O jurista conservador, a omissão e a imperícia

Ives Gandra Martins causa confusão ao colocar a omissão como uma espécie de culpa, que poderia levar ao impeachment.

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O advogado tributarista Ives Gandra da Silva Martins publicou artigo na Folha de São Paulo contando sobre parecer que diz ter elaborado a pedido de um colega advogado sobre a hipótese de o impeachment poder ocorrer por culpa do Presidente da República. Na verdade, chamar de artigo a publicação é um pouco impreciso, pois parece tratar-se de um roteiro dos trabalhos realizados. Infelizmente, como roteiro, só pode dar origem a uma comédia estilo pastelão. O excelso jurista – que já vilipendiou a memória de três dos maiores juristas brasileiros ao defender que a justiça funcionava de forma independente do Executivo durante a ditadura – não encontra excelsos argumentos. E ainda comete erros crassos.

O mais estranho deles aparece logo no primeiro parágrafo: Ives Gandra sustenta que, em Direito, a culpa aparece nas formas de “omissão, imperícia, negligência e imprudência” (grifo nosso). Não consigo imaginar como um jurista desse gabarito – doutor em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie – possa caracterizar a omissão como uma espécie de culpa. Culpa, em Direito, é forma de responsabilidade oposta a dolo: basicamente, a diferença entre ambas as formas está que na culpa o agente não dirige sua vontade para a realização da ação ou omissão, ocorrendo o resultado pela imperícia, pela negligência ou pela imprudência deste no cumprimento de um dever. Exemplo clássico é o do motorista que viola o dever de dirigir abaixo da velocidade regulamentada e, por isso, envolve-se em acidente de trânsito.

Omissão, por sua vez, é o oposto de ação. Assim, não existe uma relação necessária entre culpa e omissão: podemos ter ações culposas e dolosas, bem como omissões culposas e dolosas. Logo, ao colocar a omissão como uma espécie de culpa, o tributarista causa confusão que vai permear todo o seu texto.

O segundo erro que Ives Gandra comete é confundir a probidade da administração como espécie de crime de responsabilidade – mencionada no art. 85, V da Constituição da República – com os atos de improbidade administrativa – previstos no art. 37, § 4º da Constituição e na Lei nº 8.429/1992. Embora os nomes sejam os mesmos, o STF já decidiu (Agravo de Instrumento nº 810.393) que aos agentes públicos que respondam no regime de crime de responsabilidade com competência definida através de foro especial por prerrogativa de função não será aplicada a lei nº 8.429/1992. É o caso do Presidente da República que tem os seus crimes de responsabilidade tipificados na Lei nº 1.079/1950, que apresenta em seu art. 9º as hipóteses de crime de responsabilidade contra a probidade na administração (diferente, logo, de improbidade administrativa), regulamentando o inciso V do art. 85 da Constituição.

O terceiro erro – o mais crasso – é o próprio tema do artigo. Para que fosse possível a responsabilização na forma culposa do presidente, é necessário que esteja prevista essa forma de responsabilização na lei do impeachment, por força da garantia presente no art. 5º, XXXIX da Constituição: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”, combinada com o art. 18, parágrafo único do Código Penal: “salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente”. Assim, a lei 1.079/1950 não tipifica ações ou omissões culposas (a palavra culpa não aparece nem uma vez naquela lei), apenas dolosas.

Todos sabem que o jurista paulista vem de família extremamente conservadora, participando da Opus Dei e sendo professor emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e da Escola Superior de Guerra. Obviamente, o professor tem toda a liberdade de sê-lo e de participar de quaisquer organizações que queira, desde que não fira a legalidade constitucional. Lógico que o impeachment pode vir a ser possível, jurídica e politicamente, e até a acontecer. Mas o texto de Ives Gandra se presta mais a confundir que a esclarecer. Seu artigo é mero roteiro, como dissemos; por isso fica em aberto a qualidade do parecer, ao qual não temos acesso. Entretanto, fica no ar a questão se os erros existentes no artigo são de natureza meramente culposa, pela imperícia, ou se Ives Gandra agiu dolosamente. Quanto a isso, nos abstemos de comentar.

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  • Tutameia

    certas expressões gritam sua condição paradoxal que não podemos deixar de sentir:
    “jurista conservador” não parece pra vcs tb o maior pleonasmo que se possa cometer em nossa língua???

    • Hugo Silva

      Até concordo que o estereótipo do jurista para o senso comum teórico do Direito seja o jurista conservador (na verdade, acho que seria melhor o jurista bitolado, já que tivemos excelentes juristas conservadores que honravam o nome, como Sobral Pinto, para ficar em um nome só). Entretanto, o Brasil possui excelentes juristas que não corroboram com o senso comum teórico. Por todos, cito o professor gaúcho Lênio Streck.

    • Leonardo

      Depois da “crise” do Positivismo e da ampliação dos estudos de direitos humanos, tendência do mundo ocidental atual, não dá mais para conectar o Direito ao conservadorismo (pelo contrário, se você analisar os julgamentos polêmicos do STF sobre união homoafetiva e pesquisa com células tronco). Não é comum, p ex, ver doutrinadores contrários ao casamento igualitário e aos direitos de personalidade dos transsexuais.

      Um bom jurista hoje deve promover a máxima eficiência dos direitos fundamentais, o que não atrai a índole conservadora. De conservador, deve possuir apenas o sentimento de manutenção dos princípios constitucionais, muitos deles repudiados pela população quando protegem minorias e criminosos.

      Além disso, direita e esquerda pra mim também não são ideologias necessariamente conexas ao Direito. O que acontece é que, convenhamos, o curso de Direito, principalmente das federais, é branco e de classe média.