jornalista e escritor, com mais de dez livros publicados. Mantém o blog carlosorsi.blogspot.com.
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