A responsabilidade da literatura

por Gustavo Melo Czekster (07/02/2016)

Como qualquer leitor apaixonado, o crítico Rodrigo Gurgel procura livros cada vez melhores.

"Crítica, literatura e narratofobia", de Rodrigo Gurgel (Vide Editorial, 2015, 444 páginas)

“Crítica, literatura e narratofobia”, de Rodrigo Gurgel (Vide Editorial, 2015, 444 páginas)

Existem palavras que, pelo seu uso excessivo, acabam adquirindo um tom pejorativo. É perigoso matar a força de uma palavra: quando ela deixa de lado a sua capacidade de significar e passa a ser o invólucro vazio de uma ideia, acostumamo-nos a usá-la de forma indiscriminada, sem pensar sobre o seu sentido. No mundo atual, várias palavras passaram por esse esvaziamento, mas poucas sofreram maior desgaste do que o adjetivo “polêmico”. De um início promissor, em que designava a pessoa capaz de estabelecer um diálogo provocativo e com argumentos capazes de estremecer as convicções alheias, o pós-modernismo, com seu receio quase irracional e furioso à alteridade, estabeleceu que “polêmico” é todo aquele que vai contra as verdades constituídas pelo grupo majoritário e, por conseguinte, alguém que não deve ser levado à sério. Está na hora de parar de ter medo das pessoas polêmicas ou desconsiderar as suas opiniões, e começar a aprender com elas, respondendo às suas ideias não com minimizações, mas com argumentos. Neste contexto, o “polêmico” deixaria de ser aquele que simplesmente discorda, mas o que abre nossos olhos para novas possibilidades.

Quem está acostumado a ler os textos do professor Rodrigo Gurgel no seu site, sabe que muitas vezes eles são considerados “polêmicos”, existindo inclusive quem os considera “violentos”, outra palavra que, usada com exagero, passa por um processo de descaraterização. Contudo, um bom texto de crítica literária não deve ser aquele com o qual o leitor concorda, mas o capaz de tirá-lo da sua zona de conforto. Neste sentido, a leitura de Crítica, literatura e narratofobia, nova obra de Rodrigo Gurgel, atendeu plenamente as expectativas.

Reunindo textos publicados no jornal Rascunho, na Folha de São Paulo, nas revistas Sibila e Dicta & Contradicta, além de material publicado no site do autor, Crítica, literatura e narratofobia contém um vasto panorama das leituras realizadas por Gurgel. Não são poucas as pessoas que se orgulham e apregoam a quantidade de livros que já leram, transformando a leitura em uma experiência mensurável e, como tal, insensível. A leitura é algo vivo, dinâmico. Uma pessoa dizer que leu 1.000 livros é diferente de alguém escrever um texto em que os mesmos 1.000 livros lidos estão condensados, espreitando o seu leitor e aptos a surgir acaso invocados. Cada texto de Gurgel trata não somente de uma obra ou assunto específico, mas apresenta vários outros textos e leituras já realizadas, demonstrando que a opinião do autor está baseada em todo o conhecimento que ele possui, não somente no objeto daquele texto. Dessa maneira, o leitor navega sobre um pensamento ágil, em que Madame Bovary é analisada não somente pelo conteúdo da obra, mas como construção de uma narrativa realista através das cartas de Flaubert e dos comentários de Henry James, ou que, ao analisar Nelson Rodrigues, procura ver além dos demais críticos que repetiram sempre as mesmas opiniões, tratando das visões de Sábato Magaldi e de Álvaro Lins para construir a sua, distante de um alegado maniqueísmo que paira sobre a obra rodrigueana.

Com o objetivo de construir o seu argumento, o autor se ampara em uma série gigantesca de leituras, que lhe dão estofo intelectual para detectar aquilo que acha ruim e elogiar aquilo que funciona. Ao contrário do que muitos pensam atualmente – pois a palavra “crítica” é outra que adquiriu sentido pejorativo –, criticar não é somente falar bem ou mal de um texto. A crítica verdadeira vai muito além desta simplificação. Ela envolve o ato de se posicionar diante de um texto, sem deixá-lo de lado e sem esquecer o suporte teórico que lhe dá consistência. Um bom crítico não lê somente os livros que estão diante dos seus olhos, mas todas as obras que lhe antecederam e até mesmo as obras futuras. Ele é capaz de detectar, no movimento de um texto, a primeira pedra que formará uma avalanche; da mesma forma, também desmistifica obras excessivamente incensadas, mostrando que o rei está nu. A crítica é farol para os escritores, e uma lanterna a guiar os leitores pelos caminhos sinuosos de um livro.

No decorrer da leitura de Crítica, literatura e narratofobia, aconteceu uma gradual modificação do que eu esperava encontrar. No início, imaginava que leria uma série de textos bem escritos e com visões inesperadas sobre a literatura. Entretanto, à medida que a leitura acontecia, percebi que os textos nunca deixaram de ser bem escritos – outro grande mérito do livro, ler posições críticas feitas para leitores entenderem, não para acadêmicos esconderem seus pensamentos atrás de um discurso confuso –, mas o autor demonstrava ter uma grande admiração e respeito pela literatura – para não dizer amor.

Assim como qualquer leitor apaixonado, Rodrigo Gurgel procura livros cada vez melhores, obras que preencham a sua necessidade cada vez maior de leitura. Está condenado a andar entre bibliotecas e livrarias, sempre procurando textos memoráveis, e, neste sentido, Gurgel demonstra que é um inconformado. A mesma literatura que lhe dá tantos prazeres é difícil de se encontrar no estágio esperado; ela possui mais decepções do que alegrias, e só saberemos ao final da leitura de um livro se ele valeu a pena ou não, se ele era o buscado ou não, o que nos deixa, assim, condenados à eterna insatisfação. O verdadeiro crítico não possui espírito ácido, mas é o arauto que percorre linhas e parágrafos, procurando um texto bom para indicar para outros leitores se deliciarem. No ensaio “Perene inconstância – Hans Jacob Christoffel von Grimmelhausen”, o autor revela o seu verdadeiro objetivo:

O mais grato – e infelizmente raro – prazer do crítico literário é qualificar um livro de genial. Pouco importa que ele não seja o primeiro a reconhecer o valor da obra, admirada por todos que amam e estudam a literatura do Ocidente, pois basta-lhe a satisfação de afirmar a seus poucos leitores: leiam, é genial – O Aventuroso Simplicissimus, de  Hans Jacob Christoffel von Grimmelhausen lhes concederá exatamente o que promete em sua epígrafe: “Afastar-se da loucura e viver onde a paz mora”.

Quando comenta os livros, Rodrigo Gurgel não pretende mostrar os pontos fracos para regozijo próprio, mas para que tais equívocos não se repitam. Nenhum escritor está a salvo do seu olhar arguto, seja ele um cânone, seja um desconhecido. Outro relevante mérito de Crítica, literatura e narratofobia é o tratamento igualitário que o autor dispõe para as suas leituras. Ainda que possa parecer injusto, para muitos escritores, serem comparados com gigantes consolidados da literatura universal, uma das piores características da pós-modernidade é alguém não ter a obra lida e reconhecida por seus próprios méritos, mas por causa da fama do autor que precede o próprio livro. É algo muito comum: o público não compra os livros por causa da história que irá encontrar, mas por causa do seu autor. É um movimento que se espalhou para a dita crítica literária brasileira, a qual, com seus inúmeros rapapés ao histórico de determinados autores, acaba deixando de lado a análise da obra em si. Em tal contexto, novos nomes dificilmente surgem, pois sequer são lidos, ocultos pelas obras deficientes e irregulares de nomes já consagrados. Para Gurgel, contudo, o que importa não é o nome do autor, e sim a narrativa. Para tanto, ele se afasta das “panelinhas” literárias, do “beija mão” de autores medianos, do elogio à obra medíocre. Quando fala de Wilson Martins, um crítico literário que admira, Gurgel parece estar desabafando a seu respeito:

No país do compadrio, da mancomunação, do puxa-saquismo, o comportamento sobranceiro e reservado de Wilson Martins, avesso às panelinhas, não apenas o isolou, mas, somado à sua severidade no julgar e à sua ironia, granjeou-lhe inimigos em toda parte. Eu diria, aliás, que a fila dos ressentidos é quilométrica e disputa, palmo a palmo, cada fatia de calçada com as viúvas de Salinger. E tudo por um simples motivo: nosso crítico não era paternal, não silenciava diante de erros e omissões, não se fazia de cego ou surdo quando discordava dos supostos mandarins da literatura brasileira. Mas o que os criticados entendiam como ataque pessoal era apenas a concretização de um imperativo caro a Martins: “O clima da crítica é a polêmica”, ele dizia.

Colocar a história no centro da análise crítica é tratar do que realmente importa para o leitor, e não deixa de ser sintomático que as pessoas chamem de “polêmico” aquele que é simplesmente justo e sincero. Em alguns momentos, por causa deste caráter de crítico que procura boas histórias no meio de um oceano bravio de livros repetidos, Gurgel revela o desânimo não só do crítico, mas do leitor, como no ensaio “Liberdade para contar uma boa história – Igor Gielow”:

Num mercado editorial em que predominam narrativas fragmentadas, herméticas ou repletas de nonsense, encontrar uma boa história tornou-se exercício cansativo, desgastante.

Não me refiro ao romancinho água-com-açúcar ou ao thriller feito de encomenda para se tornar best-seller, mas a histórias que não tratam o leitor como idiota ou querem transformá-lo, à força, num decifrador de hieróglifos.

Refiro-me a escritores que não desprezam o leitor, que não o condenam a percorrer seus livros como viajantes perdidos numa selva escura – e não defendem certo tipo de escrita proclamando preceitos estéticos que morreram com as velhas vanguardas.

(…)

Refiro-me àqueles escritores que não sofrem de narratofobia e escrevem romances que são romances – e não continhos estendidos que alguns editores ou críticos chamam de romance por motivos arrevesados.

Apesar de duro, o diagnóstico da literatura atual é preciso. Para alguém que aprecia uma boa leitura, feita de forma a elevar o seu espírito, é frustrante ter que atravessar desertos de narrativas frágeis e sem motivação, feitas com a “narratofobia” aludida por Gurgel – o medo de se entregar de verdade à história que lateja nas veias, de ousar, de ir além das formas fáceis pré-concebidas. No entanto, a sequência desanimada que acabei de transcrever é seguida por uma declaração de esperança na força da verdadeira literatura:

Mas, acreditem, o esforço de buscar bons narradores não debilita – ao contrário, empolga. E às vezes somos surpreendidos por uma boa história, que nos obriga a seguir o narrador até a última página.

O mesmo acontece com Crítica, literatura e narratofobia. A sucessão de ensaios sobre a literatura e o fazer literário podem ser considerados como polêmicos, mas também como uma sugestão para os futuros autores – e uma abertura de olhos para os leitores que pretendem mais da literatura. Não concordei com todas as ideias e críticas que Rodrigo Gurgel manifestou sobre as obras que conheço, mas é inegável que minhas convicções mudaram, e esta é a função da crítica que precisamos ter não só na literatura, mas no país inteiro: permitir o livre debate, não acreditar em ideias consolidadas, não seguir cegamente nomes e sempre questionar o óbvio. Diante deste cenário, como Flavio Morgenstern falou na introdução do livro, é possível que Rodrigo Gurgel seja o único crítico literário brasileiro: aquele que, como Cassandra, fica nos muros de Troia, condenada a dizer a verdade sem ser ouvida. Mas, assim como existem livros que valem à pena, também sempre existirão leitores aptos a escutar – e a refletir mais sobre aquilo que leem.

Gustavo Melo Czekster

Autor dos livros de contos Não há amanhã (2017) e O homem despedaçado (2011). Doutorando em Letras pela PUCRS.

Avatar
Colabore com um Pix para:
[email protected]