No Brasil, o Direito Administrativo é, em essência, um direito do Estado e para o Estado.
Ao acompanhar o voto do ministro Edson Fachin na questão do acesso direto, por parte da Receita Federal, aos dados bancários dos contribuintes, seu colega Luís Roberto Barroso ressaltou que o princípio da transparência, “significando clareza, abertura e simplicidade”, vincula tanto o Estado quanto a sociedade. “Se a criação do Estado é um processo coletivo, deve-se reconhecer que a solidariedade se projeta também no campo fiscal.” Para ele, o pagamento de tributos é fundamental, lastreado na feição fiscal assumida pelo Estado e no elenco de direitos fundamentais, “que pressupõe para sua concretização o necessário financiamento.”
Enquanto em países civilizados a proteção às liberdades e à privacidade dos cidadãos tem sido assunto cada vez mais importante — especialmente na era pós-Snowden que vivemos –, no Brasil privacidade e liberdade são meros detalhes, direitinhos facilmente superáveis pela vanguarda iluminista de Ministros do Supremo.
O argumento do Ministro Barroso é ruim, para ser bastante generoso: ao dever de transparência do Estado não se equipara um dever de transparência dos indivíduos pelo simples motivo de que o Estado, com todos os seus recursos e poder coercitivo, não é equiparável a um indivíduo.
Mas, convenhamos, a decisão não é surpresa. Decisões favoráveis ao Fisco e ao Estado são comuns, e bastante compatíveis com a lógica do direito brasileiro. Aqui, o Direito Administrativo é, em essência, um direito do Estado e para o Estado. Interesse público, não é mesmo?
Talvez a nossa História — e nossa tradição patrimonialista — ajude a explicar o aumento excessivo dos poderes administrativos do Estado. Comparem, por exemplo, a ênfase brasileira no direito administrativo como direito das prerrogativas do Estado com a definição de direito administrativo encontrada no manual de Timothy Endicott:
The core of administrative law is the provision of processes independent of the government, for the prevention of government action that can be identified as arbitrary with no breach of comity. That is, the core task of administrative law is to impose the rule of law on public authorities.
É claro que na Inglaterra (de onde escreve o Endicott) o Estado também possui prerrogativas. Mas percebam a diferença na própria maneira de encarar o ramo do direito mais ligado à atuação estatal: ao invés de entender o princípio organizador do direito administrativo como conjunto de “prerrogativas estatais”, Endicott o vê como um conjunto de “limitações à administração”. Pode parecer pouca coisa, mas não é.
Primeiro porque o que consideramos ser o propósito de determinado ramo do direito impacta diretamente na forma como o interpretamos. Em segundo lugar porque a forma como encaramos o direito que regula a atividade estatal diz muito sobre nossa própria visão do Estado. E também sobre nossa visão do indivíduo.
No Brasil, liberdades individuais ainda são vistas — quando se trata dos poderes da administração — como uma inconveniência que se deve superar quando possível, e aturar quando necessário.
Horacio Neiva
Mestre em Teoria do Direito pela USP.