Jessé Souza objetiva denunciar os movimentos de rua que se opõem ao governo do qual faz parte.
1.
A título de introdução, tenho o dever de esclarecer os leitores a respeito da banha do peixe-boi da Amazônia. Durante muito tempo camelôs em todo o país vendiam a milagrosa pomada feita da banha do peixe-boi, e que prometia curar todas as doenças, de frieira a câncer, depressão ou possessão demoníaca. O produto anda escasso porque seu sucesso colocou o peixe-boi em risco de extinção. Mas o golpe é global, e mundo afora vendem-se variações de uma espécie de óleo de cobra que cura tudo. O que gerou no meio acadêmico econômico uma piada peculiar: quando alguém propõe uma teoria econômica milagrosa, diz-se que se está oferecendo uma snake-oil economics.
A referência à banha do peixe-boi é importante no nosso contexto, porque muitos da ralé brasileira sobreviveram vendendo a banha do peixe-boi, e muitos dos batalhadores brasileiros podem ter adquirido a pomada milagrosa enquanto se deslocavam em transportes públicos superlotados para seus trabalhos pouco qualificados.
Sim, estou me referindo a trabalhos anteriores de Jessé Souza, resultados de profundas pesquisas empíricas e que nos trouxeram insights relevantes sobre como pensa a base da pirâmide social brasileira. Base essa pouco conhecida e reconhecida inclusive por aqueles que se dizem seus porta-vozes, ou seja, a intelectualidade de esquerda. Já tratamos disso aqui mesmo na Amálgama em outra ocasião.
2.
Justamente pela rica contribuição empírica que Jessé nos trouxe, A tolice da inteligência brasileira mereceria um voto de confiança. Seus trabalhos sobre a subcidadania brasileira poderiam sim servir de ponto de partida para uma revisão profunda da forma como vemos o Brasil. Os fatos da história recente do país estão provocando essa profunda reflexão. Afinal, nunca antes na história deste país tivemos um partido legitimamente de esquerda no poder, que firmou um pacto conservador com as elites e os mais pobres, cujas políticas intensificaram a ascensão de multidões a novos patamares de renda e consumo, até que botaram tudo a perder em um misto de corrupção desenfreada e estupidez econômica. Sim, temos no Brasil de hoje farto material para reflexão sobre o que somos e para onde vamos.
Podemos apontar, além de A tolice, outros dois trabalhos que se propõe esforço similar de revisão. Um deles é a obra de Marcos Nobre, Imobilismo em movimento, produzida no calor dos acontecimentos de junho de 2013, e devidamente resenhada aqui por Celso Barrros. Outro é A poeira da glória, de Martin Vasquez da Cunha, resenhada por Elton Flaubert. O esforço de Jessé está mais próximo deste último, por pretender apresentar uma revisão crítica das ideias que norteiam as escolhas sociais e políticas do Brasil.
Considerando o interessante material colhido em suas pesquisas empíricas e seu histórico como pesquisador de teoria social, podemos esperar muito de Jessé. Mas não espere, já adianto um spoiler: o resultado é pífio, desapontador e repleto de preconceitos.
3.
Mas antes que expressemos nosso desapontamento em detalhes, é importante esclarecer por que fazia sentido esperar de Jessé Souza uma verdadeira reflexão teórica sobre o Brasil.
Diferentemente do que supõe Bolivar Lamounier aqui na Amálgama, Jessé não é um típico representante da esquerda marxista acadêmica. Aliás, em Os batalhadores, ele entra em um embate interessante tanto com o próprio Lamounier quanto com André Singer e o gramsciano Ruy Braga, contestando com base nos dados de sua pesquisa empírica, interpretada a partir da contribuição teórica de Bourdieu, a perspectiva de todos a respeito do que veio a ser conhecida como “a nova classe média”. Ali havia muito insight bom que daria base a uma teoria interessante, se bem trabalhada, sobre como podemos analisar e compreender a base da pirâmide brasileira, fora dos limites impostos tanto pelo marxismo tradicional como por aquilo que podemos chamar de “A USP Mítica”, ou seja, os intelectuais que dentro do campo acadêmico se organizaram em torno do eixo USP-PUCSP-Cebrap.
E é aí que Jessé decepciona. O nível da decepção é similar ao que sentimos quando Rubinho Barrichello deixou Michael Schumacher ultrapassá-lo na última volta. É equivalente ao 7 a 1 na Copa do Mundo. Terrível, terrível!
4.
A introdução do texto assume um tom de manifesto. O que ele promete é denunciar como a inteligência brasileira foi sequestrada pelos 1% mais ricos do país, para produzir o que ele chama de “violência simbólica”, ou seja, a criação de uma visão de mundo que favorece os mais ricos e humilha os mais pobres. É praticamente uma bandeira de luta. Com um porém: manifestos não costumam resultar em boas teorias – o Manifesto comunista está aí para provar isso.
A sua reconstrução da história das ideias se revela totalmente problemática. Jessé inventa uma linha evolutiva que começa em Weber, avança por Parsons, se espelha em Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, atravessa Raymundo Faoro, passa misteriosamente em Roberto da Matta para chegar em Bolivar Lamounier. Uau! Seria fantástico se não fosse forçado e completamente sem sentido.
Para se entender a história das ideias, é preciso levar em consideração o ambiente estrutural em que as ideias são construídas. Usando o jargão de Bourdieu, tão caro a Jessé, é preciso analisar como se organiza o campo acadêmico enquanto mercado de bens simbólicos. E aí começa o fracasso do seu projeto: não dá para colocar esses autores na mesma estrutura, porque historicamente eles fizeram partes de polos opostos do campo acadêmico. Gilberto Freyre foi duramente combatido pela USP que acolheu Sérgio Buarque, Raymundo Faoro se constituiu como intelectual independente, Roberto da Matta representa a ciência social carioca que se opôs à paulista, e Bolivar Lamounier fez parte de uma geração que contestou toda essa herança. Podemos considerá-los todos parte de uma mesma tradição? Sim, podemos, desde que levemos em conta suas contradições e seus lugares históricos, o que Jessé simplesmente ignora.
Nesta suposta tradição-invenção, Jessé identifica uma visão liberal e pró-americana, por meio da qual uma sociedade de livre mercado seria superior. Sim, Sérgio Buarque de Holanda seria pró-americano, ou melhor, pró-anglo-saxão, visto que nesta cultura “superior” a ética do trabalho seria mais arraigada que na cultura ibero-americana. Bom, neste caso, abstenho-me, e deixo que o próprio Sérgio Buarque se manifeste, transcrevendo o que ele próprio escreve em Raízes do Brasil:
O surto industrial poderoso que atingiu a nação britânica no decurso do século passado criou uma ideia que está longe de corresponder à realidade, com relação ao povo inglês, e uma ideia de que os antigos não partilhavam. A verdade é que o inglês típico não é industrioso, nem possui em grau extremo o senso da economia, característico dos seus vizinhos continentais mais próximos. Tende, muito ao contrário, para a indolência e para a prodigalidade, e estima, acima de tudo, a ‘boa-vida’. Era essa a opinião corrente, quase unânime, dos estrangeiros que visitavam a Grã-Bretanha antes da era vitoriana. E, não menos, a dos moralistas e economistas que buscavam os remédios para a condição de inferioridade em que durante longo tempo se encontrou o país em face de seus competidores. [grifo meu]
Na obra de Sérgio Buarque, o ibérico não se contrapõe ao anglo-saxão, mas ao restante da Europa continental, na qual as relações comerciais seriam, para ele, mais impessoais que na Espanha e em Portugal. Não consigo ver como isso seria pró-americano.
Após a crítica ao que ele chama de “culturalismo”, vem a crítica ao que ele chama de economicismo. Outra invenção brilhante, colocando no mesmo saco Celso Furtado, Fernando Henrique Cardoso, os marxistas e os neoliberais, e contrapondo todos esses a Florestan Fernandes(!). Não dá, simplesmente não dá, para afirmar que Celso Furtado e Fernando Henrique Cardoso não tenham nenhuma relação com Florestan Fernandes, para dizer o mínimo. A própria Dependência e desenvolvimento na América Latina, desdenhada por Jessé, é fruto de um diálogo entre a sociologia produzida por Florestan e a teoria econômica da Cepal, especialmente de Celso Furtado.
Aí vem a pérola, que vê em A integração do negro na sociedade de classes um texto superior a Sociedade de classes e subdesenvolvimento, redigido posteriormente e no qual insights do primeiro foram se desenvolvendo. Na verdade, e isso Jessé admite, a pesquisa empírica liderada por Florestan Fernandes em A integração do negro levou a descobertas similares à ampla pesquisa do próprio Jessé sobre a subcidadania brasileira.
5.
Demolidos os pilares da teoria das elites, o que Jessé propõe para o lugar? Uma abordagem baseada na reflexão filosófica de Charles Taylor sobre As fontes do self. Neste trabalho, Taylor apresenta uma visão das origens da modernidade muito similar à racionalização proposta por Weber, mas que avança para o lugar da interioridade nesse processo. Trata-se de filosofia, e neste ponto Jessé tenta convertê-la em teoria social, buscando estruturar uma abordagem metodológica que permita analisar a construção das mentalidades. O capítulo “Existe algo de comum na reprodução simbólica das sociedades modernas?”, em que ele conduz esse esforço metatéorico, é o ponto alto de seu trabalho. Todo o resto poderia ter sido descartado, por inútil ou inadequado.
Porque depois ele volta ao tom de manifesto e estraga a festa. Em “A cegueira do debate brasileiro sobre as classes sociais e a pobreza do debate político”, ele se volta contra seus dois antecessores na presidência do IPEA, Márcio Pochmann e Marcelo Neri, para desmontar as teorias de ambos sobre a “nova classe média”. Apesar de ressaltar as diferenças, Jessé acusa ambos de adotarem uma visão economicista do fenômeno, ignorando o papel fundamental que (para ele) a acumulação de “capital cultural” – combinação de educação formal, savoir-faire e boas maneiras à mesa – exerce na separação entre ricos e pobres no Brasil. Ok, um presidente do IPEA criticar seus antecessores pode até parecer promissor, mas nesse caso seria esperar muito de dois economistas, certo? Tratar de aspectos como o capital cultural é o papel da ciência social, não da Economia. Acusar economistas de economicismo é como acusar psicólogo de psicologismo.
Na sequência, em “As manifestações de junho e a cegueira política das classes”, ele coloca esforço em demonstrar que os movimentos de junho de 2013 foram uma farsa, na qual a classe média decidiu expor sua tara anti-estado. É aqui onde quer chegar o manifesto de Jessé Souza: na denúncia dos movimentos de rua que se opõem ao governo do qual faz parte, como burocrata presidente do IPEA. Apesar de reconhecer uma aliança entre os estudantes e batalhadores, acusa a classe média de, a partir de 19 de junho, roubar o protagonismo dos ativistas originais para impor uma pauta anti-estado. E a culpa é do Sérgio Buarque de Holanda, esse terrível liberal.
6.
Como eu havia antecipado em meu spoiler, o resultado é pífio, desapontador e repleto de preconceitos.
Pífio porque, com base no vasto material empírico coletado e na sua produção teórica de fôlego, Jessé poderia ter entregue mais do que um mero manifesto anti-classe média. Desapontador porque se baseia em uma história das ideias inventada para sustentar uma ideia pré-concebida de que todo intelectual brasileiro é pró-mercado, até os trotskistas gramcianos do Blog Junho. E repleto de preconceitos porque, ao invés de buscar entender as forças sociais que desencadearam junho de 2013 e a reconstrução pela base do pensamento e das organizações de direita no Brasil, resume-se a repetir discurso de DCE contra o maligno pensamento conservador.
Por isso podemos afirmar que tudo não passa de uma crítica da crítica crítica. Jessé promete uma revolução copernicana na teoria social brasileira, mas o que entrega é a banha do peixe-boi da Amazônia.
Paulo Roberto Silva
Jornalista e empreendedor. Mestre em Integração da América Latina pela USP.
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