O enigma para a supremacia da Atenas de Péricles e da América de Jefferson encontra-se em um elemento comum: o império da lei.
1.
A aventura no empreendimento da civilização se confunde com a própria aventura individual em prol da liberdade. Associar a luta contra o arbítrio, em todos os tempos, a adjetivos que descrevem movimentos muito específicos e sem qualquer unidade teórica, a exemplo de neoliberalismo ou liberalismo, este último manejado pela primeira vez no 18 Brumário de Napoleão, ou a substantivos marcados pelo mesmo desacordo semântico, pode contribuir para que o intérprete permaneça confinado em teias mentais divorciadas do mundo dos fatos.
Hegel perspicazmente observou que liberdade é um conceito somente assimilável no âmbito das instituições. Nesse particular, a intuição de Hegel relaciona-se, em certa medida, a dos pensadores tributários do individualismo metodológico, uma vez que a ação humana deve ser o motor das avaliações sociais desde a moldura de um quadro institucional que a respalde. E certa vertente liberal, ou programa evolucionário, desenvolveu um panorama bem definido e sistemático de princípios que englobam as muitas nuances da salvaguarda à liberdade individual em relação ao poder político. Como todo programa de princípios, a tentativa em identificá-lo a um modelo pronto e acabado de sociedade, ou a uma perspectiva única de civilização, despreza as sutilezas do argumento, consoante explica F. A. Hayek: “o princípio fundamental segundo o qual devemos utilizar ao máximo as forças espontâneas da sociedade e recorrer o menos possível à coerção pode ter uma infinita variedade de aplicações”.
O economista austríaco, um dos principais herdeiros dessa tradição, rejeitou a diferença usual no Continente entre liberalismo político e econômico (elaborada principalmente pelo filósofo italiano Benedetto Croce, como a discriminação entre liberalismo e liberismo), porquanto percebeu que a liberdade de ação é um todo indivisível, e a visualizou, sobretudo, como esfera privada inviolável em relação ao poder político. Enquanto os adeptos da liberdade no sentido negativo se preocupam em limitar a autoridade como tal, os simpatizantes da liberdade no sentido positivo querem a autoridade colocada em suas próprias mãos, mormente nas esferas social e econômica. “Não são duas interpretações diferentes de um único conceito, mas duas atitudes profundamente divergentes e irreconciliáveis para com os fins da vida”, nas palavras de Isaiah Berlin.
Conquanto a obra de John Rawls seja conhecida como o mais importante livro do Filosofia Política do Século XX, também em razão da importância em retomar o debate quanto às questões normativas após a hegemonia do positivismo lógico, e da terra arrasada proporcionada pelos projetos totalitários, o texto Os fundamentos da liberdade, publicado em 1960, não teve o mesmo impacto que o de Rawls, lançado somente onze anos após a obra de Hayek. O pioneirismo do economista austríaco, no debate institucional, permanece pouco reconhecido, uma vez que sua tradição de pensamento, filiada ao que Berlin nominou liberdades negativas, o manteve em descompasso ao liberalismo contemporâneo, paradigma em que as liberdades positivas resplandecem como o grande projeto redentor da humanidade.
Em uma perspectiva um tanto quanto cética no tocante a projetos redentores que desprezam a condição humana, mas totalmente ciente da importância de planejamentos afinados à sobrevivência de nossa espécie, autores como Hayek recusaram-se a compulsar locuções como neoliberalismo e liberalismo, uma vez que nas últimas décadas, nos Estados Unidos, o termo liberalismo assumiu, inclusive, o formato de intervencionismo estatal em benefício de vazios teóricos como justiça social que, em última instância, dizem bem mais sobre o poder político, ou a respeito da liberdade como poder, do que sobre a liberdade em relação ao poder.
Os entusiastas da liberdade como poder, muito influenciados pela obra de Rousseau, visualizam nas instituições uma perspectiva emancipatória em relação aos mais variados entraves humanos. Ao afirmar que o “o homem nasce livre, mas que em toda parte encontra-se acorrentado”, Rousseau romantiza o real da condição humana desde a fantasia de um jardim de delícias primitivo, em que os homens viveriam em estado de igualdade e de liberdade naturais. Por sua vez, para a tradição das liberdades negativas, os seres humanos já nascem constrangidos por instituições e tradições responsáveis por sua própria existência. Com efeito, é perfeitamente possível que o indivíduo lute por emancipação em relação às tradições do direito burguês, por julgar que o contrato e a propriedade só foram inventados nos últimos 300 anos. Não obstante, a história atesta que o vale-tudo institucional de engenharias sociais sem qualquer vínculo com o real da condição humana, e com as tradições que já se afirmaram imprescindíveis à evolução da nossa espécie, respondem pelas trágicas carnificinas ideológicas do Século XX.
No importante texto Reflexões sobre a revolução em França, o vidente Edmund Burke rejeitou a definição direitos do homem – a base teórica para as liberdades positivas, porquanto a enxergava como legitimadora tanto de um arbítrio sem limites quanto da falta de moderação do poder político. Para Burke, os revolucionários franceses eram destemperados e extremistas, uma vez que a pretensão emancipatória quanto às religiões e à monarquia não materializava apenas uma recusa a tradições e a costumes específicos, mas sim um ataque a toda e qualquer autoridade decorrente da tradição. Ao contrário de observarem a educação ao longo da história, a literatura e as ciências voltadas a disciplinar e a elevar a recalcitrante condição humana, os revolucionários desejavam reformulá-la integralmente, a fim de enquadrá-la na razão abstrata dos direitos do homem. Não é à toa que a genialidade de Burke antecipou tanto o terror jacobino quanto os totalitarismos do Século XX, uma vez que a fé dos revolucionários em modificar a condição humana, via poder político, era um convite manifesto a toda espécie de violência desumanizadora.
Os pensadores não adeptos da escola construtivista, a exemplo de Burke, Tocqueville e Hayek, sempre enfatizaram que a liberdade nunca produziu bons resultados na ausência de convicções morais firmemente arraigadas, ou tradições apropriadas, e que a coerção somente poderia ser reduzida a um mínimo do momento em que se pudesse esperar que os indivíduos, de modo geral, observassem voluntariamente determinados princípios. Para esses autores, instituições como as religiões, o mercado, a moral, a família etc. são importantes na compensação do caráter marcadamente coercitivo dos poderes políticos.
Para sobreviver no curso de milênios o homem desenvolveu as referidas instituições, responsáveis por sua proteção diante da natureza intempestiva, e da arbitrariedade de seus semelhantes, instituições estas que evoluem, ou são abandonadas, a depender das contribuições que oferecem à conservação de nossa espécie. O conjunto dessas instituições, quase todas fomentadas, mesmo que em condições germinais, pelos antigos gregos, pelos italianos no começo da Renascença e pelos holandeses, também desde importantes contribuições de franceses e alemães, foram incorporadas, sobretudo, ao panorama institucional da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos.
Ao contemplarmos o brilho dessas comunidades políticas, e desejarmos que suas glórias se estendam a todos os povos, mormente àqueles que mais sofrem, é comum uma enorme insensibilidade, talvez fruto de obscurantismo, quanto aos fundamentos que permitiram o êxito destes povos em remediarem o real da condição humana. No belíssimo ensaio “O que se vê e o que não se vê“, Bastiat aponta para a dificuldade que os indivíduos possuem em associar as causas e os efeitos dos fenômenos sociais. A despeito de Bastiat ter dirigido o texto a economistas munidos de boas intenções, mas inocentes quanto aos efeitos não pretendidos por seus programas benevolentes, a proposição é adequada na tentativa articular um exame sobre os fundamentos das duas maiores experiências de liberdade da história registrada: Atenas e Estados Unidos da América.
2.
Atenas e EUA, ao contrário de suas contemporâneas Esparta e Rússia, triunfaram pelo conhecimento como mecanismo à conquista de um fim maior, que é a salvaguarda da liberdade individual, e não pelo conhecimento apenas como ferramenta ao recrudescimento do poder político, ou ordem pela ordem. De fato, o conhecimento é símbolo para o que não se vê nesse particular. A despeito da chaga da escravidão, defendida por Aristóteles e por homens do quilate intelectual de Thomas Jefferson, já na modernidade, a liberdade econômica conquistada em um primeiro momento lançou as luzes necessárias às liberdades políticas posteriores: igualdade perante a lei e não discriminação em razão de raça, berço e gênero. Na essencial lição de Hayek: “a luta pela liberdade foi desde sempre uma luta por igualdade”.
O enigma para a supremacia da Atenas de Péricles e da América de Jefferson encontra-se em um elemento comum: o império da lei, ou o governo das leis, e não o dos homens, como limite ao arbítrio para a proteção das liberdades. E o império da lei, nesses povos, repousava sobre uma melhor compreensão da condição humana, e sobre um ceticismo quanto à arrogância das pretensões demiúrgicas em modificar essa condição pela via institucional, ao contrário de adaptar o quadro institucional a essas mesmas condições. Nas palavras de Madison, um dos Founding Fathers: “caso fossem anjos a governarem os homens, não existiria a necessidade de controles externos e nem internos ao governo”.
O invisível da civilização livre repousa em princípios ordenadores que possibilitam aos indivíduos conquistar relativo êxito na sobrevivência da espécie. A despeito das diferenças entre povos, as instituições que mais contribuem para o florescimento humano são aquelas que convergem na direção de uma principiologia comum, e a liberdade individual resplandece como o grande valor a embasar esses princípios. A ancestralidade do mencionado princípio pode ser aferida em textos que, inclusive, não fazem parte da tradição ocidental, a exemplo do Tao te ching: “A fome do homem é devida a seu superior alimentar-se de impostos em demasia. Por isso existe fome. A difícil governabilidade de cem famílias é devida a seu superior agir intencionalmente, por isso existe o desgoverno […]”.
A principiologia comum em questão, e os gérmens do conceito de poder limitado – o Rule of Law – surgiram na antiguidade clássica, a exemplo de Aristóteles em A Política: “é mais certo que a lei governe, e não qualquer cidadão”, e o ideal brilhou com força soberana nos Estados Unidos da América a partir da arquitetura desenhada pelos Founding Fathers. Estes, por sua vez, foram buscar na Grécia Clássica, na República de Cícero, e em certos valores judaico-cristãos, o desenho institucional mais consentâneo à volúvel condição humana. Não por acaso Hayek dedicou a obra Os fundamentos da liberdade “à civilização desconhecida que se desenvolve nos Estados Unidos da América”.
Ao estabelecer como “verdades auto-evidentes” a igualdade de autoridade entre todos os homens, a Declaração de Independência nada mais fez do que materializar o conceito de isonomia muito caro a certo período helenístico, ou isonomy, no sentido de “leis gerais aplicáveis igualmente a todos”. Na lição de John Adams: “a América é uma nação de leis, não de arbítrios”. O termo isonomia vigorou até o século XVII “até ser substituído gradativamente pelas expressões ‘igualdade perante a lei’, ‘governo da lei, ou ‘Estado de Direito’”, consoante explica Hayek.
Para Heródoto, é a isonomia, e não a democracia “a mais bela de todas as palavras de uma ordem política”. E Jefferson parece ter rendido vênias ao historiador grego ao afirmar: “173 indivíduos podem ser tão despóticos quanto 1 só”. Não por acaso a palavra democracia é desprestigiada tanto na Constituição Federal quanto nas Cartas Estaduais, que privilegiaram o Rule of Law no sentido de isonomia. Conquanto as instituições dos Estados Unidos operem pelas instâncias democráticas, mormente como método pacífico para a substituição de seus representantes políticos, o alicerce institucional da mais bem-sucedida experiência moderna de liberdade não é a democracia, mas sim o constitucionalismo compreendido como limite ao Poder.
Os Dois tratados sobre o governo civil, de Locke, tiveram enorme impacto sobre os Fathers e, por conseguinte, sobre a Revolução Francesa, a ponto de Jefferson se referir a Bacon, Locke e Newton como “os três maiores homens que já passaram pela Terra”. Locke também rendeu tributos aos gregos antigos quando afirmou que o governo das leis, e não o dos homens, era a única possibilidade de preservação e ampliação da liberdade, uma vez que “onde não há lei, não há liberdade”. Não obstante, emerge dessa proposição o seguinte impasse: será que toda e qualquer lei consegue responder por um quadro geral de liberdades?
O enigma em análise nos aproxima de outro importante elemento invisível das civilizações livres: a diferença entre Lei e Legislação (Law e Legislation na lição de Hayek). A acepção de Lei que responde a um quadro de liberdade negativas é aquela que prioriza um sentido moral para o Direito na perspectiva de nomos (thesis é aferida desde o contexto de nomos), que é o conteúdo evolucionário do princípio da liberdade individual. Ao se insurgir contra o decreto de Creonte que a impedia de realizar as cerimônias fúnebres do irmão, Antígona imortalizou o ideal moral do império da lei, na qualidade de preservação das tradições consentâneas à liberdade individual, em oposição ao poder político. Para Antígona, o decreto de Creonte não era Lei, mas sim Legislação produzida em descompasso à tradição que embasava sua liberdade.
Ao distinguir Lei de Legislação, Hayek afirma que a segunda é muito pródiga em sufocar a primeira. Para o Autor, o simples fato de legislações serem promulgadas com lastro na vontade da maioria, não significa que se encontrem em consonância àquilo que entende por Lei formulada pela maioria. A simples validade não é suficiente para conferir justiça às normas. Normas válidas podem significar apenas Legislação, consoante o Autor. Com efeito, um ordenamento que se vincule à liberdade individual como valor soberano é aquele que mantém o poder político sob a mais estrita vigilância, e o compreende somente como árbitro e arquiteto das instituições necessárias à cooperação. Existe um limite ao poder, e o limite é sempre o indivíduo visualizado como fim em si mesmo.
Na hipótese, as leis que fundaram a República de Jefferson eram Leis no sentido moral de salvaguarda às liberdades, e não mera Legislação produzida por vontade política desvinculada de nomos. Anteriormente a Darwin, e aos economistas que ofereceram suporte às suas ideias, era muito comum o uso da expressão Direito Natural em atenção ao ideal do Rule of Law. Todavia, a expressão também oportuniza divergências semânticas labirínticas, e pode ser melhor compreendida quando afirmamos um Direito Evolucionário com raízes pré-históricas e funções adaptativas. Os seres humanos evoluíram em pequenos grupos sociais também em razão de tradições mais favoráveis à adaptação, a exemplo da propriedade e do contrato. E as civilizações grega e romana eram civilizações do contrato e da propriedade.
Contudo, somos filhos de uma época em que indagações saudáveis a certas tradições não afinadas à sobrevivência abriram as portas do inferno rumo a toda espécie de desconstrução, e a um enorme desprezo inclusive a certa biologia que nos condiciona. Parece que a liberdade econômica, destravada nos últimos séculos, criou as bases para nossa autodestruição, uma vez que gerou encruzilhadas não apenas perigosas à civilização, mas sobretudo a ela fatais. Hayek certa vez afirmou que “as antigas verdades devem ser constantemente reafirmadas na linguagem e nos conceitos de sucessivas gerações”, oportunidade em que contemplou consternado os ataques às instituições do Ocidente como um todo, empreendidos por indivíduos que desconhecem os próprios pilares que sustentam sua existência nesse planeta.
A redução expressiva dos índices de pobreza, em todo o mundo, bem como a rede de segurança oferecida por grande parte dos Estados Nacionais na atualidade, via confisco compulsório de recursos, oferecem aos indivíduos um mínimo para a subsistência ou, na terminologia de Foucault, biopolíticas necessárias à sobrevivência. Não obstante, existe um verdadeiro abismo entre viver e sobreviver. E, ao desprezarmos os elementos invisíveis que nos transformaram de primatas a astronautas, corremos o risco de retornarmos à condição de primatas (se é que algum dia a abandonamos de fato), e nos apartarmos, cada vez mais, dos dispositivos que nos permitem usufruir da vida do espírito, a exemplo de antibióticos, vacinas, aviões e tecnologia. Lutar para que os elementos invisíveis da civilização livre se tornem visíveis, significa “reafirmar na linguagem e nos conceitos de sucessivas gerações” o mais sublime dos ideais humanos em todos os tempos: a liberdade individual.
Renata Ramos
Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina.