A chamada “hermenêutica da suspeita”, inaugurada por Nietzsche, Marx e Freud, de certo modo agiu como incubadora dos grandes movimentos totalitários europeus.
“Foste minha morte:
pude deter-te,
enquanto tudo me escapava.”
Paul Celan
1.
Em O Filho de Saul (Saul fia, 2015), primeiro longa-metragem do diretor húngaro László Nemes, o protagonista Saul Auslander, representado por Géza Röhrig, realiza um périplo em meio ao inferno de um campo de concentração com o intuito de conceder um funeral digno a um garoto que, após sobreviver à câmara de gás, é morto friamente por médicos oficiais nazistas.
A premissa nos faz recordar a tragédia de Antígona, filha amaldiçoada por uma união incestuosa e irmã afligida pelo fratricídio de seus dois irmãos, Etéocles e Polinices, a qual guiando-se por leis eternas, depara-se com a ira de Creonte e sua cidade ao tentar realizar as exéquias costumeiras do cadáver de seu irmão, morto após sua sedição contra Tebas. Electra tem a consciência da necessidade transcendente dos ritos de inumação, os quais foram negados pela intransigência do rei. A tragédia de Sófocles revela não somente da percepção de um princípio que transcende a imanência do Estado, mas principalmente a consciência como seu único órgão interpretativo. George Steiner, por exemplo, em sua obra Antigones: the Antigone myth in Western literature, art and thought [Antígonas: o mito de Antígona na literatura, arte e pensamento ocidentais], demonstra como os princípios, elementos e símbolos dessa narrativa ainda povoam e fertilizam o imaginário ocidental – nos ocasionais embates entre indivíduo e Estado, entre costumes exangues e imperativos morais e entre a senilidade e juventude.
Portanto, vagando em meio a uma organização ainda truculenta que a perspectiva irredutível de Creonte, Saul, um sonderkommando, isto é, um membro de uma classe dentre os prisioneiros judeus com a função de conduzir seus demais companheiros às câmaras de gás e em seguida, arrastando-os como fardos, proceder com a limpeza dos espaços e com o sumiço dos corpos, dirige-se de um regimento a outro em busca de um rabino que pudesse celebrar o Kaddisch, a oração dos mortos, concedendo, pois, as exéquias apropriadas ao menino. O que todo seu périplo nos permite, de imediato, perceber é justamente a permanência e imprescindibilidade da atitude sacra ainda face da morte. Em contraste ao abate industrial promovido pelos campos de concentração, Saul, na sua fragilidade como indivíduo que se apega a um sentido transcendente mesmo imerso na perversidade e como Untermensch, executa, com dificuldades e sofreguidão, todos as partes reverentes e imperiosas do ritual.
Tomando um caminho outro dos demais longas que retratam de maneira vívida o Shoah, o diretor não recorre ao recurso de imagens perturbadoras de corpos desumanizados das vítimas; na verdade, a própria câmera – num recurso estilístico que alguns críticos de cinema já delinearam – se pauta essencialmente num foco quase obsessivo na figura de Saul, ao mesmo tempo que retrata, num borrão de processos e ações, todo o cotidiano brutal do campo. Desse modo, somos enxertados na tragédia subjetiva de Saul, que, semelhante aos espectadores, permanece vagando difusamente pelos cenários e cenas impiedosos das prisões. Enquanto a ação e vetores drásticos se desenrolam – e O Filho de Saul é um filme a todo momento transpassado por rompantes e brusquidão –, e temos deles uma imagem opaca mas intensa, Saul permanece firme, ao ponto da obsessão, no cumprimento de um dever que, semelhante aos de todos os demais profetas, lhe foi imposto inadvertidamente.
O que surpreende é não apenas sua crença, mas seu apego tenaz aos ritos; isto é, as condições mais inóspitas não são suficientes para a contemporização, que dirá negação das leis eternas.
2.
Nesse sentido, podemos lembrar de Primo Levi, o grande escritor e químico que sobreviveu a Auschwitz, embora anos depois tenha se suicidado (ou, como já disse Elie Wiesel, “Primo Levi morreu em Auschwitz quarenta anos depois”).
Em seu conto “Lilith”, deparamo-nos não mais com o embate, mas com a mútua consolação daquilo que C.P. Snow – ao que pese a expressão – chamou de “as duas culturas”: Levi, um cientista imerso num mundo em que a ciência se tornou instrumento e método do horror, e um cabalista (rabino), que discutem a metafísica do horror em Auschwitz. O rabino conta a seu amigo, o narrador, que vira Lilith, a mulher rebelde de Adão e mãe dos demônios, segundo algumas correntes místicas judaicas, vagar num campo de concentração[1], “embrulhada em panos pretos”, “com um rosto vermelho e largo, brilhante de chuva… coçando-se sob a gola do casaco com provocante indolência”. A única teodiceia possível – uma nêmesis para este mundo pretensamente pós-metafísico –, segundo o rabino, é que Deus abandonou sua esposa legítima, a Shekinah, para viver em conúbio com Lilith. E enquanto perdurar esse abominável gamos, o mundo, de semelhante modo, “haverá sangue e sofrimento na terra”.
O que o conto de Levi nos permite entrever e que faz eco ao sentimento de Saul é a capacidade humana, jamais extinta, se não de alcançar, ao menos instaurar, o sentido em meio ao império do absurdo. A teodiceia é um esforço justo de conciliar duas realidades somente perceptíveis ao homem: a transcendência e o mysterium iniquitatis. Se a imagem cabalística do conto de Levi é suficientemente explanatória ou não, sua efetividade se dá na medida em que, como todo mito, restabelece, ainda que momentaneamente, a unidade das facetas do real, a convergência dos ramos do saber e a congruência das narrativas díspares que perpassam uma comunidade. Doutro modo, a ciência e o sagrado permanecerão estupefatos perante toda sorte de ponerocracia. Nesse sentido, tanto o filme de László Nemes quanto o conto de Levi declaram a absoluta necessidade de um exercício interpretativo da ação da Divindade, uma exegese infindável da Revelação, tal como o Talmude nas suas espirais sucessivas.
No entanto, o que surpreende no périplo de Saul é sua busca infrutífera de um rabino que pudesse conduzir a cerimônia. O primeiro rabino com que se depara, e para isto foi obrigado a trocar seu ouro obtido dos corpos incinerados a fim de ser guiado para um outro regimento de trabalhadores forçados, é um renegado, com cicatrizes marcando seu rosto, que momentos depois é morto por um oficial alemão. Em seguida, baldados seus esforços extremos para salvar um ancião que se dizia rabi, ele vê o homem sendo tomado de seus braços para ser morto numa vala.
Por fim, resgata um homem que notoriamente se encontra disposto a tudo por sua sobrevivência e que, ao fim, revelar-se-á um impostor incapaz de recitar sequer duas linhas do Kaddisch, a oração dos mortos.
3.
A bem da verdade, o Kaddisch é também realizado após as meditações no Talmude, de modo que, para aqueles que a recitam, a revelação e a consciência da morte são elementos concomitantes. É por isso que a poesia de Paul Celan, forjada nos campos de extermínios de judeus, nos parece hermética e selada como um texto sacro, uma interminável exegese em busca do âmago da revelação. No caso de Celan, sua experiência em campos nazistas implicou no rompimento da própria linguagem; entretanto, conforme é a missão do homem segundo a cabala luriânica, Celan reúne as centelhas dispersas desses cacos primordiais (klifót) a fim de restaurar a unidade perdida na criação, num verdadeiro ritual de retificação (tikun), ou, como anjo intercessor, anseia pela ressurreição dos seus e da própria linguagem. A poesia, como Cristal, é frágil mas de uma inteireza límpida:
Nas longas mesas do tempo
embebedam-se os cântaros de Deus.
Eles esvaziam os olhos de quem vê e os olhos de quem não,
os corações das sombras reinantes,
o magro rosto da noite.
São os maiores bebedores:
levam à boca o vazio como o pleno
e não transbordam como eu ou tu (“Os cântaros”)
Ainda assim, nesse ambiente de ruptura há chispas de sacralidade:
Mas
ainda há templos. Uma
estrela
ainda tem luz.
Nada,
nada está perdido.Ho-
sana.No abrigo da coruja, aqui,
as conversas, cinza-dia,
das marcas d’água subterrânea. (“Stretto”)
E nesse ponto Celan e Saul, mantenedores da lei divina num ambiente não só inóspito mas regido por princípios imanentistas, revelam ambos um aspecto crucial da modernidade e seu signo máximo, o Holocausto – a ausência absoluta do medium da Revelação, isto é, não restam mais profetas[2] (nebiim), os transmissores da mensagem, e menos ainda intérpretes. Como retratado por outra grande obra da literatura judaica, Satã em Gorai, não há mais rabinos, mestres e intérpretes da lei, mas somente falsos profetas, messias obscuros e hermeneutas falsificadores. E, assim, conforme a aldeia de Gorai, uma vez desprovida de seu rabi e ludibriada por um mestre espúrio, se chafurdou em toda sorte de imoralidade, rituais negros, obscenidade e corrupção, da mesma forma, na ausência de uma autoridade interpretativa, a perfídia instaura sua própria ordem.
Portanto, um apreço pelas grandes revelações e teofanias transparece, de certa forma, nos conceitos modernistas de epifania (James Joyce), iluminação profana (Walter Benjamin) e memória involuntária (Proust); afinal, segundo a tese de Erich Heller sobre a poesia moderna, todos os grandes autores modernos abrigam dentro de suas obras uma profunda nostalgia pelo milagre da Eucaristia, sendo talvez a madeleine de Proust o modelo que primeiro nos vem à mente.
Nesse sentido, a chamada “hermenêutica da suspeita”, inaugurada por Nietzsche, Marx e Freud, de certo modo agiu como incubadora dos grandes movimentos totalitários europeus: primeiramente, porque implodiu, num criticismo sempre hostil e corrosivo, as tradições condensadas na linguagem, assim como o discurso das instituições mediadoras da civilização; e, em segundo lugar, porque, pressupondo uma inocência do cogito, esses hermeneutas destruíram a confiança na capacidade de intelecção e interpretação da consciência humana. Afirmando que todo pensamento é apenas um invólucro emergindo de um campo de impulsos e instintos, ou talvez uma ressonância do discurso de sua classe, ou ainda um mascaramento da vontade de poder, toda exegese passou a ser acompanhada de uma resignação pessimista.
É nesse contexto que a eloquência febril de Hitler, amplificada pela radiofonia, restabeleceu, em certos aspectos e em parte, a confiança no poder da palavra. Ademais, a ideologia nazista não difere das demais ideologias contemporâneas – isto é, na redução de todo o espectro dos entes a um de seus aspectos ou dimensões, transformando a realidade num grande esquema funcional. Em termos concretos, basta lembrarmo-nos do reducionismo operado sobre o termo “ariano”, originalmente presente na literatura védica: em tempos imemoriais, uma Índia mítica que abarcava uma área superior à atual, abrigava os arianos (do sânscrito: “nobre” ou “claro”), seus povos nativos. A “clareza” à qual se refere o termo evidentemente não diz respeito à cor da pele, mas à iluminação espiritual, à consciência diáfana da divindade. Distorcendo, pois, seu significado e conotação religiosa, o conde Joseph Arthur de Gobineau, o principal teórico do racismo do século XIX, degradou o termo da esfera espiritual para a biológica, associando-o às raças nórdicas e germânicas. Alfred Rosenberg, o verdadeiro mitólogo do nazismo, incorporou esse entendimento ao projeto de Hitler. Ora, tal reducionismo grosseiro somente foi possível porque toda crítica ou interpretação metafísica ou transcendental já haviam sido rechaçadas tanto nos círculos acadêmicos quanto no debate público.
Destarte, retomando o contexto do personagem Saul, percebe-se que seu esforço em realizar as exéquias de um filho “adotado”, uma vida que tomou como sua responsabilidade, não se configura simplesmente como uma reverência ao sagrado frente à reificação, mas também a crença na capacidade interpretativa ou exegética do homem quando confrontado pela transcendência. De fato, nas tradições monoteístas, tendo em vista sua criação à imagem da Divindade, o homem necessariamente é uma criatura ética. Mas, acima disto, a consciência do homem é o órgão no qual se concentra e se interpreta todo o sentido imanente ao cosmo. Embora, dentro desse entendimento, toda a criação esteja prenhe de significado, é apenas na mente humana que a revelação se depara com uma interpretação autoconsciente. O homem, por definição, é o intérprete de Deus.
E as cenas finais de O Filho de Saul são uma atualização condensada da narrativa do Êxodo. Impossibilitado de sepultar o corpo da criança, e perseguido pelos soldados nazistas, ele repete o ritual do “nascimento” do libertador de Israel, Moisés, permitindo que o corpo seja conduzido pelas águas do rio. De semelhante modo, assim como o povo de Israel fugiu dos egípcios, Saul e seus companheiros novamente realizam a travessia entre as águas, embora desta vez não a pés enxutos, rumo à terra da promissão, no caso, uma libertação, desde o princípio, ambígua.
O sorriso de Saul na última cena do filme, a despeito de todas as circunstâncias trágicas e opostas, é o gesto correlato de que a consciência humana, ainda que cercada ou constrangida pelo mal, permanece sendo capaz de nobreza.
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NOTAS
[1] Não se pode descartar a ideia de que essa imagem no conto de Levi seja uma referência à desolação profetizada por Isaías em seu livro, no capítulo 34, versículo 14, quando prediz que “os gatos selvagens conviverão aí com as hienas, os sátiros chamarão seus companheiros. Ali descansará Lilith (traduzida por “fantasma”, em algumas versões), e achará um pouso para si”.
[2] No Antigo Testamento, o profeta não é tanto aquele que prediz acontecimentos vindouros quanto aquele que possui a autoridade para falar (e de fato fala) em nome de Deus.
Fabrício de Moraes
Tradutor, doutor em Literatura (UFJF/Queen Mary University of London).
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