Os justiceiros transformaram causas justas em uma autoparódia maligna.
Cathy Young, no Observer
O movimento moderno de justiçamento social, ou o novo “politicamente correto”, ganhou muito destaque no ano passado. Protestos estudantis varreram diversos campi, com demandas frequentemente focadas no expurgo do crime de pensamento – levando a acalorados debates sobre se esse movimento é um perigoso autoritarismo pseudoprogressista ou um há muito esperado esforço para se conseguir justiça para todos. Uma retrospectiva no The Daily Dot proclamou 2015 como “o ano do justiceiro social”.
O autor da retrospectiva, o estudante de graduação e colunista político Michael Rosa, louvou essa tendência, e conclamou os esquerdistas a “abraçarem o termo”. Porém, as realizações que ele invoca são, como o povo do justiçamento social diz, problemáticas. Seu primeiro exemplo, a legalização do casamento de pessoas do mesmo sexo, na verdade teve muito pouco a ver com o atual movimento de justiçamento social; foi o resultado de décadas de um ativismo muito diferente, pragmático, focado em um objetivo claro – o direito legal de se casar – e que enfatizou igualdade, não identidade gay. E o #BlackLivesMatter, também um movimento com foco específico – violência policial contra afro-americanos –, pode-se dizer ter sido mais prejudicado do que ajudado pelo dogma politicamente correto que suprime a discussão de questões espinhosas tais como crimes de negros contra negros e ataca discursos dissonantes “insensíveis”.
Infelizmente, outros exemplos de “justiça social” do Sr. Rosa – o ressurgimento feminista, a nova visibilidade de questões transgêneras, oposição à “islamofobia” – estão em pleno território do fracasso. Não que haja algo errado com os princípios: a maioria dos americanos apoia igualdade de gênero, acredita que pessoas transgêneras devem poder viver como desejam e rejeita o ódio antimuçulmano. Mas os justiceiros sociais transformaram essas causas em uma autoparódia maligna. Seu feminismo se preocupa com homens que se sentam com as pernas abertas em locais públicos, deseja “espaços seguros” livres de discordância e denuncia opressão nas preocupações sobre os riscos da obesidade. Sua defesa dos transgêneros exige respeito a identidades de gênero customizadas com pronomes pessoais que podem mudar de uma hora pra outra, e crucifica um cineasta devotamente progressista por uma piada “transfóbica” que presume que personagens femininas são anatomicamente fêmeas. Sua anti-islamofobia despreza críticas feministas do conservadorismo islamista e culpa jornalistas assassinados por desenharem cartuns de Maomé.
Será que em 2015 os justiceiros sociais apoiaram alguma causa digna? Certamente. Mas muito de sua paixão é dirigida ao policiamento de culturas e discursos que geram crimes sem vítimas – mas que violam seus tabus morais.
Por trás desses surtos de ódio farisaico está uma ideologia distinta, ainda que amorfa, que poderíamos chamar de “JusSoc”. (A lembrança do “IngSoc” de Orwell em 1984 não é mera coincidência.) No centro dessa visão de mundo estão o mal da opressão, a virtude das identidades “marginalizadas” – baseadas em raça, etnia, gênero, sexualidade, religião ou deficiência – e a busca perfeccionista de se eliminar tudo que os marginalizados percebam como opressivo ou “invalidante”. A tais percepções é dada uma quase absoluta presunção de validade, mesmo que elas sejam compartilhadas por apenas uma fração do “grupo oprimido”. Enquanto isso, os pontos de vista dos “privilegiados” – categoria que inclui brancos economicamente carentes, especialmente se forem homens – são radicalmente desvalorizados.
Devido ao JusSoc estar tão focado em mudar más atitudes e desmascarar preconceitos sutis e insensibilidades, sua hostilidade às liberdades de pensamento e expressão não é um infeliz subproduto do movimento, mas a sua verdadeira essência. Você pode ser receptivo e respeitoso com pessoas transgêneras e, ainda assim, ser classificado de preconceituoso se não acreditar que mulheres trans que se identificam como mulheres mas têm uma anatomia masculina intacta são “mulheres de verdade” – e, ainda que você mantenha essa opinião para si mesmo, pode vir a ser chamado para provar sua lealdade à linha do partido.
Obviamente, a retaliação a opiniões impopulares não está limitada ao JusSoc; mas é difícil de imaginar outro grupo contemporâneo tão implacável até mesmo com ofensas verbais involuntárias.
Tampouco existe outro grupo tão preocupado com limpeza linguística. Uma discussão num fórum de justiçamento social propõe expurgar do vocabulário termos “capacitistas” como “louco”, “estúpido” e mesmo “deprimente”; no Smith College, ano passado, o jornal dos estudantes publicou matéria sobre um painel (ironicamente, um painel dedicado à liberdade de expressão), e, ao invés de escreverem “feroz e louco”, escreveram “feroz e [calúnia capacitista]”. Dizer que alguém tem “espírito animal” gera nariz torcido, porque isso é “apropriação” de um conceito específico a algumas culturas oprimidas. Uma lista acadêmica de “micro-agressões” inclui perguntar “de onde você é?” ou elogiar o inglês de alguém nascido no estrangeiro.
O policiamento de discurso e pensamento do JusSoc inclui autopoliciamento. “Eu controlo rigorosamente meus pensamentos e me livro de perigosos pensamentos ‘impensados’ – mato minha própria mente – com certa frequência”, escreveu o colunista Arthur Chu em uma discussão no Facebook. “É isso que você tem que fazer se quiser ser um progressista feminista antirracista, i.e., um soldado da justiça social.”
Alguns conservadores classificam o JusSoc de “marxismo cultural”; ele também tem sido comparado ao maoísmo, particularmente à Revolução Cultural e seu foco em reeducação e confissões públicas de erros ideológicos. Mas, como disse a blogueira ateia Rebecca Bradley, o movimento também tem muitos elementos de culto religioso apocalíptico que enxerga o mundo mergulhado em pecado e mal, exceto por um punhado de eleitos. Um post popular no Tumblr, grande ninho do JusSoc, lamenta que “estar no Tumblr toda hora me dá uma ideia errada do mundo. Eu começo a acreditar que todos são pró-escolha, mente aberta, com bússola moral… se importam com sexismo, racismo, vergonha do corpo etc, mas aí eu saio de casa e descubro que todo mundo é tão imbecil quanto era dois anos atrás.” Isso é um exemplo claro de mentalidade de culto.
Existe uma palavra para definir ideologias, religiosas ou seculares, que desejam politizar e controlar todo aspecto da vida humana: totalitária. Ao contrário da maioria de tais ideologias, o JusSoc não tem doutrina fixa ou uma visão utópica clara. Mas sua falta de forma o torna ainda mais tirânico. Se é verdade que toda revolução está fadada a comer seus filhos, o movimento JusSoc pode ser especialmente vulnerável à autoimolação: seu credo de “interseccionalidade” – múltiplas opressões que se sobrepõem – significa que o oprimido está sempre a apenas um passo de ser um opressor. Sua camiseta feminista legalzinha pode se transformar numa atrocidade racista ao clicar do mouse. E, como sempre podem surgir novas identidades “marginalizadas”, ninguém pode dizer com certeza quais palavras ou ideias atualmente aceitas podem vir a ser excomungadas amanhã.
A interseccionalidade também deixa o JusSoc unicamente vulnerável a conflitos e tensões internas. Como reconciliar crenças progressistas sobre gênero com uma “anti-islamofobia” que trata defensores do fundamentalismo islamista misógino e homofóbico como simpática “gente marginalizada”? É muito estranho: na University of London, em dezembro último, feministas e grupos LGBT se solidarizaram com a Sociedade Islâmica, que reclamava que uma palestra no campus da feminista e ex-muçulmana nascida no Irã Maryam Namazie configurava violação de “espaço seguro”.
O movimento de justiçamento social tem muitas pessoas bem intencionadas, que querem fazer do mundo um lugar melhor. Mas muito de seu “ativismo” não passa de um busca autocentrada de pureza moral. Remover “louco” de seu vocabulário não vai melhorar em nada os serviços de saúde e as oportunidades de emprego para os mentalmente doentes. Protestar contra a “apropriação” de tranças ou rap por parte de um cantor branco tem efeito zero nos problemas reais enfrentados pelos afro-americanos.
A influência do JusSoc se espalhou para além da academia e círculos de ativistas. Ele é agora uma forte presença no mundo tech (um popular código de conduta para comunidades digitais explicitamente “prioriza a segurança de povos marginalizados, antes do conforto de povos privilegiados”) e nas subculturas geek, como entre os fãs de ficção científica e quadrinhos. Ele também dita o tom em grande parte da mídia online. Mas seus dias de ascendência sem desafio podem ter acabado.
Os conservadores há muito tempo criticam o “politicamente correto”; mas agora até mesmo alguns progressistas estão dizendo que ativismo baseado em políticas de identidade, autocorreção e intolerância aos discordantes e aos erros é um beco sem saída. Mais do que isso. Como Conor Friedersdorf disse na The Atlantic, a adesão da esquerda a políticas de identidade de raça estimulou um crescimento das políticas de identidade de raça entre os brancos na extrema direita. E não ajuda em nada que o estigma contra o racismo perde potência quando “racismo” é aplicado ao uso de sombrero em festas de Halloween.
Felizmente, uma reação mais individualista, culturalmente libertária também tem sido fomentada – exemplificada pela elogiada 19ª temporada de South Park, que fez do “PC” seu tema central. Quem sabe? Se 2015 foi o ano do Justiçamento Social, 2016 poderia ser o ano da rebelião anti-autoritária.
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