Prestes foi inegavelmente um sujeito de dignidade e coragem. Mas muita calma nessa hora.
Este livro merece ser lido por todo mundo. Como aliás tudo que Daniel Aarão Reis escreve. A profundidade de suas pesquisas e sua competência em escrever história para o público não especializado, não o tomando como um bando de idiotas, estão além de qualquer dúvida. Não apenas você deve ler os livros mais longos de Aarão Reis, como esta biografia de Prestes, mas também os curtos – seu Ditadura e democracia no Brasil (Zahar, 2014) é provavelmente o Melhor Livro Pequeno Sobre a Ditadura Brasileira Ever. Aarão Reis é de esquerda, mas, em seus estudos sobre figuras e movimentos da esquerda, você encontra críticas mais incisivas e honestas do que em quase todos esses autores direitistas da moda.
Como ninguém é perfeito, Aarão Reis escreveu uma biografia de Prestes que só não é nota dez porque deixa a porta aberta para a interpretação de que o Velho era um defensor da democracia. O autor, claro, não propaga o mito do Cavaleiro da Esperança. Esta não é uma hagiografia. Mas faltou ligar as pontas e fechar a obra com um juízo menos brando de Prestes do que aquele a que o autor chega.
Tal brandura se dá, a meu ver, porque Aarão Reis ainda abriga certos resquícios de ideias “progressistas” pestilentas que tiveram seus dias de glória durante a Guerra Fria. Assim, ele escreve sobre o pós-Segunda Guerra: “No Brasil, como em todo o mundo, a união nacional, forjada na luta contra o nazifascismo, continuaria a ser defendida pelos comunistas”. Desculpa, mas como em todo o mundo? Não pude senão escrever na margem da página, “o leste europeu mandou lembranças”. Pois ainda durante a guerra os planos e ações soviéticas naquela região já não eram segredo para muita gente – certamente não para Prestes e seus companheiros no Brasil. Os comunistas da Europa oriental e central mostraram a seus companheiros não comunistas o valor que achavam que eles tinham mandando-os para a prisão ou o cemitério. A “união nacional” só interessava aos comunistas enquanto expediente, até que conseguissem se impor ao resto da sociedade pela bala. E, aí sim, não há motivo para se acreditar que com os comunistas brasileiros fosse diferente.
Comentando a legislação do início de 1948 que empurrou o Partido Comunista para o submundo, Aarão Reis diz que “processo análogo ocorreu em outras partes da América Latina e do mundo”. Fato. Mas vai além: “Encadeara-se a dialética da Guerra Fria. Na França, na Itália, na China, os comunistas eram afastados dos governos de união nacional, quando não eliminados do jogo político. Em contrapartida, nas áreas em que [os comunistas] dominavam, lideranças liberais ou de direita eram marginalizadas, presas e, não raro, liquidadas”. Eis aí uma atroz falsa equivalência. Comparar o que liberais e direitistas (e esquerdistas não comunistas; e, aliás, muitos comunistas) sofreram nos países sovietizados com a sorte dos comunistas franceses e italianos é algo ruim o bastante para se sobressair em um livro no geral regido pelo bom senso. A “dialética da Guerra Fria” não pode ser utilizada como um biombo por trás do qual se escrever história de qualidade indigente.
De qualquer forma, justiça seja feita, as pontas que Aarão Reis não liga para chegar a um julgamento mais pungente de Luís Carlos Prestes estão espalhadas ao longo da obra. Cumpre ao leitor, especialmente o mais jovem, ter o cuidado de não deixar escapar a conclusão lógica a que elas levam.
Antes de mais nada e acima de tudo, Prestes e seus colegas de partido eram teleguiados de Moscou. Eu sei, “teleguiados de Moscou” foi um termo abusado pela direita, mas aqui ele se aplica à risca. No início de 1951, eles obedientemente participaram do orwelliano Congresso Mundial dos Partidários da Paz, realizado numa Polônia violentada por Moscou pela segunda vez – a primeira, em 1939, foi em colaboração com os nazistas. Aarão Reis ingenuamente vê aí um “paradoxo”: “como um partido favorável à luta armada se empenhava tanto em campanhas pela paz?”. Como sabemos, não havia paradoxo algum. A paz, para os comunistas, era um meio, não um fim; uma pausa para reagrupamento ou para eliminação de diferenças de capacidade em relação ao inimigo, antes da próxima ofensiva.
Quando ainda tinha mandato no Senado, Prestes era, segundo Aarão Reis, constantemente assediado “com questões referentes à URSS e aos regimes de democracia popular que se estabeleciam na Europa Central com o apoio soviético”. Esses assédios sempre atingiam um nervo sensível. Prestes “perdia o raciocínio, mas não deixava de defender ‘a pátria do socialismo’”. Isso não é um mero detalhe da vida de Prestes, pois mostra o que ele realmente entendia por democracia – as “democracias populares” comunistas.
Essa foi uma ideia que Prestes levou por toda a vida. Em janeiro de 1964, ele célebre e sartreanamente disse na TV Tupi que “a liberdade de escolha na URSS é total”. Suas relações com altas autoridades soviéticas, incluindo Khruschóv, eram, para utilizar um termo que era mais comumente empregado aos brasileiros com afinidade com Washington, carnais. Em 1968 apoiou, a exemplo do seu amigo Fidel Castro, a invasão da Tchecoslováquia. Em 1972, comparou a ditadura brasileira ao regime hitlerista, e o aparelho repressivo aqui montado àquele da Gestapo, uma bobagem ainda maior se colocada no contexto em que foi escrita: direto de Moscou.
A União Soviética não era o lugar mais adequado para se planejar a instauração da democracia onde quer que fosse, mas foi lá, e não na Europa ocidental, que Prestes e correligionários montaram seu Grupo de Trabalho para o Brasil. Para a Europa ocidental (França e Itália) foram outros comunistas brasileiros, como Armênio Guedes, Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder, mas estas figuras entravam cada vez mais em atrito com Prestes, pois defendiam o “eurocomunismo” crítico a Moscou, enquanto que o Velho sempre teve na União Soviética e outros países totalitários exemplos a serem seguidos. Foi assim que ele passou o réveillon de 1979 em Havana, a convite de Fidel, onde, juntos, baixaram o cacete nos “reformistas eurocomunistas”.
No Brasil de antes e depois de 1964 havia grupos mais à esquerda do PCB. Mas isso não quer dizer que o Partidão fosse sensato em suas atitudes diante da “democracia burguesa”. As “reformas de base” propostas por João Goulart simplesmente não tinham o apoio necessário no Congresso – conservador por vontade popular. Implementá-las sem acabar com a democracia necessariamente requereria andar aos poucos, convencendo parcelas e mais parcelas da sociedade, dentro do jogo da representação plural. Mas os comunistas e quase toda a esquerda achavam isso uma bobagem e queriam forçar as reformas goela abaixo do Congresso e de outros setores – o que significa dizer que, para eles, a democracia não era um fim, mas um meio a ser utilizado para se chegar à “verdadeira” democracia, aparentemente aquelas da Europa sovietizada e de Cuba. Ainda antes do golpe de março/abril, Prestes e outros líderes se estapeavam para ver quem seria o “Fidel Castro brasileiro”. Ao verem a democracia como algo a ser salva de si mesma por uma ditadura, essa esquerda se equivalia à direita que acabou dando o golpe, para a qual a mera discussão de reformas em uma imprensa livre já era um acinte a anunciar o fim da civilização cristã.
Com o fim da ditadura – para o qual a extrema-esquerda não contribuiu em absolutamente nada – e a Anistia, a divergência entre Prestes/sovietófilos e Guedes/eurocomunistas se acirrou ainda mais. “O momento”, dizia Guedes, “é de lutar pela democracia e não pelo socialismo”. Prestes acreditava que a luta devia ser pela derrubada da falsa democracia dos burgueses e implantação do socialismo. Enquanto Guedes se inspirava nas políticas de coalizão e reformas graduais dos comunistas italianos e franceses, Prestes se espelhava nos indobráveis líderes de Cuba, Nicarágua e África de língua portuguesa.
Agora vejam bem. Ninguém pode negar que Prestes foi um sujeito de certa dignidade e muita coragem. Sua dignidade e coragem se agigantam ainda mais se comparadas com a vida e obra dos esquerdistas patetas e venais que ocupam o poder no Brasil deste início de século 21. Apenas deve sempre ficar claro que ele jamais foi um democrata. Tanto que, para celebrar o legado do pai e provar que “seus ideais continuam atuais”, a senhora Anita Leocádia Prestes, em biografia recente, teve que invocar a supostamente bem sucedida realidade cubana, e o socialismo como “única solução para os males do Brasil e da América Latina”. (Afirmação de timing tão perfeito quanto a ideia do ex-petista e atual PSOL Cid Benjamin, em suas memórias de 2013, de que, para o Brasil se curar dos males do PT, é preciso seguir o exemplo da Venezuela.)
No mínimo desde seu primeiro exílio – no Uruguai, após a derrota da Coluna Prestes –, quando conheceu Astrojildo Pereira e foi apresentado ao marxismo-leninismo e às “leis da história”, Luís Carlos Prestes sempre foi um ditador em compasso de espera.
Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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