Como não podia deixar de ser, nascendo de Shakespeare, "Assim Começa o Mal" é pródigo em tragédias pessoais.
No terceiro ato de Hamlet, Shakespeare coloca as seguintes palavras na boca de seu herói trágico: “Assim começa o mal”, diz ele, “e o pior fica para trás”. A frase que a precede também traz a maldade em sua essência, dessa vez como reflexão e explicação do que está por vir: “É preciso ser cruel para ser gentil”. Ambas falam da necessidade que se tem, por vezes, de agir friamente e de maneira até moralmente questionável para que se evite uma calamidade ainda maior. Javier Marías empresta do príncipe da Dinamarca o título de seu mais recente romance, lançado no Brasil pela Companhia das Letras em tradução primorosa de Eduardo Brandão.
É o início dos anos 1980 e a Espanha experimenta a liberdade conquistada após a morte de Franco e o fim de seu regime há cinco anos. A liberação sexual tardia lança na boemia todo tipo de gente, inclusive as mais velhas, que aproveitam o momento para gozar de uma certa devassidão impensável em sua juventude conservadora. Essa nova faceta da sociedade espanhola não escapa aos olhos do narrador, o jovem Juan de Vere, testemunha de mudanças que colocam em conflito o novo e o velho numa época em que as pessoas ainda não tinham ideia dos próprios limites, tampouco os da sexualidade. Boa parte do livro se passa entre noitadas com mulheres, bebidas e substâncias ilícitas que eliciam confissões sombrias sobre os anos debaixo da opressão.
Como num acordo tácito, toda a sociedade espanhola cala sobre os crimes perpetrados durante a ditadura franquista, temendo que novas arbitrariedades coloquem o país novamente no caminho do fascismo e do medo. Assim, passados alguns anos da morte de Franco, pouco se fala sobre os desaparecidos, os mortos, os torturados e os extorquidos. A passagem do tempo é rápida, mas o tempo subjetivo dos personagens ainda habita o mundo fechado de outrora.
Em seu núcleo, a história fala do casamento entre Eduardo Muriel, renomado cineasta a quem de Vere serve como secretário, e sua esposa, Beatriz Noguera. O que coloca a trama em movimento é o estranho pedido de Muriel a de Vere: ele deve se aproximar de Jorge Van Vechten, amigo de longa data do cineasta, a fim de verificar um rumor desconcertante. Sabemos tanto sobre esse rumor quanto o personagem incumbido da missão: nada. Sobre Van Vechten, um pouco mais: sabe-se que durante a ditadura sua carreira como médico obteve uma ascensão meteórica e que atendeu gratuitamente muitos dos inimigos do regime que não tinham condições para pagar um tratamento. No processo, de Vere fica encantado pela figura fascinante de Beatriz.
Muito se falou sobre as semelhanças entre Assim começa o mal e Os enamoramentos, romance anterior de Marías. Alguns personagens de fato se repetem em participações especiais breves e sem grande impacto na narrativa, mas o parentesco entre os livros fica evidente pela temática. Tanto em um como em outro, o amor é complicado por crimes cometidos contra a confiança: inveja, traição, segredos de longa data, enganos inocentes. É a clara influência de Shakespeare, mas também de Hitchcock, jamais citado mas obviamente referenciado durante as longas cenas em que Juan de Vere vai às ruas para espionar outros personagens, como um detetive particular obstinado.
Em meio a isso tudo, as habituais digressões de Javier Marías que, muito distantes de serem apenas malabarismos linguísticos sem substância, dão corpo ao romance. É na digressão que acontece a verdadeira ação, ainda que subjetiva. Os vaivéns temporais e reflexivos da narrativa compõem um painel cinematográfico que aproxima o leitor dos personagens – é quase possível tocá-los. Pelos olhos de Juan de Vere enxergamos a vida pública do cineasta Eduardo Muriel e a vida particular do casamento que se esfacela. Como ele, estamos impotentes, mas movidos por uma curiosidade nociva que, em nosso caso, nos faz virar página após página, enquanto Juan lança-se em mistérios mais perigosos.
Como não podia deixar de ser, nascendo de Shakespeare, Assim começa o mal é pródigo em tragédias pessoais. Da impossibilidade de conhecer a verdade – qualquer uma – ao transtorno mental grave, vítimas e carrascos convivem numa paz delicada e fugidia. Perdoar ou não perdoar? Como lançar uma campanha nacional de punição aos criminosos da ditadura? E, mais importante, vale a pena revisitar um passado dolorido já remoto para que se faça justiça no presente? Ela é sempre o caminho mais correto? E o que é, afinal, justiça?
São perguntas que movem adiante mais um grande livro de Javier Marías. Outras surgirão, é claro, mas cabe ao leitor o deleite da descoberta. Assim começa o mal pode ser lido como um mistério, mas não no sentido convencional, investigativo. As perguntas estão lá e as respostas em algum lugar das mais de 500 páginas. Quem souber procurar certamente fará melhor proveito. O romance será melhor quanto melhor for o leitor.
Douglas Marques
Psicólogo curitibano, atua junto a migrantes e refugiados. Também se refugia, mas nos livros. Está concluindo especialização em antropologia cultural.