Mundo

The Donald: o espetáculo da falta de realidade

por Elton Flaubert (27/02/2016)

As declarações racistas e xenófobas de Trump fazem parte da construção de seu personagem, que apela para o nacional-populismo.

trump

A loucura do amanhã não está em Moscou,
mas muito mais em Manhattan.
G. K. Chesterton

1.

Era uma tarde de verão em Nova York, quando o excêntrico Donald Trump convidou os repórteres para um anúncio em sua torre de estimação. Conforme já era especulado há meses, ele confirmava naquele dezesseis de junho que entraria no jogo presidencial. O sonho da presidência sempre esteve no radar do empresário que fez de seu nome sua marca, e sempre falou mais do que realizou. Em 2000, chegou a ganhar as primárias na Califórnia e em Michigan pelo Partido da Reforma, mas as poucas perspectivas de vitória lhe fizeram abandonar a disputa. Dessa vez, ele estava disposto a monopolizar o noticiário.

O primeiro discurso de Donald como presidenciável era um feitiço. Tudo era calculado. Todas as promessas e pérolas, todos os slogans, não passavam de uma publicidade intencional, tendo como destino o coração de uma nação perdida no materialismo, no pragmatismo rastaquera e no ressentimento nativista. A primeira frase sintetizava toda a obra: “Estou oficialmente na corrida pela presidência dos Estados Unidos, vamos fazer nosso país grande de novo”.

“Make America Great Again!” ressoou de sua torre de negócios na Quinta Avenida de Nova York para o resto de um país ansioso pela mania de grandeza. Não haveria apelo à identidade da grande América sem um inimigo externo. Donald escolheu, dentre os prováveis, o mais frágil. Esbravejou: “Quando o México nos envia sua gente não está nos enviando os melhores. Estão enviando pessoas que têm muitos problemas e os estão trazendo com eles. Trazem drogas, crime, são estupradores”. Para impedir essa conspiração mexicana, um muro na fronteira foi prometido. Não um muro, mas um forte, enorme e grande muro seriam construído pelo empresário que vive de fazer riqueza. Ali estava claro: The Donald não era um candidato, mas um personagem. A passagem definitiva da política para o espetáculo do show business.

Contra a classe política, a quem acusou de burra e controlada pelos lobbies dos negócios, Trump apresentou-se como o empreendedor de sucesso que não precisaria de doações eleitorais. Contra estes estúpidos, era preciso um líder forte que faça acontecer: “O sonho americano está morto. Mas, se vencer, o construirei de novo, maior e melhor que nunca”. O lançamento de sua campanha não deixou dúvida que Donald seria um fenômeno de marketing, onde as regras do métier não se aplicavam mais. Daqui em diante, suas gafes não destruíam sua imagem de político, mas contribuíam para o carisma de seu personagem. Fazendo-se mercadoria de sucesso, apelava ao nativismo e à demagogia populista.

No entanto, tudo não passava duma canhestra caricatura para os famélicos de experiência. Apesar de vender a imagem de empreendedor independente, Donald – e sua longa história de negócios sombrios – são filhos do capitalismo de compadres.

O histórico de Donald Trump nos apresenta um empresário sem escrúpulos, capaz de qualquer ação para satisfazer seus interesses. Para isto, sempre recorreu ao Estado para se safar de falência, sair da mão de credores e conseguir o que precisava para seus empreendimentos imobiliários e cassinos. Em 1985, Trump pagou um empréstimo de campanha do democrata Andrew Stein, que concorria à presidência do conselho de Nova York. Em troca, como responsável pelas leis de uso da terra na cidade, Stein favoreceu seus negócios. No primeiro debate republicano na Fox News, Donald confessou:

I was a businessman. I give to everybody. When they call, I give. And you know what? When I need something from them, two years later, three years later, I call them. They are there for me.

Na Manhattan da década de 1980 e 90, o Donald real patrocinava políticos que poderiam facilitar sua vida, adoçava sindicatos e se relacionava bem com a máfia de Nova York e seus ramos no setor imobiliário. Ele construiu um Trump Plaza na East Side com o material de construção da S&A Concrete, que tinha como proprietário Anthony “Fat Tony” Salerno, ligado à máfia italiana. Depois, Salerno foi preso e o seu advogado, Roy Cohn, também trabalhava para Trump. O atual candidato se defendeu na justiça alegando extorsão. No entanto, ele sempre teve relação amigável com os mafiosos, a tal ponto que vendia apartamentos abaixo do preço de mercado para eles.

Na década de 1990, Trump estava com sérios problemas financeiros depois de ter financiado suas obras com títulos de alto risco. Sua dívida somava US$ 3,4 bilhões de dólares e os credores poderiam lhe tirar todos seus ativos econômicos ou forçar-lhe a falência pessoal. Donald driblou algumas leis e deu garantias pessoais para seus credores, incluindo o Plaza Hotel Trump em Atlantic City e a Trump Tower em Manhattan. Através de suas influências, conseguiu também um empréstimo bancário de US$ 50 milhões e a suspensão dos juros de sua dívida que chegavam a US$ 2 bilhões.

Atravessando leis e fazendo lobby com políticos, Trump usou da alavancagem decorrente de suas licenças de cassino concedidos pelo Estado para pagar pelas empresas falidas, mantendo sua propriedade parcial sobre elas. Quem saiu perdendo, foram os credores. Quando o Citibank, um dos seus principais credores, iria assumir o controle do Plaza em Nova York, tirando a gestão das mãos de Trump, o mesmo apelou para um sindicato corrupto que se opôs aos investidores estrangeiros. Donald também apelou aos burocratas do departamento de edifícios de Manhattan a respeito de problemas de estrutura do seu próprio hotel.

Trump ainda tinha tempo para manter suas ligações com a família Clinton, a quem fez doações de campanha e para sua fundação. Em 2008, ele foi um dos apoiadores da pré-candidatura de Hillary. O milionário continuou usando sua influência com políticos para receber benefícios como isenções fiscais. E, desta maneira, ia conseguindo licenças para construir torres extravagantes e permissões para cassinos. Seus antecedentes, que envolviam acusações de subornos, extorsões e chantagens, eram deixado de lado pelas autoridades.

Ainda na década de 1990, Trump usou suas ligações políticas para tentar desapropriar uma viúva idosa que morava perto de seu cassino em Atlantic City. O objetivo era construir no lugar um parque de estacionamento e uma área de espera para limusines. Como a senhora recusou a venda, Trump apelou para os políticos argumentando que o crescimento dos seus negócios trariam mais empregos e impostos. Felizmente, foi impedido pelos tribunais.

2.

Donald Trump é a essência do crony capitalism. Apesar de seu personagem aparecer para boa parte dos americanos como o candidato mais pró-mercado, ele é, na verdade, um pró-business favorável ao autoritarismo dos homens endinheirados que mandam na sociedade.

No estado de Iowa, muitos plantadores de milho se beneficiam de uma lei federal protecionista que obriga a gasolina em todo o território nacional a ter um percentual do etanol de milho em detrimento do interesse dos consumidores. Trump fez campanha no estado atacando seu principal concorrente, Ted Cruz, por ser contrário a estes subsídios. Em matéria econômica, Donald é basicamente um tipo de democrata. Ele se coloca como o candidato que defende subsídios, protecionismo e altas taxações em produtos importados para “assegurar o emprego dos americanos”.

Trump também usou o termo desgastado “establishment” como publicidade própria. Fazendo parte da elite econômica, endossando e contribuindo para vários candidatos, e recebendo sempre que possível um agrado em troco, Trump, ainda assim, fez de seu personagem o representante do anti-establishment — enquanto passou toda a vida sugando dinheiro e influência dele.

Não só em economia Trump se parece um democrata. Nos costumes, é considerado um moderado dentro do partido republicano. Essas questões mostram, na verdade, apenas que Trump não é um político tradicional, mas um personagem que se molda a cada condição. Defendeu aborto quando foi do seu interesse, virou pró-vida no retorno ao GOP. Recentemente, ele utilizou o mesmo argumento democrata para defender a Planned Parenthood. Depois que a entidade foi pega negociando fetos abortados, os republicanos começaram uma campanha para que ela não tivesse mais acesso a nenhum dinheiro público para seus projetos. Os democratas argumentam que, apesar dessa ilegalidade, a Planned faz muitas coisas boas, principalmente para a saúde da mulher. Trump repetiu este argumento em favor da Planned num dos debates republicanos.

Todavia, Donald precisa ser entendido como um personagem. O homem de negócios de Manhattan, adepto dos valores liberais e que crê que no autoritarismo dos metacapitalistas para dar rumo ao país. Trump é um personagem, uma propaganda ao estilo americano, uma caricatura de “machão” para pessoas fracas interiormente que compensam suas frustrações na figura do líder carismático.

Numa época onde as pessoas se atraem cada vez mais por personagens caricatos como compensação de sua fraqueza interior, Donald incorpora a política ao espetáculo. A fraqueza interior advém justamente do abandono da ideia de essência na experiência, e a sua compensação é a projeção numa figura que caricaturiza a coragem e a fortaleza. Donald é uma imitação macabra da honra perdida. Sem qualquer tipo de constância, o milionário bufão se despe de tudo (convicções, pessoas, atividades) como troca de roupa. No entanto, seu estilo de autocrata, sua macaqueação da honra, torna-se uma compensação pela completa falta de sensibilidade duma essência na experiência real.

3.

Desde que apareceu na cena republicana como presidenciável, com seus modos grosseiros, ataques pessoais, extravagâncias e apelo nacional-populista, Donald tem sido chamada por muitos conservadores de jacksoniano (e também de fascista).

Andrew Jackson foi o fundador do Partido Democrata. Ele era um demagogo populista que simbolizava a coragem para seus adeptos. Um nativista do país independente que jogava duro contra os índios, com um forte apelo nacionalista. Em geral, seu discurso ressoava entre trabalhadores e fazendeiros do sul e do meio-oeste. O que Donald defende representa mais simbolicamente seu personagem do que tem alguma substância real. Sua imagem é de um jacksoniano.

Ao identificar os latinos do México como o inimigo da pátria, ao propor um muro (pago pelo inimigo) para conter a imigração, ao clamar pelo banimento temporário de muçulmanos, ao apelar para o originalismo do mito fundador americano, Trump simboliza fortes traços nacionalistas e nativistas. Na economia, Donald vai ao populismo, apelando ao protecionismo e à intervenção estatal como pai forte que assegura o emprego dos seus filhos.

As propostas são em si absurdas. Primeiro, porque não há uma crise imigratória nos Estados Unidos. Na última década, o número de ilegais caiu de 12 para 11 milhões, principalmente depois da queda da economia americana. A maioria dos que entram ilegalmente hoje não vem pela fronteira do México, mas costuma ficar após o vencimento do visto. Ainda assim, a taxa de criminalidade entre ilegais é menor do que entre legais. A maioria deles são pessoas desesperadas que largam tudo em seus países de origem em busca do incerto noutro lugar, dispostas a aceitar trabalho em qualquer coisa, a crescer e se adaptar.

Além de um muro inócuo (tanto quanto a promessa de fazer o México pagar por ele), Trump (e outros) propõem a deportação de todos os ilegais. Se assim fosse, seria uma das maiores imigrações forçada da história, com custos milionários, relembrando Hitler e Stálin. Qualquer país deve cuidar de suas fronteiras, mas na prática há 11 milhões de ilegais nos Estados Unidos, a maioria está bem estabelecida há mais de uma década, trabalha e não comete crimes. Essas pessoas precisam receber uma chance, e não serem deportadas. Obama foi um dos presidentes que mais deportou ilegais, enquanto o republicano Reagan foi um dos que mais facilitou a anistia em troca do endurecimento nas fronteiras.

O banimento de muçulmanos também é outra proposta inócua. Como se identifica um muçulmano? Por declaração de vontade, qualquer um pode deixar de ser muçulmano e voltar a ser a qualquer instante. Por etnia, teria que se criar um departamento da raça para decidir quem é ou não muçulmano. O banimento não só arruinaria a economia americana, como impediria a entrada de aliados americanos e de pessoas sem qualquer tipo de relação com o terrorismo.

As declarações racistas e xenófobas de Trump fazem parte da construção de seu personagem, que apela para o nacional-populismo. Por isto, tudo que envolve o personagem relaciona-se com a volta violenta dos mitos. Ele representa a crença de que a volta do ato sacrificial solucionará todos os conflitos e, através de um poder autocrata, trará a paz social. É um apelo nostálgico a uma ordem que só pode ser tribal, localista, nativista. A sanha do businessman Trump em identificar todos os males com os “de fora” (muçulmanos, imigrantes, etc.) representa aquela nostalgia do sacrifício como garantidora da ordem social que é, em si, a saudade dos mitos e da relação com a divindade encarada como troca. Ofereça de novo essa gentalha aos nossos deuses e teremos a paz de volta.

4.

Donald não tem substância. Tudo nele é falso, escancaradamente cínico e falso. Sua força vem justamente do símbolo que encarna como restaurador pagão dos mitos de fundação. Ele é comparável mais recentemente a um tipo americano de Berlusconi, devido a suas origens.

Todavia, seus nexos simbólicos estão mais para Vladimir Putin, que apela para a esquerda e para a direita, numa espécie de nacionalismo russo que se orgulha dos seus mitos (e aqui mora seu tradicionalismo opaco que transforma religião em ideologia) contra os valores do mundo liberal. Mesmo quando acerta nessas críticas, Putin – e seus seguidores – o fazem em nome de uma nostalgia da ordem forte que pretendem encarnar, tomando para si a função de transformador da sociedade (Make America Great Again!, não se esqueçam). Nesse sentido, uma ponta encontra a outra, e a restauração – a partir da nostalgia de outrora e da opacidade do tradicionalismo – encontra-se com o ímpeto revolucionário de transformar o estado de coisas, centrando-se numa figura de mão pesada, que caricaturiza a força e a coragem dos antigos.

Do culto humanista da tradição local, caro a certo conservadorismo americano, para o nacionalismo boçal é questão de enfoque e radicalidade. O personagem de Trump torna-se forte justamente por agregar vários elementos. Donald tem apelo entre alguns conservadores pelo traço nacionalista, originalista e anti-imigração, principalmente no rastro do racismo e das leis segregacionistas de décadas passadas. E tem apelo entre os moderados pelos valores liberais, por ser um homem de negócios e resgatar a macaqueação de fortaleza que valorizavam nos neocons. Por isto, é um personagem com capacidade eleitoral difícil de derrotar.

Seu apelo nacionalista se encontra com um governo intervencionista e paternalista, dirigido por um homem forte e carismático. Assim como Jackson, Trump possui o mesmo perfil eleitoral de um democrata. Ele alarga a base republicana para a classe trabalhadora, irritada com a lenta recuperação após a crise de 2008 e com a concorrência com os ilegais, e nostálgica de outra América.

Seu maior problema numa eleição nacional é a rejeição dentro do próprio partido, entre hispânicos e independentes. Uma pesquisa da PPP mostrou que Trump é mais rejeitado do que aprovado pelo eleitorado de todos os outros candidatos republicanos. Em especial, seu pior desempenho é entre os “very conservative” e o seu melhor desempenho entre os “liberals”. Não à toa, seus dois maiores concorrentes são conservadores sociais bem definidos, Ted Cruz e Marco Rubio. A principal revista conservadora, National Review, publicou uma edição com capa “Against Trump”.

As primárias de 2016 podem ser definitivas para o GOP, partido que Abraham Lincoln ajudou a fundar para interromper a escravidão. São elas que decidirão se o partido continuará sendo o do conservadorismo ou se tomará um novo rumo com o nacional-populismo. A indicação de Donald causará rachas internos irreversíveis.

O Partido Republicano terá que escolher entre os filhos de Jackson e os filhos de Reagan. Em sua época, os filhos de Andrew Jackson foram os democratas racistas que aprovaram leis de segregação racial depois da abolição da escravatura. Agora, os nostálgicos pelos mitos se voltam para Trump em busca de seu discurso contra imigrantes. Já os filhos de Reagan compreendem que a mensagem conservadora tem substância, identidade, logo, é universal, e pode ser defendida por qualquer um. Por um filho de imigrantes cubanos, como Rubio ou Cruz, por um negro, como o senador Tim Scott, ou por uma filha de família indiana, como a governadora de South Carolina, Nikki Haley. As cartas estão na mesa.

Elton Flaubert

Doutor em História pela UnB.